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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Sinto a crueza da vida em seus pés descalços

"Quando dou por mim, revejo a camponesa de bronze, melancólica e irredimível, sentada no banco de pedra". Leia a crônica de Flávio Ricardo Vassoler, com ilustração de Luanna Falcão

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Íngreme como ela só, a rua do Quebra Costas, em Coimbra, no coração histórico de Portugal, desvela uma inusitada camponesa de bronze sentada em um banco de pedra. Com os cabelos envoltos por um lenço, vestido lusitano recatado, o braço direito escorado em um jarro d’água (ou seria de vinho?) e as pernas cruzadas a desembocar em delicados pés descalços, a camponesa tem o semblante melancólico de quem sente saudade sem ter podido se despedir. 

Súbito, a camponesa some. 

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Em seu lugar, despontam um rapaz e uma moça cabisbaixos. As pontas de seus dedos ainda se tocam com delicadeza, mas a união é tênue e quebradiça como as folhas de outono que a camponesa recolhe com seu restelo enquanto entoa um fado pesaroso – e irredimível. 

A quatro passos do banco de pedra, um senhor sob um chapéu à la Fernando Pessoa sofre com o silêncio cabisbaixo do casal. Maestro sem batuta, o velho retesa o punho direito com sofreguidão, como se ainda fosse possível reger o perdão. Quando as lágrimas lhe transbordam e começam a deslizar, errantes, pelos vincos de seu rosto arado pela vida, o velho morde o punho com força e impotência enquanto tenta, em vão, estancar os soluços sob o chapéu.

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Súbito, a moça enxuga os olhos marejados com o dorso da mão direita, levanta-se do banco de pedra e começa a descer a Quebra Costas em minha direção. Ao passar rente ao meu lado a ponto de eu me eriçar com a calidez de seus suspiros, ela me me mira com dor e decisão. 

Como quem tateia, eu lhe pergunto:

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– Nos conhecemos? 

Ela vira o rosto ladeira abaixo, sem adeus.

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Inalo o rastro delicado e incisivo de sua fragrância (fui eu quem lhe dei esse perfume?). 

Dói. 

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O senhor sob o chapéu se aproxima do rapaz, que enterrara o rosto convulso nas mãos. 

Quando o velho pousa a mão esquerda sobre o ombro direito do jovem, o rapaz iça o rosto (será ela?) e esbugalha os olhos: eles se parecem... comigo. 

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Quando dou por mim, revejo a camponesa de bronze, melancólica e irredimível, sentada no banco de pedra. 

Sinto a crueza da vida em seus pés descalços. 

Ilustrado por Luanna Falcão - Siga seu instagram

Flávio Ricardo Vassoler é Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor das obras O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019) e Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). É colunista do site Brasil 247, para o qual escreve ficções, semanalmente, sobre sua experiência nômade no continente europeu. Colabora para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, bem como para as revistas Veja, Carta Capital e Piauí. Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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