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José Marcus de Castro Mattos

Poeta, psicanalista

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Uma lógica suicida

A cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) dessimboliza o Campo Discursivo, isto é, ela procura neutralizar – e, no limite, excluir – os elementos simbólicos que, a título de representantes, instituem as subjetividades, as sociedades e as culturas

A cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) dessimboliza o Campo Discursivo, isto é, ela procura neutralizar – e, no limite, excluir – os elementos simbólicos que, a título de representantes, instituem as subjetividades, as sociedades e as culturas (Foto: José Marcus de Castro Mattos)
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A DESSIMBOLIZAÇÃO/IMAGINARIZAÇÃO DO CAMPO DISCURSIVO
 
A cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) dessimboliza o Campo Discursivo, isto é, ela procura neutralizar – e, no limite, excluir – os elementos simbólicos que, a título de representantes, instituem as subjetividades, as sociedades e as culturas (Nota 01).

Esta dessimbolização faz parte da lógica que preside a reprodução e expansão planetárias do Capital (articulado à Ciência/Tecnociência), qual seja, a produção e mercancia tecnocientíficas do próprio Capital não devem ser confrontadas com quaisquer componentes que operem como mediadores simbólicos – vale dizer, como representantes – interpostos entre elas (N. 02).

Por que não deve existir tal interposição?

Porque ela remete o vetor 'produção-mercancia' a um campo – propriamente, o Campo Simbólico – que captura este mesmo vetor e o subsume a representantes, ou seja, a determinados significantes que, demonstrou-o exaustivamente a Antropologia (Lévi-Strauss) e a Psicanálise (Freud/Lacan), instituem e/ou fundam os laços sócio-discursivos (sociedades e culturas) e os enredos familiares (subjetividades) (N. 03).

Ora, ao subsumir o vetor 'produção-mercancia' a representantes/significantes o Campo Simbólico trabalha a contrapelo da lógica interna ao dispositivo capitalista-tecnocientífico na medida em que atrasa e/ou descontinua um modus operandi que deveria ser pautado única e exclusivamente pelo fluxo direto e imediato – atenção! – entre coisas (N. 04).

Neste sentido, a escandalosa pergunta que demarca o horizonte da cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) é:

∟ Para que a existência do Campo Simbólico/Discursivo – e, pois, para que a existência de subjetividades, sociedades e culturas – se o que nos interessa são as diretas e imediatas transações planetárias entre coisas? A não ser que tais excessos (as subjetividades, as sociedades e as culturas) sejam eles mesmos dessimbolizados, reificados, tecno-objetificados e... vendidos! (N. 05)

Todavia, por razões topológicas suficientemente demonstradas por JACQUES LACAN (1901 – 1981), não há dessimbolização que não resulte ato contínuo em imaginarização, ou seja, qualquer tentativa de neutralizar – ou, mais radicalmente, excluir – os componentes constitutivos do registro do simbólico (basicamente: significantes enquanto representantes em rede, e, pois, enquanto mediadores) aciona e sobreleva o registro do imaginário (basicamente: significados enquanto representações em série, e, pois, enquanto fixações).
 
II
 
REVIRAMENTO/COLONIZAÇÃO CAPITALISTA-TECNOCIENTÍFICO
 
Assim, a lógica que cauciona a cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) consiste em fixar representações em série lá onde ocorrem mediações operadas por representantes em rede, de maneira a neutralizar e/ou (no limite) substituir tais mediações e favorecer a 'livre' – vale dizer, a direta e imediata – extração/circulação daquilo que KARL MARX (1818 – 1883) genialmente denominou de Mehrwert (Sobrevalor ou Mais-valia) (N. 06).

Mas é precisamente neste ponto que a lógica do dispositivo capitalista-tecnocientífico emperra...

Por quê?

Porque a práxis intrínseca às subjetividades, sociedades e culturas – em suma, ao Campo Discursivo – caracteriza-se por tratar o real pelo simbólico, instituindo – a saber, fundando e/ou estruturando –, simultaneamente, quer as narrativas familiares (subjetividades) quer as civilizacionais (sociedades e culturas); ao fazê-lo, o registro do imaginário resta em segundo plano e a título de mero efeito representativo (significados) de articulações entre representantes (significantes) (N. 07).

Por outras palavras, a cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) confronta-se com o fato de estrutura inerradicável em acordo com o qual há a instituição e/ou fundação de subjetividades, sociedades e culturas se (somente se) o real for tratado pelo simbólico, e, pois, se (somente se) emergirem simultaneamente mediadores – a rigor, representantes/significantes e não representações/significados – que erijam e deem sustentabilidade ao Campo Discursivo.

Claramente: – Por imposição de sua lógica interna (cf. acima), o dispositivo capitalista-tecnocientífico tenta revirar e colonizar a estruturação que informa, organiza, agencia e faz operar as subjetividades, sociedades e culturas, procurando desesperadamente trazer para o primeiro plano da práxis aquilo que esta mesma práxis coloca em segundo plano, vale dizer, busca-se sobrepor o imaginário (representações/significados em série, direta e imediata circulação entre coisas, etc) ao simbólico (representantes/significantes em rede, circulação nos e pelos mediadores, etc); noutros termos, a cópula entre o Capital e a Ciência (Tecnociência) investe-se frontalmente contra o modus vivendi instituinte do Campo Discursivo, intentando cega e loucamente neutralizar o tratamento do real pelo simbólico e substituí-lo (no limite) pelo tratamento do real pelo imaginário.

Entretanto, o tratamento do real pelo simbólico (= práxis) não pode ser nem neutralizado nem muito menos substituído pelo tratamento do real pelo imaginário (= dispositivo capitalista-tecnocientífico), pois, caso isto ocorresse, as subjetividades, as sociedades e as culturas – em síntese, o próprio Campo Discursivo – implodiriam sem mais, empuxando tudo e todos para o Caos (anomia aberta, desarticulação imediata dos laços sociais, confronto direto entre forças, violência generalizada, passagens ao ato, etc).
 

Neste contexto, a cópula Capital-&-Ciência (Tecnociência) choca-se a cada instante com a práxis daqueles que Lacan viu por bem cognominar de 'seres-falantes' (parlêtres, no original francês), resultando desse enfrentamento tresloucado um trauma inassimilável, qual seja, almeja-se instituir subjetividades, sociedades e culturas no e pelo registro do imaginário – subsumindo-as, ato contínuo, ao vetor 'produção-mercancia' – lá onde são instituídas subjetividades, sociedades e culturas apenas e tão-somente no e pelo registro do simbólico.

Para dizê-lo de uma vez: – O reviramento e a colonização do Campo Discursivo pelo dispositivo capitalista-tecnocientífico são nada menos que traumáticos, ou seja, eles expressam a impossibilidade de as subjetividades, sociedades e culturas serem instituídas exclusivamente pelo registro do imaginário de maneira a restarem objetificadas e imergidas no fluxo transnacional de tecnomercadorias; no entanto, às escuras tal dispositivo fornece 'soluções' também elas imaginárias para os gritantes impasses criados por ele mesmo, auto-capturando-se por assim dizer em um círculo vicioso que cava sob seus pés uma no man’s land cada vez mais bárbara, niilista e mortífera (N. 08).

As respostas desde o traumatismo instalado pela cópula Capital-&-Ciência (Tecnociência) aí estão, deixando-nos nada menos que perplexos: tais respostas podem ser encapsuladas no abrupto encurtamento da tríade freudiana inibição-sintoma-angústia, reduzindo-se este importante constructo clínico apenas à angústia e expondo as subjetividades, sociedades e culturas a um sinistro cortejo de devastações ('novas doenças da alma', 'novas modalidades de gozo', etc) (N. 09).

Some-se a isso o colapso da transcendentalidade ontológica da Natureza face ao 'sujeito cognoscente e/ou consumidor' – responsável, tal colapso, pela desertificação ecossistêmica do planeta – e estaremos fartamente entregues à consecução daquilo que dois excelentes filósofos denominaram de 'calamidade triunfal' (N. 10).

Há alguma esperança?
 
Ora, ela está na salvaguarda fornecida pela própria práxis que nos institui como seres-falantes – repitamos: tratar o real pelo simbólico – e que faz obstáculo perene ao reviramento e à colonização do Campo Discursivo (subjetividades, sociedades e culturas) tal como violentamente assestada pelo dispositivo capitalista-tecnocientífico – recusemos: tratar o real pelo imaginário –; de fato, sem percebê-lo (inconscientemente pois, e isto é fundamental), respondemos com o retorno à simbolização, vale dizer, (e ninguém melhor do que Freud para divisá-lo), re-instalamos e re-significamos o desejo – atenção: o desejo e não a vontade – do Outro (N. 11).


 
Σ
 
(Nota 01) Cf. DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Editora Companhia de Freud, 2005.

(N. 02) Cf. DUFOUR, D-R. "O neoliberalismo: a dessimbolização, uma forma de dominação inédita", in: A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Editora Companhia de Freud, 2005: 199 – 209.

(N. 03) Cf. FREUD, S. "Totem e tabu" (1913), in: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIII (1913 – 1914). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

Cf. LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.

Cf. LACAN, J. "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953), in: Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998: 238 – 324.

(N. 04) Cf. MATTOS, J. M. C. "Freud com Marx (uma leitura inédita)", in: RETORNO A LACAN, cujo link é:

http://retornalacan.blogspot.com.br/2014/03/freud-com-marx-uma-leitura-inedita.html

(N. 05) IMMANUEL KANT (1724 – 1804) já nos alertara:

→ Tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço – portanto, o que não tem equivalente – é o que possui uma dignidade. (KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes [1785].) ←

(N. 06) Cf. MATTOS, J. M. C. "Freud com Marx (uma leitura inédita)", in: RETORNO A LACAN, cujo link é:

http://retornalacan.blogspot.com.br/2014/03/freud-com-marx-uma-leitura-inedita.html

(N. 07) A propósito do 'tratamento do real pelo simbólico', cito Lacan:

→ O que é uma práxis? Parece-me duvidoso que este termo possa ser considerado como impróprio no que concerne à Psicanálise. É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico. Que nisto ele encontre menos ou mais imaginário tem aqui valor apenas secundário. (LACAN, J. "A excomunhão", in: O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Sessão de 15 de Janeiro de 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Segunda Edição, 1998: 14.) ←

(N. 08) O filme Blade runner (1982), do diretor inglês RIDLEY SCOTT (*1937), mostra com precisão a barbárie, o niilismo e o morticínio imperantes na no man’s land capitalista-tecnocientífica.

(N. 09) A propósito da tríade freudiana inibição-sintoma-angústia remeto os leitores às excepcionais observações de Lacan em O seminário, livro 10: a angústia (1962 – 1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
 
(N. 10) A propósito da expressão 'calamidade triunfal', cito THEODOR ADORNO (1903 – 1969) e MAX HORKHEIMER (1895 – 1973):

→ No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento [Aufklärung] tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los da posição de senhores. Mas a Terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. (ADORNO, TH. e HORKHEIMER, M. "O conceito de esclarecimento", in: Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006: 17.) ←

(N. 11) Em acordo com a notação lacaniana para Outro, qual seja, Ⱥ: Autre barrée (Outro enquanto marcado pela Castração).

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