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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Réquiem para um sonho

Em antiquários, vigora um pacto tácito entre o pó do passado e o pólen da memória

(Foto: Luanna Falcão)
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Às costas da Sé de Braga, em Portugal, descubro um antiquário através de uma porta estreita que mais parece uma fresta no sopé de uma montanha.

Em antiquários, vigora um pacto tácito entre o pó do passado e o pólen da memória.

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Eis aqui um relógio cuco de madeira fosca e pêndulo dourado e bojudo como uma amígdala. Quando soam 2 horas da tarde, o cuco estica a língua com um passarinho verde na ponta - cu-cô, cu-cô! -, tal como uma criança ranheta que não quer comer jiló. Súbito, entrevejo três riscos errantes e sulcados (unhadas?) bem rentes aos ponteiros do relógio. Será que o antigo dono do cuco, sitiado pela cavalaria de um infarto, tentou estancar o tempo, como se enforcasse a ampulheta, para ludibriar a morte?

Eis aqui uma bengala de castão adunco como o bico de uma águia e todo folheado com uma capa de prata repleta de arabescos. Ora, que soldado manco, ao escolher Braga como o exílio de seus tramas (e o bunker de sua insônia), teria escorado a carcaça com esta bengala, tal como um dragão fatigado que expele pelas narinas os últimos alentos de vida como fumaça amorfa?

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Eis aqui uma caixinha de música que se abre com a avidez da bocarra de um jacaré. Quando lhe dou corda, uma bailarina francesa (ou seria russa?) rodopia ao redor do próprio eixo com a elegância de um cisne, tal como uma estrela cintilante que converte sua órbita gravitacional em dança do acasalamento. 

Eis aqui uma caixa de bombons de framboesa. Ao abri-la, encontro fitas K7 com composições de Haydn, João Sebastião (viva Portugal!) Bach, Mozart e Beethoven. Em Viena, num dos museus-casa de Beethoven, eu me vi tomado pela suma expressividade da máscara mortuária do compositor, que, surdo em seus últimos anos, precisava sonhar, de olhos abertos, com a reverberação de suas sonatas, como as ondulações concêntricas que uma pedrinha incita na superfície plácida de um lago e como um alquimista impetuoso que acredita estar sempre a um passo de extrair ouro de pedras melancólicas. 

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Eis ali, junto ao teto, alada por duas correntes esguias e douradas, uma ninfa de bronze, cujo vestido desemboca em uma saia-cauda que lhe dá ares de sereia. Quando faço menção de me lembrar do canto dúbio de Circe, que seduz os marinheiros com sua voz melíflua só para devorá-los como cativos do desejo, a ninfa já me hipnotizara com um pergaminho ofertado por sua delicada mão esquerda, a calçar uma luva que se esgueira como uma enguia (ou seria uma serpente?) por toda a extensão de seu bracinho torneado. Ao abrir o pergaminho empoeirado, uma questão desponta como um dedo em riste: “O que você me dirá quando eu lhe disser adeus?”

Cercada por sabres medievais, eis aqui uma vitrola, cujo gramofone avariado mais parece um hipopótamo a bocejar (ou seria uma planta carnívora prestes a receber sua ração diária de carne humana?). Pergunto à dona do antiquário, uma senhora com o dorso das mãos forrado de nódoas marrons, se ela poderia me passar o endereço de Quentin Tarantino. Ora, não seria esta a vitrola de suas trilhas sonoras?

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Eis aqui uma máscara do carnaval de Veneza, cujos cabelos em forma de pompons desembocam em guizos opacos como a quarta-feira de cinzas. Quando me aproximo da máscara, ela me encara com seus olhos vazios e sua boca-centauro: enquanto metade dos lábios sorri (é carnaval!), a outra metade, cabisbaixa, lamenta ter que viver. 

Eis aqui uma grinalda, cujo véu translúcido ainda ressoa as juras de amor e as promessas de felicidade, mas cujo bolor insinua, como um lagarto com a língua-chicote aberta em v, que a promessa traz em seu ventre a agonia do mensageiro que já não pode atravessar a ponte em ruínas que antes ligava a ilha tropical do sonho ao deserto de gelo da realidade continental. 

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Eis aqui um espelho com moldura gótica que tem, inusitadamente, o meu tamanho: 1,81 m. Quando eu me vejo refletido em meu caixão vertical, o espelho começa a ficar embaçado com minha respiração ofegante, como se eu ainda julgasse possível me evadir do meu próprio funeral.

Súbito, uma mão fria e curva pelo reumatismo pousa em meu ombro esquerdo - o calafrio mais agourento que já escalou minhas vértebras eriça cada pelo do meu corpo quando eu imagino se tratar do barqueiro que vai me levar ao Hades, o reino dos mortos. 

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Quando dou por mim, a proprietário do antiquário sentencia:

- 6 horas, meu caro. Hora de fechar.

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