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"Autoritarismo de ditadores hoje está em delegados e juízes"

"O autoritarismo fragmentário e insular é muito mais insidioso, porque é dissimulado e exercido sob a aparência de legalidade, ou seja, a pretexto da execução da lei, da realização concreta da vontade normativa. Os muitos tiranos desta espécie podem se ver aclamados como heróis pela turba multa desinformada", diz o advogado José Roberto Batochio, em entrevista ao portal Conjur; confira a íntegra

"O autoritarismo fragmentário e insular é muito mais insidioso, porque é dissimulado e exercido sob a aparência de legalidade, ou seja, a pretexto da execução da lei, da realização concreta da vontade normativa. Os muitos tiranos desta espécie podem se ver aclamados como heróis pela turba multa desinformada", diz o advogado José Roberto Batochio, em entrevista ao portal Conjur; confira a íntegra (Foto: Leonardo Attuch)
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Por Sérgio Rodas, do Conjur

O autoritarismo dos Estados que viveram as ditaduras do século passado não acabou, mas mudou de forma. Antes, o despotismo era facilmente identificado em governantes como Adolf Hitler, Benito Mussolini, Francisco Franco ou os militares brasileiros. Hoje, ele se manifesta em funcionários públicos como juízes, delegados de polícia, auditores fiscais. Nesses casos, os servidores acreditam que representam fielmente a lei, e, com esse fundamento, aplicam de forma repressiva suas visões de mundo em atos que deveriam ser isentos de valoração. Essa é a opinião do criminalista José Roberto Batochio, sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados.

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Para ele, esse “novo autoritarismo” é mais perigoso, porque os inimigos das liberdades e dos direitos fundamentais são mais difíceis identificar e enfrentar, uma vez que o poder não está concentrado. Além disso, por se dizerem representantes da lei, têm apoio popular para fazer o mal em nome de um bem maior.

Segundo Batochio, essa mudança foi acelerada após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. E um dos maiores prejudicados com isso foi o direito de defesa, que está sendo “levado às cordas”. E a operação “lava jato” é o maior exemplo dessa mentalidade atualmente no Brasil. Segundo o criminalista, é inadmissível que uma investigação se baseie no tripé “prisão de suspeito antes de culpa formada; encarceramento dele para forçá-lo a delatar os outros; e vazamento seletivo de informações para conquistar a opinião pública”.

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Batochio possui uma longa e premiada carreira, não só na advocacia, mas também no exercício de funções públicas. Ele foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (de 1985 a 1986), da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (de 1991 a 1993), e do Conselho Federal da OAB (de 1993 a 1995). Nesta entidade, ele foi responsável pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), que assegurou diversas prerrogativas da profissão. A seu ver, o Estatuto da Advocacia ainda cumpre sua função, mas poderia receber atualizações pontuais.

Depois de receber um convite do ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola para se filiar ao PDT, Batochio se elegeu deputado federal em 1998, cumprindo mandato até o fim de 2002. A experiência foi positiva, avalia, mas não o motivou a continuar na política. Ele considera os deputados de sua época superiores aos de hoje. Na sua análise, a Câmara tinha, no período, parlamentares mais “técnicos” do que os atuais. Mais de dez anos depois de ter dito que não voltaria à política, Batochio candidatou a vice-governador de São Paulo, em 2014, na chapa de Paulo Skaf, devido às propostas do presidente da Federação das Indústrias de São Paulo.

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O escritório de Batochio fica no coração da Avenida Paulista, em São Paulo, e tem ares das bancas de filmes clássicos. Ou seja, nada de ambientes amplos, sem paredes, visualmente claros, e altamente digitalizados, como se vê em anúncios de escritórios modernos. No escritório dele, predominam móveis escuros de madeira, coletâneas de jurisprudência, tapetes refinados e incontáveis honrarias que ele recebeu ao longo da vida.

Seis advogados e dois estagiários trabalham com Batochio. Em seu 48º ano de advocacia, ele confessa que não tem mais a velocidade e a intensidade dos tempos de juventude. No entanto, sua rotina está longe de ser leve: geralmente, inicia o serviço às 9h30 e só o encerra por volta das 20h.

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Em todos os casos que assume, Batochio se reúne com seus colegas e indica os caminhos a serem seguidos, citando teses, normas e jurisprudência. Após a elaboração das minutas das petições, o advogado as revisa e faz as correções necessárias para protocolá-las junto ao Judiciário.

Nessa supervisão, o ex-presidente da OAB tem o auxílio de seu filho, Guilherme Batochio. O pai diz que ele é “muito veemente” na defesa de seus pontos de vista, que nem sempre coincidem com os seus. Mas Batochio considera “gratificante” trabalhar com o filho.

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A vida do criminalista não se resume ao Direito. Batochio possui uma vasta cultura, constantemente demonstrada em citações de acontecimentos históricos ou ideias de grandes pensadores. Para alimentar seu conhecimento, ele está sempre consumindo “literatura extrajurídica”. No momento, o criminalista está lendo Número Zero, de Umberto Eco. A obra conta o caso de um grupo de jornalistas que funda um veículo que não serve para informar, e sim para chantagear, difamar, e favorecer seu editor.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Batochio ainda defendeu a extinção do crime de desacato, analisou o Estado de Direito no Brasil e criticou as propostas de redução da maioridade penal.

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Leia a entrevista:

ConJur — O Estado brasileiro hoje é autoritário?
José Roberto Batochio
  Eu diria que não só o Estado brasileiro, mas também as democracias consolidadas da Europa e do Hemisfério Norte de um modo geral. Todos estão efetiva, surpreendente e lamentavelmente, marchando a passos largos para um sistema em que há manifesto estreitamento das liberdades e das garantias pessoais, em nome das eternas — e jamais cumpridas — promessas de aperfeiçoamento social. É deveras preocupante a persistência dessa proposta de troca das liberdades fundamentais por uma mirífica promessa de segurança em pleno século 21.

O que temos hoje são pequenas, múltiplas, milhares de células como centro de emanação de autoritarismo fracionado, a tornar enfermo todo o corpo do sistema.

Até um passado não muito remoto, o autoritarismo era encarnado, materializado, na pessoa de um déspota, de um ditador, de um tirano ou, então, em um grupo restrito de pessoas que enfeixava todo o poder. A História fornece incontáveis exemplos. Mas tal modelo mostra-se superado, eis que o senso comum dos povos não convive mais com o governo de pessoas no lugar do impessoal governo das leis com as alternâncias determinadas pelo voto direto, que é, no final das contas, o Estado de Direito. Extrai-se, pois, que este modelo de autocracia, de que foram exemplo acabado os governos de [Benito] Mussolini, de [Adolf] Hitler, de [Francisco] Franco e de [Oliveira] Salazar, não tem mais espaço na sociedade contemporânea (ressalvadas as tristes exceções da África Subsaariana), o que não significa, todavia, que sua patológica essência tenha morrido. Não! Qual moderna Fênix teima sempre o arbítrio em rebrotar, sob distintos formatos: bien puede ter se enfermado, pero no murió de todo [pode ter ficado doente, mas não morreu completamente] diria o pensador ibérico. O autoritarismo moderno encontrou nova morfologia. Com o Estado de Direito, foi centrifugado, atomizado, mas mostrou-se resiliente, reinventando-se como arbítrio fracionado, setorial e exercido com conotação de aparente legalidade. É o chefe de repartição arbitrário, o policial violento, o magistrado que se imagina a quintessência da própria lei, o agente fiscal que se entende a exação em pessoa, em suma, são células institucionais doentes desse incurável mal. Entendem-se não agentes, mas o próprio Estado, e exercem um cruel despotismo com relação ao usuário ou sujeito passivo, sempre em nome da lei... Realizam uma catarse e, claro, sempre em detrimento das liberdades.

ConJur — E como o senhor compara esses dois tipos de autoritarismo?
José Roberto Batochio
  O autoritarismo fragmentário e insular é muito mais insidioso, porque é dissimulado e exercido sob a aparência de legalidade, ou seja, a pretexto da execução da lei, da realização concreta da vontade normativa. Os muitos tiranos desta espécie podem se ver aclamados como heróis pela turba multa desinformada... Além disso, como se contrapor a esse tipo de força de forma eficaz e organizada se ela não está definida, não vem identificada institucionalmente? Fundamentalmente, os advogados são  e sempre foram  os perenes combatentes, adversários, irreconciliáveis inimigos do arbítrio e da tirania, sempre empreenderam essa luta a favor das liberdades. A batalha continua sendo essa e haverá de ser vencida em uma arena diferente. É preciso exercitar sua vocação e cumprir o seu dever de declarar permanente hostilidade à lei da força e ao arbítrio, provenham de onde vierem. No passado recente, o despotismo aqui era o dos militares, o arbítrio tinha até uma cor: verde oliva. Hoje não, esses inimigos das liberdades, dos direitos fundamentais, estão dissolvidos e, por isso, mais difíceis de identificar.

ConJur — O fim do crime de desacato poderia ser uma forma de combater essa arbitrariedade?
José Roberto Batochio
  Sim, máxime quanto aos advogados, que são a voz que clama contra as ilegalidades. O nosso Código Penal de 1940, que definiu aqui o crime de desacato à autoridade, mostra-se desatualizado. À época, havia uma preocupação quase fetichista em tutelar esse bem jurídico que é o prestígio da autoridade pública (aliás, em nenhum lugar do mundo, salvo nos EUA talvez, autoridade é mais autoridade do que no Brasil...), resquício de uma política de sustentação colonial. Crime de desacato existe exatamente para reprimir aquele que ofende a autoridade em razão da função exercida. Até a metade do século passado, sofríamos ainda influência do período colonial, em que os representantes da Coroa tinham direito de vida e morte sobre os colonizados. As autoridades investidas de poderes absolutos não podiam ser contrastadas por questão de política de dominação. Recordemo-nos da Inconfidência Mineira, da derrama, em que essa realidade se consolidou tragicamente. Não quero dizer que a autoridade pública deve ficar totalmente desguarnecida quanto ao respeito que se deve à função que exerce, mas seria razoável deslocar a conduta que hoje vem tipificada como crime de desacato do âmbito do Direito Penal para a regência de normativo extrapenal, com outra espécie de sanção, talvez apenas pecuniária, qualquer coisa assim. Seria um passo adiante contra os abusos de autoridade e em favor da cidadania. É claro que os que exercem autoridade vão se opor a isso veementemente, como sempre.

ConJur — O senhor conhece bem essa oposição, não é?
José Roberto Batochio
  Quando lutávamos para aprovar o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, queríamos que no capítulo das imunidades funcionais do advogado estivesse o crime de desacato. Isso provocou enorme celeuma. No Supremo Tribunal Federal, questionou-se: “Onde já se viu conceder-se liberdade para advogados fazerem críticas inconvenientes e ofensivas?” Ora, muito mais importante para a coletividade é conferir-se ao advogado liberdade para levar, sem receios, a verdade a julgamento, ainda que ela possa malferir a autoridade, que permitir que os fatos fiquem ocultos nas dobras soturnas do receio de sofrer processo-crime por vivacidade ou excessiva virilidade de linguagem. Quantas vezes não pereceu a verdade, e com ela a realização de justiça, sob ilegal ameaça de prisão por desacato?

ConJur — E a quem que interessa esse autoritarismo estatal disseminado de hoje em dia?
José Roberto Batochio —
 Lord Acton disse que "o poder absoluto corrompe absolutamente". E também se retroalimenta, diríamos. Quem exerce uma parcela minúscula de autoridade se compraz em fazê-lo e quer sempre hipertrofiá-la, aumentá-la, distendê-la. De outro lado  e isto é um fenômeno interessante , o discurso contra a impunidade, contra o crescimento exacerbado das taxas de criminalidade e pela necessidade de se estabelecerem soluções draconianas para a sua repressão, diariamente martelado pelos órgãos de comunicação social, acabou por intoxicar a opinião pública. Avassalaram-se mentes e corações, a ponto de ser certo que se fizermos hoje uma pesquisa sobre instituição da pena de morte no Brasil que é um país cristão, humanitário e pacífico por natureza , a proposta de pena de morte seria aprovada por acachapante maioria de pessoas, que obviamente não estão suficientemente informadas sobre tudo que isso significa. É curioso e desconcertante, por exemplo, que a França, que exportou os ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” para o mundo, tenha um dos sistemas processuais penais mais autoritários da atualidade. Ao investigado não é dado saber o que contra ele se investiga... É uma coisa terrível. A Itália também recrudesceu o rito estabelecido para a persecução penal. O episódio do World Trade Center, em Nova York, fez os EUA deflagrarem uma guerra – justificável – contra o terrorismo e disseminarem uma doutrina segundo a qual dinheiro não contabilizado, o dinheiro que circula sem controle, é mais perigoso que o próprio tráfico de drogas, porque ele pode acabar nas mãos e financiar as ações dos inimigos do Estado norte-americano. E nós fomos contaminados, por essa doutrina autoritária (veja-se o Patriotic Act do período George W.Bush. e A Lei de Defesa do Estado, do período Barack Obama). Há autoridades brasileiras que são levadas para o território de Tio Sam para serem iniciados nessa doutrina. Voltam embevecidas...

ConJur — E o que isso causa?
José Roberto Batochio —
 Você acha razoável o Maníaco do Parque ter sido condenado a vinte ou trinta anos por haver estuprado várias pessoas e matado várias mulheres, enquanto um doleiro, que remeteu divisas, o Barcelona por exemplo, ser condenado a mais de 60 anos? Quais os bens jurídicos penalmente tutelados nos dois casos e quais deles merecem proteção legal mais enfática?

ConJur — Como o senhor avalia que está o direito de defesa no Brasil?
José Roberto Batochio
  No Brasil  e no mundo , o direito de defesa está sendo, digamos assim, levado às cordas. Cada vez mais se faz esse discurso dito pragmático de que para combater o indesejável ilícito penal todas as providências são aceitáveis (o citado Patriotic Act americano admitia a tortura, por exemplo) e, para impedir que haja impunidade, é preciso reduzir o direito de defesa. Ouve-se: “Para quê tanto recurso?”, mas não se faz uma reflexão séria sobre quem são e como estão preparados os juízes de primeiro grau por este Brasil. Qual é o seu preparo humanístico, filosófico e sociológico? Qual seu grau de amadurecimento? Como se propor a eliminação de recursos ou o imediato cumprimento da pena fixada no primeiro grau, com a privação de liberdade do acusado? Ah bom, se o acusado for outro que não nós mesmos, ou uma mera abstração, tudo parece bem, asséptico e eugênico.  A realidade, porém, é outra.

ConJur — Quando, na história do Brasil, tivemos realmente o direito de defesa consolidado?
José Roberto Batochio
  Sob a égide da Constituição de 1946 até o Golpe Militar, eu acho que nós tivemos um período de democracia digno dessa conceituação.

ConJur — E depois de 1988?
José Roberto Batochio
  Esta também é uma Constituição modelar; aliás, ambas são as melhores que tivemos. Mas, mesmo depois de 1988 testemunhamos, mais que isso, protagonizamos passivamente, esses outros fenômenos autoritários a que me referi, a despeito de estarem assegurados em incisos de seu artigo 5º o devido processo legal, o direito ao contraditório e a amplitude do direito de defesa. Na interpretação das leis de hierarquia inferior, procura-se diluir essas garantias constitucionais. Até o manejo Habeas Corpus, que está assegurado na Constituição, já é objeto de restrições nos tribunais superiores.

ConJur — E o que é que o senhor pensa da operação “lava jato”?
José Roberto Batochio
  No Brasil, as investigações passaram a ter nome folclórico. Não se pode aprovar uma investigação criminal que se baseie no repudiável trinômio: “prisão de suspeito antes de culpa formada; seu encarceramento nas condições subanimalescas do sistema penitenciário brasileiro (para quebrar-lhe toda a possibilidade de autodefesa e obrigá-lo a apontar crimes de outras pessoas); e o vazamento criminoso e seletivo do que interessa aos investigadores para formar na opinião pública (ou publicada?) um ambiente favorável às medidas de arbítrio que são a seguir desencadeadas”. Esse método não é democrático nem legítimo. Prender (às vezes basta ameaçar de prender) para forçar delação não é Justiça criminal democrática. Na Justiça criminal democrática, é constatado um fato delituoso, investiga-se a materialidade, para ver se ele realmente existiu, e, a partir disso, busca-se a sua autoria, através de métodos investigativos civilizados e sem prender suspeitos por boatos de outrem. Porque prisão processual antes da sentença tem previsão, é verdade, ela é necessária em alguns casos, mas excepcionalíssimos, em situações em que se não se segregar o suspeito contra o qual se produziram indícios veementes, sérios e idôneos, de autoria, poderá reiterar a prática de crimes graves e violentos, ou embaraçar a seara das provas ou se furtar aos efeitos da decisão em perspectiva. Aliás, a prisão física, a reclusão corporal, deveria estar reservada apenas aos crimes de extrema gravidade, sobretudo aqueles que implicam violência de um modo geral. Há outras e eficazes formas de resposta penal.

ConJur — Tem também quem defenda esses métodos, argumentando que se a polícia e o Ministério Público não usarem grampos e delações premiadas, e nem relativizarem o direito de defesa, o crime organizado vai tomar conta do país. Isso faz sentido?
José Roberto Batochio
  Façamos uma progressão deste raciocínio: “Se não grampearmos, se não monitorarmos, se não quebrarmos todos os sigilos, se não prendermos para depois investigar, se não prendermos suspeito para obter delação premiada, vamos ficar socialmente desarmados e o crime vai prosperar e vai acabar tudo dominando”. Em contraposição, coloque-se este outro raciocínio: “Se todos os cidadãos não tiverem nenhuma liberdade para agir, nunca haverá crime”. Valeria a pena? É uma hipótese sofista, extrema.  Conta a História que todo tirano sempre se valeu desse discurso para se estabelecer: sem respeito a nada e com todo rigor, combater a corrupção, combater o crime, combater a impunidade, caçar marajás, varrer sujeira, mãos limpas etc. Nelson Hungria ensinou, no século passado que o crime é um fenômeno social. Seria desejável que ele não existisse? Seria. Mas, infelizmente, ele anda à ilharga da sociedade. Cabe, civilizadamente, combate-lo para que se mantenha em índices suportáveis, essa a dura e desconversável realidade.

ConJur — Mas a solução seria não fazer nada?
José Roberto Batochio
  Também não podemos nos render à impotência. Vamos buscar, após tanto enforcamento, fuzilamento, guilhotina, sangue e morte, registrados na evolução das sociedades, soluções civilizadas, não para eliminar o crime porque isso é tarefa impossível, mas para mantê-lo em taxas mínimas, aceitáveis. Não acabaremos com estas “sucursais do inferno” que são os presídios dos países que se esforçam pelo desenvolvimento, mas podemos fazer com que deixem de ser “sucursais do inferno” e sejam alçados a institutos de custódia de pessoas humanas em que seja respeitado o mínimo de sua dignidade. E vamos reservar essas prisões para as pessoas violentas e que realmente não estão habilitadas para conviver em sociedade.

ConJur  O senhor é o pai do Estatuto da Advocacia. O estatuto completou 20 anos no ano passado. O senhor acha que ele precisa de mudanças?
José Roberto Batochio
  É claro, toda a lei é como um organismo biológico, ela nasce, amadurece e se torna obsoleta, às vezes totalmente, outras, apenas em alguns aspectos. E o Estatuto da Advocacia e da OAB é texto legal que se propõe a disciplinar os sistemas de seleção, disciplina, e proteção dos profissionais da advocacia, mas esta também vai se transformando ao longo do tempo. Quando tratamos de colocar em vigor esse Estatuto, a Lei 8.906/1994, vínhamos de um Diploma Estatutário (Lei 4.215/1963), que não contemplava as sociedades de advogado, não existiam as law firms, grandes sociedades de advogados. Não havia regramento para a atuação e proteção do advogado público, em suma, uma série de novas fisionomias que foram acrescentadas à advocacia e que se encontravam em estado de anomia, sem regulamentação. Cuidamos então desse regramento. Agora, depois de 20 anos, certamente haverá outros fenômenos emergentes, relativos ao exercício da advocacia que precisam ser disciplinados. Portanto, a lei pode e deve ser aperfeiçoada para que sofra o necessário aggiornamento, mas o resultado que tivemos nestes quatro lustros foi auspicioso. O que garantimos com esse estatuto foi a independência dos advogados de poderem (a despeito de haver o STF suprimido (na ADI da Associação dos Magistrados Brasileiros) o desacato das hipóteses de imunidade elencadas no texto), denunciar as ilegalidades e abusos, de pleitearem sem embaraços em juízo. O diploma foi um escudo e foi um sabre com que os advogados travaram a sua antiga e sempre nova luta contra a opressão, a tirania, contra o abusos e contra os que querem suprimir as liberdades da pessoa humana. Ele cumpriu e cumpre a sua função.

ConJur — O senhor acha que as prerrogativas estão correndo perigo?
José Roberto Batochio
  Penso que elas estão permanentemente sob ataque de investidas autoritárias. É inadmissível que se chame um advogado para explicar qualquer aspecto das suas relações com seus clientes. O dia em que isso ocorrer não haverá mais privacidade do cidadão usuário de seus serviços e muito menos democracia. De outro prisma, pretender confundir o advogado com seu cliente, no que diz respeito ao ato sub judice ou a qualquer outro a ele vinculado, tê-lo por suspeito de qualquer coadjuvância por mera suspicácia, isso é, digamos assim, democraticamente escandaloso. Não tem o menor sentido. Por que é que não se pergunta para o Estado arrecadador brasileiro qual é a origem do dinheiro que paga o imposto que ele arranca com voracidade de cada um, com fome-sem-fim? Isto é, como diziam os romanos: Para arrecadar tributos, “pecunia non olet”, " dinheiro não tem cheiro". Agora, para o advogado que está defendendo a liberdade é preciso que faça compliance para que saiba, e explique, não só este aspecto da remuneração, mas outras relações profissionais que tenha com o cliente, no empenho de executar a defesa. Temos que lembrar o que sempre dissemos ao longo de toda a nossa história a estes tiranetes que, com essas exigências, querem nos intimidar e que se renovam feito erva daninha: “Tomem tento. Aqui estão os advogados brasileiros, artífices das liberdades e da democracia neste país”.

ConJur — O que o senhor pensa sobre a redução da maioridade penal?
José Roberto Batochio
  Isso poderia ser definido como uma involução geométrica. Vamos reduzir de 18 para 16 [anos], porque temos um grande contingente de menores entre 16 e 18 anos que estão a praticar crimes violentos. Aí surgirá um largo contingente de crianças entre 14 e 16 anos que também praticam alguns crimes — como já ocorre. Nova redução? Qual o limite? Temos que trabalhar as causas criminogênicas. Ensino fundamental de período integral, nutrição, higiene, profissionalização média, sociabilidade, dignidade e oportunidade de vida decente, penso, seriam mais eficazes. É uma via de mão dupla, a criança acaba levando cultura para casa, higiene, conceitos da escola... Essa é a forma séria, científica de se encarar o problema, não é a proposta simplista e leiga de se introduzir pena de morte ou reduzir maioridade penal, que se vê no Legislativo.

ConJur — E por falar nisso, como que o senhor avalia sua experiência como deputado?
José Roberto Batochio —
 É uma experiência rica e, digamos assim, decepcionante na exata medida. Quem decide o que vai ser votado na Câmara e no Senado Federal são os presidentes das mesas diretoras. Não existe uma prioridade de urgência ou assunto ou uma ordem cronológica. O sistema realmente deixa a desejar. Então, o parlamentar pode apresentar um grande número de projetos úteis, projetos de interesse da coletividade, mas se o presidente da Casa não colocar em votação, nada é feito. A falta de democracia interna do processo legislativo é realmente decepcionante, porque o congressista pode ter uma produção extraordinária como propositor de iniciativas legislativas, mas quando vence o seu mandato, todos os seus projetos que não foram apreciados são automaticamente arquivados. 

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