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Brasil

Ah, moleque!

Do poeta ao empresário, a alcunha do brasileiro se multiplica no ritual do cumprimento

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Todos os dias, quando entro ou saio do meu prédio, o porteiro me cumprimenta do mesmo jeito: “Olá, empresário” ou “bom dia, empresário!” Nunca fiz questão de esclarecer o mal-entendido, mas a verdade é que nunca fui empresário, nem nada parecido.

A alcunha involuntária talvez diga algo a respeito do mercantilismo contemporâneo: até que se prove o contrário, está todo mundo multiplicando dinheiro. Isso quando somos cumprimentados, pois muitas vezes toda a interação que um ser humano tem com outro ao longo do dia é nos termos “CPF na nota?” e/ou “Crédito ou débito?”

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Em 1968, o cronista Nelson Rodrigues já tinha a mesma intuição: “Hoje, o brasileiro é um povo que cumprimenta pouco. Outrora, não. O Brasil de 1919 cumprimentava como nenhum outro país. Igreja, enterro, casamento, tudo era saudado. Em nossos dias, o brasileiro é um ser crispado de solidão.” E revela, num acesso de saudosismo: “As pessoas se saudavam assim: Olá, ilustre! Ou: como vai, poeta? Ou ainda: escuta aqui, batuta!”

Há alcunhas e cumprimentos que ainda hoje revelam a bem aventurança de se encontrar um conhecido na rua. Pra reforçar a envergadura física ou moral de alguém, dizemos: “Olá, grande!” Quando a pessoa é por algum critério valiosa, diz-se: “Boa tarde, meu caro!” E há aquela expressão dita geralmente (mas não necessariamente) ao professor: “Bom dia, mestre!” Há ainda “Olá, parceiro”, “Que tal, companheiro?” ou “Escuta aqui, camarada”, os dois últimos podendo sugerir algum comprometimento político. “Fala, negão” é comum nas ruas. “Olá, patrão” pode ser dito por mafiosos. “Fala, tio” é dirigido ao tio mesmo ou a qualquer “tiozão da esquina”, esse arquétipo brasileiro.

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Num ambiente de trabalho, convém chamar o superior pelo nome do cargo: “Como vai, ministro?”, “Bem vindo, deputado”, “Como vai, gerente?” e assim por diante. O termo “presidente” pode ser usado não só em relação ao Presidente da República, mas a qualquer um que detenha tal cargo, mesmo presidindo o mais irrelevante dos grêmios. Chamar o chefe pelo nome do cargo fora do expediente, porém, pode ser sinal de puxa-saquismo. Mas não sei o que deve dizer um cabo ao encontrar um general num boteco.

Diz Sérgio Buarque de Holanda que “A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em geral, no desejo de estabelecer intimidade. Esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação ´inho`, aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração.”

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Mas, atenção: da mesma forma que o diminutivo pode significar carinho (como entre um casal de namorados que diz “Oi, gatinha”, ou “Tudo bem, mocinho?”), há sempre a possibilidade de uma leitura irônica nas entrelinhas: quando duas mulheres entram em conflito e uma apõe o diminutivo ao pronome possessivo, é sinal de que lá vem impropério: “Escuta aqui, suazinha...” é prognóstico de barraco.

Uma confissão: nunca gostei de “meu querido.” Quando me chamam disso, finjo que nem ouço.

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No plano da figuratividade lingüística brasileira, temos alcunhas e epítetos de todos os tipos: do “Bom dia, guri” dos gaúchos ao “Olá, meu rei!” dos baianos (aliás, a Bahia foi reduto monarquista). No Rio de Janeiro, além do já citado “parceiro”, é comum encontrar certas variações de estilo: “Vai, potranca” ou “Late, cachorra” são alguns dos mais sutis que se tem visto.

Em Santos e na periferia de São Paulo, “truta” e “mano” já fazem parte dos dicionários. Assim como o neologismo “qualé”, cujo significado equivale a “O que está acontecendo?” ou “O que tá pegando?” A variação “qual foi” infere que o interlocutor talvez esteja desatualizado, e a expressão “Já é, bandidagem” pode ter profundas implicações criminalísticas. “Perdeu, playboy” pode ser sinônimo de assalto.

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É irônico que entre amigos o prosaico “olá, meu amigo” seja mais utilizado em cartas e emails do que no encontro fortuito. É mais comum o “Fala, brother.” “Se liga, mermão (meu irmão)” costuma ser um bom conselho. Se a pauta for uma epopéia hedonista na noite anterior, usa-se o “Qualé, passa mal”, assim como o “Beleza, figura?” se fala pralguém com alguma característica marcante, que a faz parecer-se com um personagem de desenho animado. Usa-se “Fala, monstro” quando a pessoa tem algum talento incrível, ainda que não discernível. Agora, em Brasília, por exemplo, o “brother” é mais chegado que o “irmão.” “Meu filho” é o estilo maternal do brasileiro.

Sem esquecer, claro, das formas tradicionais de um país católico: o “Benção, mãe”, o “Benção, padrinho.” E essa é fácil: “Olá, vizinho”. Se uma pessoa chega a um recinto e diz-se “É só falar na margarida” infere-se que estavam falando dela, e ninguém faz questão esconder isso. Já o “Chegou a noiva” é dito com ironia aos atrasados.

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Fazem um papelão os marmanjos que tentam flertar usando expressões mal traduzidas de filmes gringos, como “oi, princesa/boneca/benzinho.” “Oi, filé” pode ser ofensivo ou engraçado, dependendo do contexto. Já o “Entrem, crianças...” pode soar antiquado, mais cai bem a um anfitrião que tem uma surpresa a oferecer aos comensais (ou numa festa de criança, claro). Se você estiver com pressa pra cumprimentar um grupo, convém dar tchauzinho geral acompanhado de um “Olá, rapaziada” ou, se mais formal, “Bom dia, senhores.” “Boa noite, senhorita” deve ser algo que um motorista diria a uma grã fina.

Ao ligar o computador, convém dizer: “Hello, Dave.”

Só não vale inventar de chamar o garçom de “capitão” ou, pior ainda, “timoneiro.”

De resto, inveja daqueles tempos quando se pensava que os outros estavam fazendo versos.

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