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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Uma trabalhadora sob o fascismo no Brasil

Afasto-me com os pães escuros, meio sem rumo, meio tonto da verdade com que nos falamos. Não sei o nome da trabalhadora. Aprendi, nos anos de repressão,E me a não identificar pessoas pelos nomes. Mas guardo a sua revolta, que um dia, se deus for humano, espero ser digno dela

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Nesta semana, conversei com uma trabalhadora que até agora não me sai da lembrança. Quando eu solicitei pães na padaria do supermercado, eu lhe disse:

- Por favor, escolha os mais escuros. Em branco, já basta o meu bolso.

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Ela concordou em silêncio. Então eu voltei: 

- Com este desgoverno, a situação é esta: sem dinheiro, e piorando mais. 

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Ao que ela, enquanto escolhia os pães escuros, me respondeu:

- O senhor é o primeiro que escuto falando assim.    

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Não sei se eu era o primeiro cliente a conversar com ela, porque vivemos numa imitação de sociedade de castas, ou se eu era o primeiro a reclamar do desgoverno enquanto comprava pão. Mas na hora a dúvida que me ocorreu foi outra: será que ela quer dizer que sou apenas uma voz isolada? Que ela própria não acompanha a minha reclamação? Por isso voltei, desta vez mais didático, não sem antes de me virar pra ver se havia mais gente em torno: 

- As pessoas não fazem uma relação entre o que estão vivendo e o maldito que está no poder. As pessoas sentem o sofrimento, mas acham que não tem nada a ver com o sujeito em Brasília.

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Então a trabalhadora levantou a cabeça e me olhou de frente, com estas palavras difíceis de serem esquecidas. 

- Eu trabalho o dia inteiro, todos os dias, sábado, domingo e feriado. No fim do mês, o que recebo é pra pagar 400 de aluguel, uma pessoa pra passar um olho em minha filha, e as passagens. Só 20 reais me sobram. Somente. 

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E fechando o saco de pães, completou:

- O meu marido é quem paga a feira e a carne. Ele é ajudante de pedreiro. 

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Ao que eu voltei:

- E como estão as mulheres que enfrentam a vida sozinhas, com filhos, como a maioria das mulheres do Brasil?

Talvez eu tenha inflamado uma corda sensível com essa pergunta, porque ela me falou, rubra e sem medo: 

- Eu ia ficar lascada. Olhe – e aponta para os trabalhadores do setor de frios -, aqui tem muito colega que veio do corte da cana. Eles falam o que era trabalhar de sol a sol, se furando nas folhas de espinho, cortando ligeiro pra produção crescer. Então eles aqui se submetem a tudo pra não voltar. E não podem adoecer. 

E respondo: 

- A senhora viu o que o ministro da “saúde” falou? Que não era com ele a falta de oxigênio no Amazonas. Como pode? Essa falta de oxigênio atinge todo brasileiro, tem a ver com todo brasileiro. Como é que um ministro fala que não tem nada com isso? Ele é o quê?

Então volta a trabalhadora: 

- Eu queria ter força pra gritar, pra derrubar esse governo de qualquer maneira. Eu queria ter força!

Então eu lhe conto um segredo, uma confissão rara, mas lhe falo porque a sua sinceridade foi tão grande, que me escapam estas palavras: 

- Eu sou escritor. Se um dia eu tiver talento, se um dia eu for feliz, quero escrever sobre a sua revolta. Quero estar à sua altura. 

E me afasto com os pães escuros, meio sem rumo, meio tonto da verdade com que nos falamos. Não sei o nome da trabalhadora. Aprendi, nos anos de repressão, a não identificar pessoas pelos nomes. Mas guardo a sua revolta, que um dia, se deus for humano, espero ser digno dela. 

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