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Leonardo Boff

Ecoteólogo, filósofo e escritor. Escreveu Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; em espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996

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Se Sócrates vivesse hoje

A pós-verdade não se identifica com as fake news: estas são mentiras e calúnias difundidas aos milhões pelas mídias digitais contra pessoas ou partidos. Tiveram um papel decisivo na vitória de Bolsonaro bem como na de Trump. Aqui vale o descaramento, a falta de caráter e o total descompromisso com os fatos

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Vivemos tempos dos pós: pós-moderno, pós-capitalista, pós-neoliberal,
pós-comunismo, pós socialismo, pós-democracia, pós-religioso,
pós-cristão, pós-humano e recentemente pós-verdade. Praticamente tudo
tem o seu pós. Tal fato denota apenas que não encontramos ainda o nome  que define o nosso tempo, vivendo reféns do velho. Contudo, assomam,  aqui e acolá, sinais de que algum nome adequado está por vir. Em  outras palavras, não sabemos ainda como definir a identidade de nosso  tempo.
 

Assim ocorre com a expressão pós-verdade. Ela foi cunhada por um
dramaturgo servo-norte-americano, Steve Tesich num artigo da revista
The Nation de 1992 e retomada por ele depois ao referir-se  ironicamente ao escândalo da Guerra do Golfo. O presidente Bush Filho,  reunindo todo o Gabinete, pediu licença para retirar-se por alguns  minutos. Fundamentalista, ia consultar o bom Senhor. Diz, “de joelho  pedi ao Bom Senhor luzes para a decisão que iria tomar; ficou-me claro  que devíamos ir à guerra contra Saddam Hussein”. As informações mais  seguras  afirmavam que não havia armas de destruição em massa. Era uma
pós-verdade. Mas graças ao “Bom Senhor”, contra todas as evidências
reafirmou: “Vamos à guerra”. E bárbaros, foram e destruíram uma das
civilizações mais antigas.
 

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O dicionário Oxford de 2016 a escolheu como a palavra do ano. Assim a
define:”O que é relativo a circunstância na qual os fatos objetivos  são menos influentes na opinião pública do que as emoções e crenças  pessoais”. Não importa a verdade; só a minha conta. O jornalista
britânico Matthew D’Ancona dedicou-lhe todo um livro com o título
“Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news
(Faro Editorial 2018). Ai mostra como se dá a predominância da crença
e convicção pessoal sobre o fato bruto da realidade.
 

É doloroso verificar que toda a tradição filosófica do Ocidente e do
Oriente que significou um esforço exaustivo na busca da verdade das
coisas, sendo agora invalidada por um inaudito movimento histórico que
afirma ser a verdade da realidade e da dureza dos fatos algo  irrelevante. O que conta serão minhas crenças e convicções: só serão  acolhidos aqueles fatos e aquelas versões que se coadunam à estas  minhas crenças e convicções, sejam elas verdadeiras ou falsas. Elas  representarão para mim a verdade. Isso funcionou largamente na  campanha presidencial do Donald Trump e de Jair Bolsonaro.
 

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Se Sócrates que dialogava incansavelmente com seus interlocutores
sobre a verdade da justiça, da beleza e do amor, constatasse a  predominância da pós-verdade, seguramente não precisaria ser obrigado
a tomar a sicuta. Morreria de tristeza.
 

A pós-verdade denota a profundidade da crise de nossa civilização. Representa a covardia do espírito que não consegue ver e conviver com
aquilo que é. Tem que deformá-lo e acomodá-lo ao gosto subjetivo das
pessoas e dos grupos geralmente políticos.
 

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Aqui valem as palavras do poeta espanhol, António Machado, fugido da
perseguição de Franco:”A tua verdade. Não. A verdade. A tua guarde-a
para ti. Busquemos juntos a verdade”. Agora vergonhosamente não se
precisa mais buscar juntos a verdade. Educados como individualistas
pela cultura do capital, cada um assume como  verdade a que lhe serve.
Poucos se enfrentam com a verdade “verdadeira” e se deixam medir por
ela. Mas a realidade resiste e se impõe e nos dá duras lições.
 

Bem observava Iya Prigogine, prêmio Nobel em termodinâmica em seu
livro o Fim das Certezas (1996): vivemos o tempo das possibilidades
mais do que das certezas, o que não impede de buscar a verdade das
leis da natureza. Zygmunt Bauman preferia falar “das realidades  líquidas” como uma das características de nosso tempo. Dizia-o antes como ironia pois assim se sacrificava a verdade das coisas (da vida, do amor etc). Seria o império do evey thing goes: do vale tudo. E  sabemos que nem tudo vale, como estuprar uma criança.
 

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A pós-verdade não se identifica com as fake news: estas são mentiras e
calúnias difundidas aos milhões pelas mídias digitais contra pessoas
ou partidos. Tiveram um papel decisivo na vitória de Bolsonaro bem
como na de Trump. Aqui vale o descaramento, a falta de caráter e o
total descompromisso com os fatos. Na pós-verdade predomina a seleção
daquilo, verdadeiro ou falso, que se adequa à minha visão das coisas.
O defeito é a falta de crítica e de discernimento para buscar o que de
fato é verdadeiro ou falso.
 

Não creio que estamos diante de uma era da “pós-verdade”. O que é
perverso não tem sustentação própria para fundar uma história. A
palavra decisiva cabe sempre à verdade cuja luz nunca se apaga.

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