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Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora, entre outros, de Tortura e sintoma social (Boitempo, 2019)

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Resiliência

"Os habitantes originários do Brasil foram continuamente atacados e dizimados, desde o Descobrimento. As violações mais dramáticas dos direitos dos índios ocorreram, sem dúvida, no período da ditadura militar", escreve a psicanalista Maria Rita Kehl

(Foto: Thiago Gomes / Fotos Públicas)
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Por Maria Rita Kehl

(artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)

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Nos últimos anos da ditadura militar de 1964-85, os militantes urbanos pela volta da democracia também se envolveram na campanha pela demarcação das terras indígenas. Só muito mais tarde, durante o período em que participei da Comissão Nacional da Verdade como responsável pelo grupo que investigou Graves Violações de Direitos Humanos contra camponeses e indígenas, compreendi o pleno alcance daquela reivindicação.

Se os habitantes originários do Brasil foram continuamente atacados e dizimados, desde o Descobrimento até pelo menos a Constituição de 1988 (quem não se lembra da intervenção performática do grande Airton Krenak na Assembleia, que cobriu lentamente o rosto com graxa preta na medida em que denunciava as atrocidades cometidas contra os povos indígenas?), as violações mais dramáticas dos direitos dos índios ocorreram no período das chamadas “grandes obras de desenvolvimento”(cruz credo!) da Amazônia.

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Sob o pretexto de que os povos originários que habitavam aquelas terras representavam o atraso, o governo ditatorial promoveu/ autorizou a invasão de territórios e a dizimação de populações indígenas. Na abertura da rodovia Transamazônica, por exemplo, aviões militares jogaram no território dos Waimiri-Atroari um pó semelhante ao agente laranjaempregado contra Vietcongs pelo exército norte americano. “Caía aquele pó do céu… a gente rolava no chão, parecia que o corpo estava queimando por dentro…”.

Em Roraima, BR 174 foi aberta por dentro do território Yanomami para dar passagem a garimpeiros e madeireiros. Os índios, sem imunidade, morriam de gripe, sarampo, catapora. “Marcados”, série de fotos de Cláudia Andujar feitas naquele período, revela adultos e crianças sobreviventes, frágeis e famintos, portando no pescoço plaquinhas com um número que indicava a vacinação empreendida pelo governo, quase tarde demais. A semelhança com fotos de sobreviventes de campos de concentração é assustadora.

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As regiões sul e sudeste são as terras dos resilientes Guarani. Estes, desde o Império, quando Pedro Segundo concedeu suas terras para a companhia Mate Laranjeira, se acostumaram a ser expulsos e voltar. Eram enxotados para o Paraguai. Voltavam. Como? “A pé… pelo rio…pelo mato…”. Morreram, muitos. Como os Yanomami, morriam mais de gripe e sarampo (“doenças de branco”) do que de tiro. Nos anos 1970 já se sabia que os índios não tinham resistência para nossas doenças banais – mas o Estado não vacinava os agentes sertanistas nem enviava vacinas para salvar os indígenas. Entrevistamos o alagoano Antonio Cotrim, que se demitiu de emprego estável na FUNAI e concedeu uma entrevista à revista Veja (na época, progressista) onde explicava sua demissão: “Não quero ser coveiro de índios”.

Leio hoje nos jornais que Babau, o carismático cacique Tupinambá da região de Pau Brasil, no sul da Bahia, acaba de deixar – mais uma vez! – a prisão. Quem estudou até o terceiro ano primário deve saber que os Tupinambá foram os primeiros índios avistados pela esquadra de Cabral ao chegar em terras do Pau Brasil. O cacique garboso do quadro da Primeira Missa é um Tupinambá.

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Quando fui, com o pesquisador Inimá Simões e o cineasta Vincent Carelli, do Vídeo nas aldeias, entrevistar lideranças Pataxó e Tupinambá, conhecemos o cacique Babau. Carismático, alegre, solar. Tinha acabado de voltar de mais um episódio de prisão. Seu crime: defender o território de seu povo e de seus ancestrais. Reproduzo um pequeno trecho das recomendações que encaminhou, em nome de seu povo, à CNV.

“De 2000 para cá começamos a recuperar terras, mas as “violações” voltaram para cima de nós com força total. Em 2008, 180 homens da Polícia Federal com helicópteros cercaram a aldeia, o dia todo ficaram atirando, jogando bombas de gás lacrimogêneo. Conseguimos denunciar para o governo Lula. Os juízes da região concentraram os processos em mim. Fui preso em 2010, passei por vários presídios, inclusive um de segurança máxima em Mossoró (RN). Teve pressão do pessoal de Direitos Humanos em Brasília, da imprensa, aí soltaram a gente. A terra Tupinambá é bonita, sagrada. Há três anos um ministro (José Eduardo Cardoso) está com os papéis para demarcar nossa terra, mas tem contestação dos fazendeiros. Eles já perderam, mas continuam pressionando, e eles não assinam. São só 47.350 hectares para 10 mil índios”.

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“Os Tupinambá vivem bem na mata porque sabem caçar, pescar e cultivar. Somos hoje os únicos índios na região que produzimos farinha de mandioca, mas nossa farinha, eles divulgam que é o pequeno agricultor que produz. Fomos os primeiros a plantar cacau na mata, agora eles querem a mata para produzir cacau. Os brancos compravam coisas para nós da cidade e nos vendiam, mas nos roubavam. Os encantados (os mortos) orientaram para nós estudar para não nos roubarem. Aí, esses comerciantes ficaram contra nós”.

“Nós somos um povo altamente orgulhoso. Nossos avos criaram a gente para não depender de ninguém. Não aceitamos cesta básica da Funai, queremos comer o que a gente planta. A fome foi instituída desde Getúlio Vargas, quando nos cercaram e não nos deixaram sair”.

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“Nós preservamos matas, bichos, águas não fazemos grandes empreendimentos. A gente não precisa se matar para enriquecer; basta ter onde viver e o que comer, ter nossa cultura, rezar, respeitar nossos encantados”.

“Agora aqui tem onça, sussuarana, gato Açu, macaco, peixes, cateto, veado, todos os peixes, águas melhoraram. Processamos município São José Vitória para tratar esgoto e a gente exige que limpe o rio Uma, que atravessa nosso território”.

“Quando tá com fome, o índio se rende. Aí aceita cesta básica, a criança cresce vendo o pai sem trabalho e vendo comida dada de esmola; quando falta a cesta básica não sabe trabalhar para comer, fica passando fome. Tem que aprender a trabalhar vendo os pais trabalharem. Quando corta esta tradição o índio fica pobre, mendigando, sem dignidade. Aqui tem dignidade, sem alcoolismo, drogas.  O índio sem a cultura deles, sem espaço pra plantar e caçar, recebendo só ajuda do governo – isso destrói o índio. Sem espaço não tem liberdade nem dignidade”.

Durante a pesquisa do capítulo indígena tive acesso a um excelente depoimento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Não tive como anotá-lo, mas sei que termina mais assim: “Muita gente pensa que o índio deseja deixar a mata e viver na cidade. Engano. O índio na cidade fica triste. Longe de sua aldeia vai viver num barraco apertado; vai trocar sua vida livre e soberana por sedentarismo, comida industrializada, vai tomar refrigerante, vai passar os dias diante da televisão. Deprimido”.

Ou também, como no filme Ex-pajé, de Luiz Bolognesi, vai aderir a uma seita evangélica. Quem sabe, com esse triste desfecho, o presidente “cristão” (pobre Jesus Cristo, quantas maldades feitas em seu nome…!) pense que afinal o índio se civilizou.

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