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Tereza Cruvinel

Colunista/comentarista do Brasil247, fundadora e ex-presidente da EBC/TV Brasil, ex-colunista de O Globo, JB, Correio Braziliense, RedeTV e outros veículos.

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"Que país é este?", um poema atual

Nestes tempos revoltos em que a roda resolveu andar para trás no Brasil, numa velocidade que dá vertigem, volta e meia alguém apela para a pergunta: Que país é este? E o espanto é mais que pertinente.  Que país pode ser este que, tendo se tornado uma grande democracia de massas, depois de uma ditadura, resvalou para um golpe parlamentar e um governo ilegítimo. Tendo se tornado um player global,  recolheu-se à irrelevância e se dedica a premiar o capital transnacional com as riquezas nacionais, diz a colunista Tereza Cruvinel, que lembra o poema de Affonso Romano de Sant'anna

Affonso Romano de Sant'anna (Foto: Tereza Cruvinel)
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Nestes tempos revoltos em que a roda resolveu andar para trás no Brasil, numa velocidade que dá vertigem, volta e meia alguém apela para a pergunta: Que país é este? E o espanto é mais que pertinente.  Que país pode ser este que, tendo se tornado uma grande democracia de massas, depois de uma ditadura, resvalou para um golpe parlamentar e um governo ilegítimo. Tendo se tornado um player global,  recolheu-se à irrelevância e se dedica a premiar o capital transnacional com as riquezas nacionais.  Tendo se tornado referência em progresso social , agora suprime direitos e alimenta a espiral da desigualdade que havia sido mitigada. 

A pergunta “Que país é este? foi celebrizada por Francelino Pereira, quando presidia o partido da ditadura, a Arena, nos anos 70.   Depois, entretanto, foi usada pelo poeta Affonso Romano de Sant’Anna como título de um poema que desafiou a ditadura, por seu conteúdo agudamente crítico,  não só ao momento mas ao histórico de injustiças seculares cometidas no país,  e pelo momento de sua publicação,  turbinando o cansaço com o autoritarismo que, pouco tempo depois, explodiria na campanha das diretas-já.  Mais tarde, Renato Russo, da Legião Urbana, compôs uma canção com o mesmo título.   Dizem que José de Alencar também já havia lançado a pergunta do espanto, no século anterior.

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Neste domingo,  em que as notícias sobre o que acontece no Brasil nos assombram, como acontece todos os dias, vou recordar e compartilhar com vocês o poema do Affonso.  Ele veio à luz no verão de 1980, mais precisamente no dia 6 de janeiro, num encarte especial do velho Jornal do Brasil.  Eu vivia na clandestinidade, na Baixada Fluminense e havia ido furtivamente ao Rio resolver alguma coisa. Comprei o JB numa banca, vi a chamada na capa e fui direto ao poema.   As primeiras estrofes me avisaram que eu teria de parar e sentar num lugar para fruir aqueles versos.   Em 2010,  o poeta gentilmente me enviou um exemplar da edição comemorativa dos 30 anos do poema.   “Que país é este?” continua sendo tristemente atual, belo e provocativo, quase quarenta anos depois.  Infelizmente, em sinal de que o país pouco mudou. Veremos em 2020.

Que país é este?

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Affonso Romano de Sant’Anna

 Uma coisa é um país
outra um ajuntamento.

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Uma coisa é um país,
outra um regimento.

Uma coisa é um país,
outra o confinamento.

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Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
    – e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um “berço esplêndido” para um
    “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
    – discursando rios e pretensão.

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Uma coisa é um país,
outra um fingimento.

Uma coisa é um país,
outra um monumento.

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Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca de especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa
visão do paraíso?
que no impeliu a errar aqui?

Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo 

– nos trai

Há 500 anos caçamos índios e operários,
Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:
    que o futuro a Deus pertence,
    que Deus nasceu na Bahia,
    que São Jorge é guerreiro,
    que do amanhã ninguém sabe,
    que conosco ninguém pode,
    que quem não pode sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
    não somos nada violentos,
    quem espera sempre alcança
    e quem não chora não mama
    ou quem tem padrinho vivo
    não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
    este é o país do futuro,
    antes tarde do que nunca,
    mais vale quem Deus ajuda
    e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos
    somos raposas verdes
    colhendo uvas com os olhos,

    semeamos promessa e vento
    com tempestades na boca,

    sonhamos a paz na Suécia
    com suiças militares,

    vendemos siris na estrada
    e papagaios em Haia,

    senzalamos casas-grandes
    e sobradamos mocambos,

    bebemos cachaça e brahma
    joaquim silvério e derrama,

    a polícia nos dispersa
    e o futebol nos conclama,

    cantamos salve-rainhas
    e salve-se quem puder,

    pois Jesus Cristo nos mata
    num carnaval de mulatas

Este é um país de síndicos em geral,
Este é um país de cínicos em geral,
Este é um país de civis e generais.

Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.

Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,

o salário que nos come
e nossa sede canina,

a esperança que emparedam
e a nossa fé em ruína,

nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,

e nesse mundo às avessas
– a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.

 Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.

Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o passa-anel que repassei,
a carniça que pulei.

Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
             – ainda morrerei.

 Minha geração se fez de terços e rosários:
                   – um terço se exilou
                   – um terço se fuzilou
                   – um terço desesperou

e nessa missa enganosa
– houve sangue e desamor. Por isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
ao nível da emoção.

Caí de quatro
animal
sem compaixão.

Uma coisa é um país,
outra uma cicatriz.

Uma coisa é um país,
outra é abatida cerviz.

Uma coisa é um país,
outra esses duros perfis.

Deveria eu catar os que sobraram
os que se arrependeram,
os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
suplicar:
  – expliquem-me a mim
    e ao meu país?

Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
como um tonto guarani
e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco
    não haverá mais país.

País:
    loucura de quantos generais a cavalo
    escalpelando índios nos murais,
    queimando caravelas e livros
             – nas fogueiras e cais,
    homens gordos melosos sorrisos comensais
    politicando subúrbios e arando votos
    e benesses nos palanques oficiais.

Leio, releio os exegetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século
– se não for um mal de vista.

Já pensei: – é erro meu. Não nasci no
tempo certo.
Em vez de um poeta crente
sou um profeta ateu.
Em vez da epopéia nobre,
os de meu tempo me legam
como tema
– a farsa
e o amargo riso plebeu.

 Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo
    – pois morro sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
    – e classes despreparadas
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
outros iam ardendo um torpe agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
se segue a flor de maio.
Às vezes se segue o fosso
– e o roer do magro osso.
E o que era revolução outrora
agora passa à convulsão inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vencedores nos palácios espocavam seus
champanhas sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
com quantos paus se faz a derrisória estória.
Convertidos em alvos e presa da real calçada
abriu-se embandeirado
um festival de caça aos pombos
– enquanto raiava sangüínea e fresca a
madrugada.

Os mais afoitos e desesperados
em vez de regressarem como eu
sobre os covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos
desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram ao luto.

Vi-os lubrificando suas armas
e os vi tombados pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
e serem sepultados às ocultas.

Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que os advertisse do inevitável final
não pude lhes poupar o sangue e o ritual.

Hoje
    os que sobraram vivem em escuras
    e européias alamedas, em subterrâneos
    de saudade, aspirando a um chão-de-
    estrelas,
    plangendo um violão com seu violado
    desejo
    a colher flores em suecos cemitérios.

Talvez
    todo o país seja apenas um ajuntamento
    e o conseqüente aviltamento
    – e uma insolvente cicatriz.

    Mas este é o que me deram,
    e este é o que eu lamento,
    e é neste que espero
    – livrar-me do meu tormento.

Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
– do prazer e da realidade
– que eu pensava
com o tempo resolver
– mas só agrava com a idade.

    Há quem se ajuste
    engolindo seu fel com mel.
    Eu escrevo o desajuste
    vomitando no papel.

Mas este é um povo bom
me pedem que repita
como um monge cenobita
enquanto me dão porrada
e me vigiam a escrita.

Sim. Este é um povo bom. Mas isto também
diziam os faraós
enquanto amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
enquanto me assaltam a casa,
isso digo
aos montes em desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.

Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem
perversa e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
– desconfia muito de mim.

Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
– nem eu posso convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
o seduza para além da ordem moral.

Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção
nos seus olhos.
Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos,
embrulhos, família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.

Daí vejo as manchetes:

– o poeta que matou o povo
– o povo que só/çobrou ao poeta
– (ou o poeta apesar do povo?)

– Eles não vão te perdoar
– me adverte o exegeta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis,
nomes de ruas, questionários e geladeiras,
e a cidade do interior não é apenas gás neon,
quermesse e fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista,
bundas e peitos fingindo que é coisa nossa.

Povo
       também são os falsários
       e não apenas os operários,

povo
       também são os sifilíticos
       não só atletas e políticos,

povo
       são as bichas, putas e artistas
       e não só os escoteiros
       e heróis de falsas lutas,
       são as costureiras e dondocas
       e os carcereiros
       e os que estão nos eitos e docas.

Assim como uma religião não se faz só de missas
na matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os ferros de seus ombros requer
poetas negros que refaçam seus palmares e
quilombos.

Um país não pode ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo 

– é um ovo
que ora gera e degenera
que pode ser coisa viva
– ou ave torta

depende de quem o põe
– ou quem o gala.

Percebo
que não sou um poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
casas velhas, barroquismos nos meus versos.

Embora meu pai viesse de Ouro Preto com
bandas de música polícia militar casos de
assombração e uma calma milenar,
embora minha mãe fosse imigrando
hortaliças protestantes tecendo filhos
nas fábricas e amassando a gé e o pão,
olho Minas com um amor
distante, como se eu, e não minha mulher
– fosse um poeta etíope.

Fácil não era apenas ao tempo das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era ao tempo dos partidos:
– o poeta sabia “história”
vivia em sua “célula”,
o povo era seu hobby e profissão,
o povo era seu cristo e salvação.

O povo, no entanto, é o cão
e o patrão
– o lobo. Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio cão e lobo.

Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte
popular

então mais amo uma manada de búfalos em
Marajó e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
– que em carnaval de fome
o próprio povo celebrou.

Povo
    não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
    não pode ser um séquito sem nome.
Povo
    não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
    deve estar cansado desse nome,
    embora seu instinto o leve à agressão
    e embora aumentativo de fome
    possa ser revolução

 

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