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Marcelo Moraes Caetano

Psicanalista, doutor em Letras, professor adjunto na UERJ. Autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior

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Um pacto com o diabo: entre Goethe e Machado de Assis, o desespero pelo poder

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Hoje quero caminhar no terreno do insondável. Entro nas veredas da sombra. Na obscuridão humana em sua essência, que frequentemente é traduzida, ao longo dos séculos, no cancioneiro e na literatura, nos enigmáticos episódios de “pacto com o diabo”, onde uma pessoa vende sua alma para chegar ao poder. E, depois, é furiosamente cobrada. Afinal, foi nada menos do que a alma que se deu como garantia para o pacto. 

No Brasil atual, nada pode ficar de fora das análises. Em meu livro “Platão e Aristóteles na terra do sol: as vertigens de um conservador reacionário brasileiro”, tese de pós-doutorado na Universidade de Copenhague, trato de como o paradoxo PRECISA ser encarado toda vez que queremos nos defrontar com a alma brasileira, que em essência é barroca, isto é, cheia de contradições que convivem lado a lado.
A dualidade sempre percorreu os caminhos da formação cultural e consolidação da Nação brasileira. E cultura é tudo. Um exemplo de cara: as duas maiores festas populares do Brasil são o carnaval (a cultura do corpo e do erotismo “pagão”) e as festas juninas (a cultura dos três dos principais santos do “sagrado” presente no catolicismo devocional brasileiro: Santo Antônio, São João, São Pedro). O Brasil é ao mesmo tempo sagrado e profano, rural e urbano, conservador e progressista, rico e pobre, preto e branco. Nossa cultura é o paradoxo vivo e respirando francamente.
No meu aludido livro, o primeiro capítulo encara a questão dessas dualidades, expressas na própria intertextualidade do título (“Deus e o diabo na terra do sol”, do Glauber Rocha) como “Entre Deus e o Diabo: a guerra e a barbárie vistas como tendo ‘caráter conservador e benéfico’”. Mostro como o “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, apela explicitamente para as digressões de Riobaldo sobre o diabo, cuja raiz etimológica está presente até no nome “Diadorim”. Com isso, o personagem passeia, na sua rudeza de jagunço, pelas sutilezas multicoloridas do imaginário brasileiro, que nos torna um povo com coesão exatamente no alto da corda bamba dos paradoxos.

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Goethe, muito antes, expôs em seu “Fausto” toda uma miríade de narrativas medievais da cultura europeia ao redor da tentação de se vender a alma às forças sombrias para se atingir o poder mundano em sua expressão de destrutividade mais verbal. 

Começo este capítulo do meu aludido livro/tese analisando os trechos em que Machado de Assis, tão conhecedor da alma brasileira, ironiza, em seu personagem Quincas Borba, um “humanitismo” em que é a barbárie da destruição das diferenças que deveria vencer a civilização da inclusão dessas mesmas diferenças. É quando ele diz que a guerra tem um “caráter conservador e benéfico”, exatamente porque, enquanto “política” de guerra, deseja tão somente o atalho do extermínio de qualquer “tribo” oponente. Uma outra seção inteira desse meu mesmo livro é dedicada à luneta mágica do Bruxo do Cosme Velho: “Machado de Assis, um malandro carioca” – chamei-a assim.

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Sobre o “humanitismo” do delirante Quincas Borba, trata-se, muito em resumo, do que está em jogo atualmente no Brasil. O que desejamos que seja o nosso projeto de Nação? Um projeto de barbárie, em que as diferenças são esmagadas e exterminadas sumariamente com armas e ausência de assistência de vacinas, remédios e educação? Ou um projeto de civilização, em que as diversidades são reconhecidas, assimiladas e abordadas na complexidade que exigem?

Não se trata mais de uma mera “questão de opinião”. Não se trata mais de uma narrativa de “direita” contra “esquerda”. Trata-se, muito pura e simplesmente, de uma encruzilhada definitiva, em que escolheremos um projeto de extermínio das diferenças OU um projeto de conciliação das diferenças.

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No Brasil, em que o paradoxo é a regra absoluta que reina nossas almas, o projeto de erradicação das diferenças significaria decepar e mutilar, da nossa compleição, um dos nossos “lados opostos” que, ao longo de nossa história, tem convivido e criado nosso espírito. Nada seria menos brasileiro do que isso. 

Hoje, o chamado “conservadorismo” não é mais do que uma máscara para se justificarem os pretextos de extermínio das diferenças, custe o que custar. É o “caráter conservador” do projeto de extermínio que Machado de Assis mostrou há pouco com seu Quincas Borba já cadáver (a voz de um morto para expressar uma normose já decadente é algo tão machadiano...).
É por isso que estamos vivenciando o que podemos chamar de uma HIPOCRISIA INSTRUMENTAL, perfeitamente encaixável no RACISMO ESTRUTURAL brasileiro, que está perfeitamente aparelhada para tentar calar qualquer atrocidade – QUALQUER ATROCIDADE POSSÍVEL! – que seja cometida pelo lado “conservador”.
Existe pedofilia do lado “conservador”? Pois então de agora em diante qualquer pessoa que demonstrar preocupação e interesse pela defesa de menores e que seja contra a exploração sexual infantil será tachada de “comunista”. Não há NADA que o lado “conservador” possa fazer que não venha a ser, pela hipocrisia instrumental, justificado. NADA! Nós precisamos entender que é disso que se trata. É, para recorrer a outro filme do Cinema novo brasileiro, “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”. Precisamos escolher se estamos do lado do dragão da maldade ou do santo guerreiro.

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É esse embate tão barroco, tão brasileiro, que nos traduz tão bem, que está em xeque. E será essa a questão essencial que permanecerá a ser enfrentada no Brasil pós-Bolsonaro, terra devastada e contaminada pelo empoderamento das forças destrutivas e exterminadoras que uma parcela considerável de nosso povo passou a expressar sem o menor pudor. 

Faço um parêntese. Apesar de sabermos que se deflagrará uma batalha nos moldes da velha Ilíada, já se pode saber quem sairá com o velocino de ouro e quem será colocado de escanteio numa fragorosa derrota. O lado “conservador”, em seus 15 minutos de fama, já começa a experimentar sua queda livre. Ele será escanteado na história do Brasil, mas não sem a mancha que ele próprio plantou para si. Como qualquer normose, sua vida tem prazo de validade. As novas gerações, que levarão o mundo (redondo) nas costas no presente e futuro breve, não se identificam com esse “projeto” de Nação baseado no extermínio das diversidades. 

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Nada é mais brasileiro do que a diversidade. 

Esse nosso traço cultural é tão forte que chega a se embrenhar no tecido da nossa compleição enquanto povo. O grande Machado de Assis, não à toa chamado de “Bruxo” pelo igualmente grande Carlos Drummond de Andrade, pressentia essa característica de paradoxos na essência brasileira. E é incrível como essa pessoa pôde prever tão meticulosa e sofisticadamente a alma brasileira num momento anterior ao êxito da Teoria Psicanalítica, de Freud, ao estruturalismo e pós-estruturalismo em Ciências Humanas. A Marx, Engels, Lukács, Hannah Arendt...

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O conto a “Igreja do diabo”, de Machado, me soa como uma verdadeira alegoria não apenas do momento de trevas à solta que estamos atravessando, como também do pós-apocalipse que há de raiar depois da ascensão dos zumbis que estamos sendo obrigados a vasculhar. No conto, o diabo, com a munição de seu sarcasmo e deboche habituais, se apresenta a Deus assim:

“— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.”

E, argumentando em sua astúcia traiçoeira, recebe do próprio Deus a permissão para criar a sua própria Igreja, podendo contar com os fiéis diabólicos que sua nascitura seita há de fazer marchar como um gado e um regimento ressentido e cheio de recalques e depravações inconfessáveis.

E Deus pergunta ao próprio diabo:

“— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja. 

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus.”

Estou resumindo o conto de Machado de Assis. Não o Brasil atual...

Pois bem, seguindo o conto, quando tanta maldade é catalisada e centralizada ao redor de um culto ao Cramulhão, chegando-se ao auge de erguer-se a ele uma igreja particular, uma Igreja do diabo – continuo narrando o conto machadiano, não a realidade atual brasileira... –, eis que a criatura humana universal (e brasileira em particular) purga, na catarse aristotélica, seu lado mais sombrio. De tal forma, que o novo ser humano (mais uma vez, universal e brasileiro) faz o paradoxo se reconciliar, e torna-se um ser humano que  compreende a necessidade da primeira linha da cartilha mais básica do processo civilizatório: a solidariedade. Não se trata de um “otimismo” pueril increpado por Voltaire. Trata-se de um estado-de-arte da ciência que não pode mais “desver” tudo o que já viu. É epistemologia, filosofia da ciência...
A humanidade pós-Igreja do diabo chega a um fundo do poço tão degradante, expondo suas tripas tão taradas e sem qualquer possibilidade de justificação, que só lhe resta um retorno à luz. Aprende a compartilhar, entende que a sociedade só estará boa quando for boa para TODAS as pessoas, independentemente de classes, crenças, etnias, orientações sexuais, gêneros, nacionalidades.

O Tinhoso consegue – graças sejam dadas à sua infinita vaidade e ao seu egocentrismo interminável – levar as pessoas àquilo que Deus, “com os olhos cheios de doçura”, como mostra Machado ainda no seu conto, permitiu que ele levasse: o amor ao próximo. A empatia como âncora fundamental para tornar a imensa diversidade humana uma cultura de civilização, não um caos de barbárie e extermínio. 

Por falar em diversidade e em Brasil, o Olavo de Carvalho adorava bater o bumbo de que a miscigenação no Brasil já havia encontrado de tal forma uma “homogeneidade” (a fixação neurótica e normótica pela tal “homogeneidade”...), que seria uma bobagem, para ele e seus seguidores, falar em questões raciais e étnicas no Brasil. Daí que seu gado gosta de utilizar frases de efeito como “Não existe dia da consciência negra. Existe dia da consciência humana”. Lacração pura! (Contém ironia.) 

Nada é mais importante e urgente no Brasil, ainda no século XXI, do que a questão racial e étnica. O racismo CONSTRUIU o Brasil, parafraseando Jessé Souza. Eu costumo dizer que talvez a nossa primeira entrada no mundo da identidade nacional tenha se dado graças ao apoio blasfemo de parte substancial do povo brasileiro à manutenção da escravidão, tanto nos moldes dos séculos XVI até o XIX, quanto nos moldes de exclusão e erradicação dos séculos XX e XXI. 

Com essa base de racismo estrutural, todas as outras formas de preconceito e discriminação da camada “conservadora” do Brasil foram, pouco a pouco, saindo das sombras, se esgueirando como serpentes, para finalmente ganhar os holofotes com o bolsolavismo. É a isso que chamo de APARTHEID MULTIDIMENSIONAL. Uma semente de preconceito classista, racista e escravocrata, enraizada nas nossas capitanias hereditárias, que foi pouco a pouco se engrossando com outros preconceitos e apologias a extermínios de quaisquer diferenças.
É uma luta que salta da “Física” de Aristóteles para a sua “Metafísica”. É uma luta de espírito mesmo, espírito muito no sentido de Hegel, em que esse Geist é abordado radicalmente em sua própria fenomenologia.

O Bispo Dom Mauro Morelli, a respeito da visita de Bolsonaro à Basílica de Nossa Senhora de Aparecida, no seu dia, 12 de outubro, escreveu: “Bolsonaro em Aparecida comportou-se como Agente de Satanás. Desrespeitou a Mãe de Jesus e seus outros filhos e filhas, peregrinos famintos de vida com dignidade e esperança. Com seus endiabrados seguidores, deveriam ser presos em flagrante como arruaceiros. São Miguel, cuidado!” 

Sabe o que aconteceu? As pessoas não aguentam mais tanto sofrimento e, ao mesmo tempo, ser encharcadas de sentimento de culpa por serem tachadas de “polarizadas” ao se expressarem contra o óbvio.É impressionante como há ainda quem “pense” que o Brasil está “polarizado”. Que há “radicalismo” dos dois lados. Que ambos são “extremistas”. O discurso da “polarização” não pode, neste momento, ser mais estúpido.

Eu fico pensando se os judeus que eram encaminhados para os campos de concentração por Hitler eram chamados de radicais, extremistas, polarizados por abominar Hitler. Se os ucranianos que morreram de fome no holocausto de Stalin eram chamados de radicais por abominar Stalin.

E, veja, saudemos a História. Hitler e Stalin até conseguiram engrandecer economicamente suas nações. A Alemanha e a Rússia se tornaram superpotências sob o jugo desses dois genocidas sanguinários. Coisa que o incompetente corrupto nepotista jamais conseguiria. Valeu a pena? Claro que NÃO. Porque, como diria Fernando Pessoa às avessas: as suas almas eram demasiado PEQUENAS.Desço ao meu particular. Quando meu pai morreu de COVID, e eu e minha mãe estávamos internados em estado gravíssimo, havia na televisão alguém gargalhando de quem tinha COVID, imitando como era a asfixia que eu senti na pele. O enterro do meu pai foi feito pela MÃE dele, de 92 anos, porque minha mãe e eu estávamos quase morrendo de asfixia quando ele morreu, no mesmo hospital que ele. Não quero expor meu pequeno drama pessoal como exemplar, mas o exponho porque sei quanto ele representa de abjeto também em centenas de milhares, muito provavelmente milhões, de famílias brasileiras. Famílias que foram separadas como judeus e ucranianos pelos campos de extermínio de seus respectivos genocidas.

Ainda sobre a Covid, não se encomendaram as vacinas senão pela ação de governadores que o fizeram. O plano era matar mesmo? Como Hitler? Como Stalin? Assim como não se encomendou NENHUMA VACINA nem NENHUMA MEDICAÇÃO contra a varíola do macaco disponíveis facilmente no mundo todo para a população. Duas epidemias e uma só estratégia: NEGAÇÃO COMPLETA. O plano é matar? Como Hitler? Como Stalin?

O plano é o extermínio. Quem diz que há uma “polarização” pretende que possa haver diálogo com um projeto de extermínio. O que se poderia “dialogar” com Hitler? “Veja, vamos manter os campos de concentração, mas um pouquinho menores, pode ser?”... “Crianças, a partir dos 13 anos, tudo bem?”...

O projeto de extermínio não está sendo sequer disfarçado. Anunciou-se com trompetes monárquicos o projeto de extermínio das Universidades brasileiras. Como outro lado desse projeto mefistofélico, a verba concreta que se anunciou que vai ser exterminada do SUS extermina consigo todas as medicações oferecidas.

Pessoas com câncer, com HIV, com hepatite C, com diabetes grave, se depender desse “projeto”, simplesmente apertarão os cronômetros e, simplesmente, esperarão a morte chegar. Extermínio, sim, e em massa, sim.

E, vejamos, sem o direito de serem “radicais” CONTRA essa hipótese. Sem poder falar nada, porque isso seria “polarização” de suas partes...

Devem morrer. E caladas. 

Exatamente como judeus nos campos de Hitler e ucranianos no holocausto de Stalin. Extermínio. Mudo. Em silêncio absoluto.Tem sido assim com a COVID, com a varíola do macaco, com a Educação, com o SUS. Como Hitler. Como Stalin. Não se trata de defender uma “opinião” ou outra “opinião”. Trata-se de apoiar um holocausto do SUS e da Educação já devidamente anunciado. Trata-se de apoiar um projeto de extermínio em massa.Se esse projeto e seus defensores não configuram em si o arquétipo humano, histórico e ao mesmo tempo primordial, de pacto de sangue com o diabo – eu não faço ideia do que seja esse pacto denunciado em verso e prosa por nossos maiores artistas. Não faço ideia.

Nem eu, nem Goethe, nem Guimarães Rosa, nem Machado de Assis, nem o santo guerreiro, nem o carnaval, nem a festa junina...

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