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Rogério Skylab

Músico e compositor

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Rebelião das massas

No livro “Ruptura - a crise da democracia liberal”, Manuel Castells vai se debruçar sobre rebeliões ocorridas na segunda década deste século em alguns países ocidentais, mais especificamente nos EUA e na Europa

Rebelião das massas
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No livro “Ruptura - a crise da democracia liberal”, Manuel Castells vai se debruçar sobre rebeliões ocorridas na segunda década deste século em alguns países ocidentais, mais especificamente nos EUA e na Europa: uma espécie de rejeição antissistêmica,  diante da crise de legitimidade  democrática,  que será verificada inclusive no Brasil. Castells não estuda o caso brasileiro, mas seguindo sua narrativa nos damos conta do quanto fomos afetados por esse estado de coisas.

Ainda que essas rebeliões tenham a especificidade de cada país, e por mais que algumas venham a produzir valores progressistas alternativos, elas apresentariam, segundo Castells, fatores comuns à ruptura do establishment, entre os quais se destacaria o discurso do medo diante das transformações, principalmente no mundo do trabalho, efetuadas pela globalização.

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Os setores sociais mais vulneráveis reagiriam em torno dessas transformações e se mobilizariam em torno daqueles que diriam aquilo que o discurso das elites não lhes permitiria dizer.  O fortalecimento das comunidades identitárias, diante do multiculturalismo e da globalização, estaria no rastro dessas rebeliões, podendo trazer no seu bojo muito do discurso xenófobo e racista. O antiestabilishment poderia conter, portanto, essas duas variáveis: retomando valores originários,  como raça (o discurso ancestral da etnia majoritária), família patriarcal, Deus (num futuro texto pretendo abordar o pensamento de Aleksandr Dugin), em que o Estado teria o centro da decisão e a nação seria uma espécie de comunidade cultural;  ou retomando valores progressistas alternativos e mesmo anárquicos,  como no caso do lulismo selvagem, que teria o seu ápice nos movimentos de junho de 2013, após o qual receberia o choque de ordem.

Neste texto, e seguindo a narrativa de Castells, vamos estudar o caso americano, mais especificamente Trump. E ainda que Bolsonaro tenha as suas especificidades nacionais, vamos nos surpreender com os fatores comuns a ambos os governos.

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Especulador imobiliário envolvido em negócios sujos, ignorante da política internacional, depreciativo da conservação do planeta, nacionalista radical, sexista, homofóbico e racista, nas prévias para a eleição americana, seu nome sofria forte resistência do seu próprio partido republicano.  Nada mais improvável que fosse ele o escolhido nas prévias, após as duas eleições anteriores terem sido ganhas por um presidente negro e progressista. O fato é que o sistema político em vigor silenciara vozes que esperavam o momento propício para voltar à superfície, vozes que não se sentiam representadas pelo establishment, vozes recalcadas. E o discurso de Trump, em sua campanha,  agregou essa insatisfação popular: contra a imigração num mercado de trabalho cada vez mais restrito; contra a globalização, que era vista como a inimiga do povo (Trump responsabilizaria, inclusive, seus amigos financistas pela miséria do povo); contra a intervenção militar no mundo (para não desperdiçar vidas americanas  em benefício de povos que não mereceriam); e brandindo opiniões ofensivas sobre as mulheres (para algumas ferrenhas seguidoras, essas opiniões seriam minimizadas como brincadeiras, mas, para o machismo imperante em muitos setores, soariam como liberação masculina).

Contra esse isolamento econômico e político, antiestablishment, Hillary expressava a voz do mundo político e financeiro. Chama atenção o fato de que Bernie Sanders, que trazia a mobilização dos jovens e que representava o antiestablishment de esquerda, viria a ser sobotado pelo aparelho democrata – talvez pudesse ser outro o resultado eleitoral com Sanders como candidato, justo num momento político de colapso da ordem pública.

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A campanha de Hillary se deu em moldes tradicionais, abrindo escritórios de campanha em cada estado, chegando a ter o dobro dos abertos por Trump, somando políticos à sua causa e arrecadando o dobro de Trump em valores.  Chegou, inclusive,  a vencer os debates na TV, mas isso pouco significou. Sou obrigado a me remeter ao caso brasileiro: Bolsonaro nem chegou a ir aos debates e muito pouco isso significou em termos eleitorais. No caso americano, Trump liderou o movimento com uma estratégia midiática sui generis, através de declarações escandalosas e polêmicas e com isso monopolizando a discussão, mesmo de forma negativa, e ganhando dessa forma o protagonismo na sociedade.

Notáveis também foram os erros de Hillary, seja em classificar de “deploráveis” o seguidores de Trump, que é justamente o que a elite pensa sobre as classes pouco instruídas, seja na grande quantidade de mensagens eletrônicas emitidas a partir de sua conta pessoal, quando era secretária de estado (o uso de emails pessoais em correspondências oficiais é terminantemente proibido ) - levando o diretor do FBI, James Comey, pouco antes das eleições, a reabrir investigação contra ela.

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Se adicionarmos a essa mixórdia, o fato do governo russo vir a hackear os computadores do partido Democrata, facilitando informação ao genro de Trump (tanto lá como aqui a família é uma extensão do governo), e a  atitude ambígua de  Hillary quanto ao assassinato de negros pela polícia, o que refletiu em sua votação (negros e jovens não votaram nela na mesma proporção que em Obama), ficam estabelecidos os antecedentes de uma eleição não tão surpreendente assim: a concentração do apoio a Trump em estados estratégicos do Meio-Oeste (a zona industrial) e na Flórida, assim como sua superioridade total nas área rurais e nas pequenas cidades, das quais fazem parte os esquecidos do sistema, “os deploráveis”, acenam na direção de sua vitória.

Ainda que possa ser interpretado o voto a Trump como o voto do ressentimento racial após os governos Obama (o voto democrata nas grandes cidades do Meio Oeste não pode compensar a onda do voto branco rural que é a América Profunda), ainda assim, segundo Castells, não se poderia dizer que a maioria dos que tenham votado em Trump fossem racistas. Ao invés disso, são pessoas atemorizadas pela rápida mudança econômica, tecnológica, étnica e cultural do país, tentando preservar um mundo que em certos momentos viam desaparecer. E nesse aspecto, não deixa de ser uma luta de classe: os mais instruídos e de maior nível econômico, representando Hillary; e os operários brancos, os pobres dos campos, que são justamente as duas regiões em crise, ao lado de Trump.

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É por isso que Manuel Castells distingue a direita alternativa (all-right), formada por grupos racistas, neonazistas e antissemitas, acolhidos por meios de comunicação xenófobos, tais como o “Breitbart News”, cujo diretor executivo era Steve Banon, que veio a dirigir a última fase da campanha de Trump. Para Castells, ainda que alguns dos líderes da “all-right” tenham tido influência direta sobre Trump, essa direita alternativa não foi dominante no movimento popular nacionalista, núcleo básico de apoio a Trump. Esse movimento teria uma dupla característica: o sentimento de humilhação identitária e a marginalização social decorrente da reestruturação da economia. Ou seja, em ambos os aspectos, estamos diante de um movimento reativo, que vai ser uma característica comum da rebelião das massas.

Diferentemente da Europa, que sofreu a crise do desemprego, no momento da eleição americana o índice de desemprego era apenas de 5% graças à política econômica expansiva de Obama. Não havia, portanto, uma crise profunda nas condições de vida. Mas havia uma crise cultural de setores populares em desarraigamento, começando pela desintegração social de comunidades operárias tradicionais sob o efeito da reestruturação industrial – o que levaria a uma epidemia de drogas, justo nas áreas de voto em Trump, reconhecido como  salvador providencial.  Por outro lado, ao contrário de grupos étnicos e culturais  que têm afirmado suas identidades específicas e lutado por seus direitos (minoria étnicas que apoiaram Hillary), haveria por parte do cidadão branco americano um sentimento de exclusão das manifestações culturais dominantes e das categorias protegidas em termos de direitos especiais. A marginalização social e a humilhação identitária estariam, portanto, na base do movimento nacional populista, núcleo base de apoio a Trump, que remete muito à revolta populista jacksoniana, do início do século XIX, em defesa do cidadão branco americano e na preservação dos princípios comunitários de liberdade e igualdade, características da nova nação americana.

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Ainda que tenha nomeado, como secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, financista da Goldman Sachs, seguindo uma longa tradição presidencial que faz dessa firma o conector concreto entre o poder político e o poder financeiro nos EUA, de um modo geral, Trump não se afastou de suas promessas: tentou revogar a reforma no sistema de saúde de Obama; pressionou para as empresas automobilísticas não se transferissem para o México; reduziu imposto (sobretudo para os ricos); tentou proibir a entrada de muçulmanos; endureceu a política anti-imigrante; perdoou a repressão policial às minorias; amparou e entendeu os grupos racistas da alt-right; empenhou-se, sem grande êxito até agora, a construir o muro na fronteira com o México; anulou os principais tratados multilaterais; anunciou a retirada dos EUA do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas; insultou vários dirigentes europeus, com exceção de Macron;  ameaçou iniciar uma guerra com a Coréia do Norte; insinuou intervenção militar na Venezuela; e voltou à guerra fria com Cuba, apesar de no passado ter feito negócios ilegalmente com a ilha. Embora tenha esboçado uma guerra comercial com a China, voltou atrás. E só não enveredou em alianças estratégicas com a URSS por causa das suspeitas da intervenção dela na campanha eleitoral.

As cinco fontes de oposição ao governo Trump são: o Congresso, incluindo aí muitos republicanos, que viria a bloquear várias iniciativas de Trump como a reforma da saúde e a construção do muro – suas declarações contra o establishment, enquanto presidente, vêm sofrendo pesadas reações por parte de líderes republicanos, como o presidente do senado e do congresso; os meios de comunicação; o Poder Judiciário, que, ao contrário daqui, se mostra, de fato, independente e contrário às iniciativas inconstitucionais do presidente; o FBI, que ao contrário da nossa Polícia Federal, e mesmo com a destituição de James Comey, continua investigando o entorno de Trump;  e a procuradoria geral, tendo nomeado um promotor especial para investigar a relação entre a URSS e a campanha eleitoral americana.

Não há como deixar de reconhecer algumas semelhanças com o nosso atual governo, muito embora a independência dos poderes nos EUA esteja muito além de nossa frágil democracia. Na Casa Branca, transformada numa casa de loucos, em poucos meses os ocupantes de dez altos cargos foram demitidos por um presidente irascível, incapaz de suportar crítica. E em questões de dias, caíram nomeações como a do assessor de Segurança Nacional, Michael Flynn. Inaugurando um novo modo de comunicação presidencial (o governo via twitter),  Trump tuita sem cessar, de noite, emitindo ataques pessoais, próprios de uma personalidade narcisista que precisa de adulação contínua. Duas vezes por dia recebe clipping da imprensa mundial só com opiniões favoráveis e se aconselha unicamente com a família (seu genro e sua filha), além de um círculo pessoal mais íntimo.

Toma as decisões e as comunica aos que devem executá-la, e em seguida, muda de ideia, ao perceber que poderão acarretar problemas para ele. Está sempre em campanha porque é aí que sente seu poder e, sobretudo, se sente querido – típico reflexo doentio no grau máximo do narcisismo.  Em alguns discursos recentes, parecia não dizer coisa com coisa, levantando-se questionamentos sobre sua saúde mental, o que, nesse caso, poderia levá-lo à substituição. As investigações sobre a relação entre o governo russo e a campanha eleitoral, conforme os resultados, podem desencadear um movimento de impeachment. Mas os bloqueios institucionais e as críticas midiáticas também podem levá-lo a renúncia. Tanto aqui como lá nos deparamos com o mesmo pano de fundo, guardadas as devidas proporções: o antiestablishment de direita, diante da crise de legitimidade democrática.

 

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