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Cássio Vilela Prado

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Reforma Psiquiátrica, Burocracias CAPs e a Distopia de Cinderela

O paciente sofredor e excluído da coisa social e existencial libertadora em nada interessa à equipe de "Cinderela". A única coisa que importa para esses "viajantes institucionais" é o funcionamento perfeito da linha guia-protocolo burocrático

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"Gostaria de insistir num ponto. O risco que corremos hoje, no momento em que as propostas da Reforma Psiquiátrica se tornaram a base das políticas oficiais de Saúde Mental, é o risco que corre toda ideia transformadora que alcança as condições de se tornar a norma: a burocratização. O ideal de uma 'sociedade sem manicômios' só se manterá de pé se continuarmos a enxergá-la como um horizonte, ou seja, como uma referência, um norte. Este horizonte poderá continuar presente, e preservar sua força inspiradora, mas somente ao preço de jamais nos iludirmos quanto a havermos chegado lá. Temos que preservar a pluralidade em nosso campo, a diversidade de opiniões, as diferenças teóricas e mesmo os conflitos resultantes de entendimentos diversos sobre os variados tópicos que nossa agenda abarca, em especial no campo da clínica. Manter o debate e as divergências em aberto é mais importante do que forjar consensos a todo custo. Compreender o que nos une e nos diferencia é – tanto na clínica quanto na vida – um exercício fundamental."- Benilton Bezerra Jr – Psicanalista, psiquiatra, professor do Instituto de Medicina da UERJ, pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito), membro da direção do Instituto Franco Basaglia do Rio de Janeiro1.

Ao que parece, tudo indica que Benilton Bezerra Jr acertou na mosca em sua reflexão acima, profética, cirúrgica e letal. Embora não conheça pessoalmente todos os CAPs do país, "as luvas" de Bezerra encontraram as verdadeiras mãos da velha "Cinderela", ainda refém da faxina cotidiana de seu "lar mental solitário", atolada na concretude de caprichos insanos e distante do utópico "castelo do príncipe encantado", pois restou-lhe somente o "cocheiro da carruagem mágica desencantada", agora o seu único instrumento de viagem junto com os "seus bichinhos de estimação". A suposta "princesa dos sonhos encantados" se tornou a "Rainha da Limpeza". É a adaptação dramática desiludida de Wilhelm Grimm (1786-1859) ao "mentalismo tupiniquim"?

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O paraíso utópico encantado vislumbrado pelo "médico rebelde" italiano, Franco Basaglia (1924-1980), precursor da Psiquiatria Democrática (Reforma Psiquiatra Italiana – Lei 180/1978), se perdeu na realidade concreta burocrática comandada pela acefalia mecanizada, engessada e normatizadora de "Cinderela" e seus "amiguinhos do sótão".

No bagageiro da idosa e claudicante "carruagem", segue empoeirada a Portaria 336/2002, do Ministério da Saúde, a caduca "Linha Guia" da Secretaria Estadual de Saúde e os textos do lacanês psicolinguístico franco-heideggeriano associados às ferramentas comportamentalistas e cognitivas neurocientíficas do instrumental técnico sintomatológico da figura encapsulada e autoridade clínica absoluta da equipe multidisciplinar em sua "viagem" atrás do próprio rabo, desprovida da mínima utopia de Bezerra, em detrimento do automatismo mental institucional colocado no "piloto automático", melhor dizendo, no "cocheiro automático" de "Cinderela e seus bichinhos mais íntimos contemporâneos", haja vista a exaustão volitiva de "pangarés- matusalém".

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O sonho utópico que deveria ser permanente, caiu em completa derrisão, colidindo-se com os ideais de liberdade e cidadania de Basaglia.
Impera a burocratização temida e profética de Benilton Bezerra Junior. As rédeas mecanicamente discursivas dão a direção e as ações assimétricas às demandas reais e necessárias. Toda demanda direcionada a esse tipo de Serviço Público deve cumprir uma tabela ritualística prévia e se encaixar na engrenagem engendrada que captura o real da clínica.

O profissional supostamente "psi" que se coloca de prontidão para o atendimento cotidiano é inquestionável, pois somente o seu diagnóstico e conduta são verossímeis e irretocáveis, a mecânica engole o sonho de tratamento. A clínica social da reinserção e da cidadania foi entregue às traças e ao léu, com o recrudescimento zumbi, o aumento das drogas lícitas e ilícitas e a violência, esta última também pauta obrigatória das Políticas Públicas em Saúde Mental.

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O paciente sofredor e excluído da coisa social e existencial libertadora em nada interessa à equipe de "Cinderela". A única coisa que importa para esses "viajantes institucionais" é o funcionamento perfeito da linha guia-protocolo burocrático, a medida de todas as coisas no universo mental reducionista, estabelecido pela acefalia excludente mecanicista pelos operadores desse sistema de saúde.

Esse tipo de pensamento engessado que vigora na clínica da Saúde Mental brasileira, através de seus "CAPs particulares", dão mostras do momento político nacional que se impõe goela abaixo.

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Não é possível fazer Saúde Mental na via da Psiquiatria Democracia que permeia o ideal da Reforma Psiquiátrica basagliana através da postura e da conduta do também italiano Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945), perseguidor implacável de Basaglia que fora encarcerado nas prisões italianas.

Passou da hora para que os pensadores da Reforma Psiquiátrica brasileira lancem os psiquiatras tupiniquins na linha de frente cotidiana dos plantões desses serviços anacrônicos que insistem em fazer e pensar de forma invertida.

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Não há que se blindar mais os psiquiatras para aqueles que deles necessitam e investi-los naquilo para o qual foram chamados por Basaglia, destituindo-os de seus tronos ilusórios do saber absoluto sobre o Outro. O psiquiatra deve estar no plantão acolhedor diário desses estabelecimentos assim como nas ruas, escolas, nas praças urbanas e rurais... Lá, exatamente onde o usuário do SUS e da saúde mental demanda e tenta viver a sua realidade e a sua utopia temporal. Não há urgência nem emergência protocolar, quaisquer formas de sofrimento mental são no agora, a dor psíquica independente da subjetividade burocratizada do plantonista do dia.

Os CAPs se tornaram um modelo de "UPA", contudo dissociativo, servindo apenas para intervenções pontuais e não vinculantes de seus usuários, embora sejam serviços completamente distintos por natureza, fins e objetivos. E ainda, sem o arsenal técnico e humano capacitado e qualificado para as suas "intervenções bizarras" e descontextualizadas, portanto, paradoxalmente inigualáveis ao formato que pretendem ser.

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É preciso resgatar o sonho de Basaglia, que enterre Mussolini!

A utopia iniciada em Gorizia nos anos sessenta, norte italiano, com regozijos em Trieste (1971) retornaram à sombria berlinda da ditadura? Precisamos de novos coordenadores e democratas à la Giuseppe Dell'Acqua que sejam coerentes com a utopia de Basaglia.

Os CAPs precisam de novas "Cinderelas" que acreditem nos seus sonhos, e muito mais do que isso, nos sonhos de um amanhã melhor para o sofrido povo brasileiro, perdido e excluído pelos aparelhos burocráticos estatais com os seus discursos sapientes de fumaça. "Cinderelas encapsizadas nonsense" passaram ao ato da "clínica do gesso". Mas é preciso voltar a sonhar, manter vivo o desejo de Basaglia, hoje também o "desejo velado" de milhões de portadores de sofrimento mental.

E a Ave de Minerva (Hegel) não voou. Ela ainda vive no sótão da "Princesa Cinderela Desencantada", "a Rainha da Limpeza" versão "Cinderela" pós-Grimm.

"I have a dream", ou, no italiano de Basaglia: "Io ho un sogno".

Aportuguesando: "Eu tenho um sonho".

Aliás, nós ainda temos um sonho.

Nota:

1 Organização: Ana Marta Lobosque – A Reforma Psiquiátrica que Queremos [Por uma Clínica Antimanicomial] – Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (ESPMG), Belo Horizonte, MG, 2006.

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