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Referência no combate à violência sexual diz que Damares não protegeu crianças do Marajó

MP pediu esclarecimentos ao governo sobre acusação de ex-ministra de supostos abusos sexuais no Marajó

Damares Alves (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)

Andrea DiP, Agência Pública - Irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante é uma referência no combate  à violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó. Nos conhecemos quando fiz uma reportagem no arquipélago em 2019 para a Agência Pública.  Na época, Damares Alves, então ministra da pasta da Mulher, Família e  Direitos Humanos havia dito que o alto índice de exploração sexual de  crianças na região era porque as meninas “não usavam calcinhas” e  sugeria como política pública a construção de uma fábrica de lingerie.

Caminhamos juntas por alguns municípios e Marie me mostrou a real  situação local: a falta de políticas públicas voltadas à proteção das  crianças e ao combate à violência, escolas em situação precária, e um  total abandono por parte do poder público ao arquipélago que na época  tinha 14 dos seus 16 municípios na lista dos menores IDHs do país,  segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil.

No último domingo, Damares voltou a dar declarações gravíssimas sobre  o Marajó, desta vez em um culto evangélico em Goiânia. Falou que  enquanto era ministra, ficou sabendo de estupros de recém-nascidos,  sobre crianças marajoaras que teriam dentes arrancados e seriam vendidas  para exploração sexual, mencionou detalhes de práticas sexuais  violentas e torturas – para uma platéia que continha diversas crianças –  e disse ter provas e vídeos.

Atribuiu esses crimes a uma suposta “guerra espiritual” e aproveitou  para fazer campanha para Bolsonaro, dizendo que ele havia comprado essa  batalha e que seu governo foi o que mais fez para combater tais  atrocidades. Também citou o programa “Abrace o Marajó” como um eficiente  projeto de enfrentamento a crimes sexuais na região.

Por conta dessas declarações, o Ministério Público Federal enviou  ofício à Secretaria Executiva do Ministério da Mulher, da Família e dos  Direitos Humanos para que esclareça sobre as informações de supostos  abusos sexuais cometidos no Marajó, já que nunca houve denúncia formal  feita por Damares.

Em nova entrevista, exclusiva para a Agência Pública em  parceria com o Universa, a Presidente do Instituto de Direitos Humanos  Dom José Luís Azcona, Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante comenta as  novas declarações de Damares e afirma não ter conhecimento dessas  políticas de enfrentamento propagandeadas pela senadora e ex-ministra de  Bolsonaro. “Sinceramente desconheço. Chamo esse programa Abrace o  Marajó de um verdadeiro Cavalo de Tróia. Um projeto que veio de forma  autoritária, racista, elitista, criado de cima pra baixo”. Henriqueta  afirma que as falas da ex-ministra geraram grande indignação na  população marajoara e em quem luta contra a exploração sexual na região.

Irmã, a fala de Damares sobre as crianças do Marajó tem  repercutido muito e o foco tem sido no absurdo do que ela diz e em  possíveis responsabilizações jurídicas que são, claro, aspectos muito  importantes. Mas queria saber como você, que é alguém que está na linha  de frente ao combate à violência sexual contra crianças no Marajó há  muitos anos, vê essa fala da ex-ministra?

A fala dela causou grande indignação em todos nós que lutamos contra a  violência sexual, sobretudo na população marajoara, que está se  manifestando de maneira muito forte e revoltada. É uma fala totalmente  desconectada com a da defesa dos direitos humanos.

Ela mais uma vez se equivoca de maneira irresponsável. Isso causa pra  nós… não é nem surpresa, porque ela sempre se reporta dessa forma sobre  nossas crianças e adolescentes do Marajó, com esse estereótipo. Você  lembra muito bem da última vez que ela disse que as meninas do Marajó  são estupradas porque não usam calcinha. Aí ela apresenta como solução  instalar uma fábrica de calcinhas!

O que ela nunca cumpriu, diga-se, porque viu a rejeição, porque a  imprensa séria teve coragem de denunciar – e você fez uma matéria  importantíssima daquela vez sobre isso e viu que deu repercussão. O que  ela fez foi distribuir parcas cestas básicas. Então essa fala de agora  não é de se espantar quando vem de uma representante do atual governo,  que trata pautas tão complexas com uma profunda demagogia, sem levar em  consideração dados e sem disponibilizar serviços públicos essenciais.

Se ela teoricamente sabia desses crimes, por que não fez a denúncia  às esferas competentes? A solução pra esse grave problema da violência  sexual exige um esforço conjunto de políticas públicas e o respeito  intransigente aos direitos das nossas meninas e meninos que são afetados  por essa violência. Que os ponha a salvo de qualquer comportamento  cruel e degradante.

Eu me lembro que quando estivemos juntas no Marajó em 2019,  você disse que esse programa que Damares propagandeia como sendo o  principal enfrentamento à violência sexual, inclusive em outros países, o  “Abrace o Marajó”, não tinha ações muito efetivas e que a população  local nem sabia do que se tratava. Passados esses anos, você e as  pessoas com as quais trabalha viram alguma mudança nesse sentido?

É tudo muito misterioso. Nessa fala dela no culto ela menciona o  Abrace o Marajó ao qual ela se refere como o maior programa de  desenvolvimento da Amazônia. Ele foi duramente criticado por nós, e pela  sociedade marajoara que criamos uma carta falando que não aceitamos um  projeto que nasceu de cima pra baixo. Eu estive com o Tribunal de Contas  pra ver a questão da educação e nós ouvimos professores revoltados  porque foi um programa que nasceu de cima pra baixo, ele não veio com os  rostos marajoaras – porque eu sempre digo que existem muitos Marajós –  nossas crianças precisam de políticas diferenciadas. A população  criticou de forma severa, um programa que veio de forma autoritária,  racista, elitista, pra uma região que tem história. E que é  historicamente atravessada por desigualdades sociais e econômicas. Não  teve participação popular.


Mas o que são essas ações?

Eu acho que a ação a qual ela se refere é a distribuição de cestas  básicas que eu chamo de cestas básicas nanicas. Nanico é um termo usado  no Nordeste pra se referir a uma coisa pequena. O que ela criou na  verdade foi um pânico moral. É isso que vem na transversalidade do  comportamento dela. 

Então todo esse enfrentamento à violência sexual contra crianças e  adolescentes que ela diz que fez e que Bolsonaro fez na região não  existe?

Eu desconheço. Sinceramente eu desconheço. 

O Marajó é grande e diverso como você estava dizendo, mas  como está essa situação, passados 4 anos de governo Bolsonaro e  ministério Damares Alves?

O governo Bolsonaro trouxe um caos no que diz respeito à proteção de  crianças e adolescentes por causa de um desmonte das políticas públicas.  E com a pandemia, houve um aumento exagerado de uma forma visível das  desigualdades socioeconômicas. O aumento da fome é alarmante. A gente  precisa se conscientizar que não se pode falar em enfrentamento à  violência sexual se não tivermos capacidade de combater a pobreza, a  miséria. Eu chamo de miséria produzida e reproduzida. A situação se  agravou e muito. Eu chamo esse projeto “Abrace o Marajó” de um  verdadeiro cavalo de troia. Não adianta trazer pra região o que a região  não precisa. Se a gente não pensar em programas de geração de emprego e  renda pra essa população, vamos ficar o tempo todo falando a mesma  coisa. Não adianta.

E educação, né irmã? Porque a situação das escolas no Marajó já era terrível antes da pandemia…

Saiu um relatório agora do Tribunal de Contas que aponta a  deficiência que existe na educação na região. Como dizia o Paulo Freire,  a educação não é tudo, mas é a base. As crianças sempre alegaram que a  escola na região não é boa, falta merenda, falta combustível, o  transporte é uma precariedade porque os barqueiros não tem combustível  pra levar as crianças pra escola. Sem contar também a precariedade dos  serviços de saúde. É uma situação muito grave. E tudo isso fica ainda  mais difícil com um governo que não está preocupado com a população. 

E eu me lembro também das nossas conversas com conselheiros  tutelares, com promotores e de que era muito difícil conseguir  trabalhar, era um trabalho de formiguinha mesmo, de pessoas que queriam  muito fazer as coisas acontecerem mas que tinham que lidar com essa  precarização…

Sim. Mas agora imagine que tem alguns municípios em que os conselhos  tutelares são totalmente evangélicos e estão de braços dados com essa  senhora. É preocupante porque um conselheiro que está na base, na porta  de entrada para receber essas crianças e adolescentes, que tem que lidar  com todas essas mazelas, não ter sensibilidade e coragem de ficar do  lado do pobre. O conselheiro precisa cuidar. Mas tem conselheiros que  estão abraçados com essa senhora e preocupados só em fazer campanha  política. 

E o que você acha que é pior em ter os conselhos tutelares tomados por evangélicos conservadores?

Eles são alienados. Não têm compromisso com a realidade. E quem se  submete a fazer campanha política para alguém que faz uma fala como  Damares fez, totalmente desconectada com a realidade, é porque também  não tem compromisso social. E não tem compromisso com a transformação da  realidade. Esse é um momento muito tenso no Brasil, é um momento de  muito ódio. 

Durante o culto Damares atribui a violência sexual contra  crianças e adolescentes a uma “guerra espiritual”. Você, como alguém de  fé, o que pensa sobre isso?

Não existe guerra espiritual. Guerra espiritual quem cria são eles  que pregam coisas absurdas, que estão voltadas a conceitos moralistas,  que apresentam modelos de família e comportamento que não são  condizentes com nossa realidade. A guerra espiritual é a guerra da  ignorância, da falta de amor fraterno, da capacidade de sentir empatia  social e coletiva. Isso é guerra. Eu, com toda a formação que tenho, não  compreendo a religião nem Deus assim. Deus está no meio de nós, está  com aquela população de Melgaço com fome, clamando por um prato de  comida. Isso sim.