Um corpo que cai
A insensibilidade epidérmica da patroa custou a vida da criança, mas a patroa não está só neste instante especialmente insensível da vida no planeta
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Caia o menino feito o que ficou para trás, enquanto a mãe passeava o cachorro da patroa. A queda não revelou senão o desalento do choro calado no vácuo do instante final. Passada a dor (que não passa) o que segue é história – ora farsa, ora tragédia...
A insensibilidade epidérmica da patroa custou a vida da criança, mas a patroa não está só neste instante especialmente insensível da vida no planeta.
Acompanham-na todos os que não entendem que políticas públicas inclusivas são a única saída e a verdadeira obrigação de Brasília – todo o demais se acomodaria, menos o deixar a criança só no elevador, enquanto sua mãe passeia nossos cachorros...
Eleva a dor, elevador...
Deixemos as ilusões pueris de lado: o valor passeio do cão sobrepujou o valor cuidar da criança. Em todos os sentidos...
Houve, ademais, sinestesicamente falando, uma profusão de sentidos. Do latido vencido na rua enfim ganha, para o choro do filho trocado pelo bicho que o substituiu na companhia da mãe...
A patroa que compõe a elite branca não teve paciência – com o cachorro que não passeava e com o filho da empregada que não protegia...
Estorvo, teu nome é sensibilidade perdida...
Neste instante choram milhares de mães a dor do infante que não voou. Seguem chorando Marias e Clarisses. Marias negras, Clarisses brancas, ambas amarelas, vermelhas, todas tristes, todas, um dia, também impacientes. A impaciência mora ao lado da intolerância e, quando um intolerante perde a tal paciência, a resposta equipara um cão a uma criança em seu inconsciente...
Não conheço a patroa, mas a pintam abastada. Conheço, entretanto, sua atitude blasé. Entendo que ela não queria a queda do pequeno. Ela apenas não se sensibilizou o suficiente com o choro do menino, em ordem a evitar a tragédia anunciada...
Esse o seu pecado; ela matou o menino antes dele cair.
Ela o matou com a indiferença com a qual apertou o botão do elevador; ela o matou quando não o pegou no colo, quando não o protegeu – do elevador, do telhado, das janelas, do perigo. Dela própria, impaciente elitista...
A queda explicada na insensibilidade (ninguém coloca uma a criança no elevador e aperta um botão, como a querer fazê-lo sumir do seu andar) da patroa branca e rica não aplaca nosso sentimento, nem turva nossa visão – antes o contrário, demarca a certeza de que há inimigos ainda mais perigosos que o vírus pandêmico.
Contra tal inimigo não bastarão luvas e cuidados higiênicos. Nem esquecer cães para abraçar crianças – ainda que seja este um bom começo, sem qualquer menoscabo aos animaizinhos que ocupam os lugares de pequenos infantes da fome em nosso mundo de anil e sem poesia.
A indiferença segue sendo mãe da miséria. A indiferença trás em seus lábios o amargor da morte.
A indiferença não anda só, vem em ondas e de mãos dadas com o desamor, com o abandono, a insensibilidade, a impaciência, a intolerância, a eugenia, as ditaduras que albergam o pensamento único. Com a homofobia, com o racismo.
Sim. Com o racismo, nossa última quimera. Nosso ‘peccato mortale’.
Temos pensado muito sobre a queda e suas circunstâncias. O que nos ocorre é a pergunta que não cala: teria a criança caído fosse branca?
O que tem isso na ordem da queda? Muito.
Fosse o filho de uma amiga (branca, talvez rica, talvez blogueira) que visitava a patroa e amasse passear cães, mas estivesse acompanhada do filho pequeno que impedia o passeio, muito provavelmente tivessem feito a mesma troca que a mãe do pequeno anjo fez (sem querer fazê-la): meu filho por teu cão...
Trocadas as guardas (rebento pelo cão passeador), teria a patroa trocado tanto quanto o seu dever de zelo (exatamente como fez com o filho de sua empregada negra) pelo cadafalso do elevador?
Quando os valores se fundem, a ponto de não se renderem ao contorno da sensibilidade, o resultado que se repete é a tragédia seguida da farsa.
A triste herança disso tudo segue sendo o desamor.
O desamor que explica a absurda inversão de nossos valores está a nos dizimar enquanto espécie. O desamor, seguindo seu rumo triste, custou a vida do pequeno que buscou a mãe, precipitando em queda livre.
A queda dele é culpa de todos nós que não conseguimos construir uma sociedade. A patroa insensível não é senão um reflexo do nosso descaso com o próximo, suposto que, se não conseguimos entender o vírus (que é o menos), nitidamente não iremos entender a partilha e a sensibilidade (o mais).
Falta amor ao mundo e a demissão de regina duarte bem provável impeça a família destroçada de receber um e-mail (ainda que ela não seja coveira) alusivo ao evento. Imagino que na mensagem ela diria o de sempre (blá, blá, blá). Isso mataria o menino uma vez mais.
Tristes trópicos, os de sempre seguem fazendo muita falta e a sensibilidade mais ainda!
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