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Estudiosa sobre redução da maioridade: 'acaba gerando mais violência'

Estudiosa do tema da criança e do adolescente desde 1992, a professora do Departamento de Ciências Criminais da UFRGS Ana Paula Motta Costa critica a PEC de Redução da Maioridade Penal que tramita da Câmara dos Deputados; segundo ela, a medida é debatida com um "discurso de redução da violência ou de redução da impunidade e com isso, ela acaba gerando mais violência"; "As consequências disso para o Brasil são muito sérias"; Ana Paula classifica como uma "hipocrisia generalizada" falar em impunidade dos jovens no Brasil, uma vez que 60% dos deputados que votaram a favor da PEC na CCJ da Câmara respondem a processos judiciais e estão soltos

Estudiosa do tema da criança e do adolescente desde 1992, a professora do Departamento de Ciências Criminais da UFRGS Ana Paula Motta Costa critica a PEC de Redução da Maioridade Penal que tramita da Câmara dos Deputados; segundo ela, a medida é debatida com um "discurso de redução da violência ou de redução da impunidade e com isso, ela acaba gerando mais violência"; "As consequências disso para o Brasil são muito sérias"; Ana Paula classifica como uma "hipocrisia generalizada" falar em impunidade dos jovens no Brasil, uma vez que 60% dos deputados que votaram a favor da PEC na CCJ da Câmara respondem a processos judiciais e estão soltos (Foto: Leonardo Lucena)
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Jaqueline Silveira, Sul 21 - Estudiosa do tema da criança e do adolescente desde 1992 e com livros lançados sobre o assunto, a professora do Departamento de Ciências Criminais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ana Paula Motta Costa critica a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de Redução da Maioridade Penal que tramita da Câmara dos Deputados. Para ela, a medida não irá reduzir a violência, ao contrário, irá aumentá-la à medida que a PEC propõe o encaminhamento de "jovens com idades menos avançadas para o sistema penitenciário adulto." Coordenadora do G10 – grupo vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju) da UFRGS e que assessora e acompanha adolescentes em conflito com a lei, Ana Paula classifica como uma "hipocrisia generalizada" falar em impunidade dos jovens no Brasil, uma vez que 60% dos deputados que votaram a favor da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara respondem a processos judiciais e estão soltos. Confira a seguir os principais trechos da entrevista da professora de Direito Penal do Curso de Direito da UFRGS, que também foi presidente da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), de 2000 a 2002.

Sul 21 – Qual sua opinião sobre a PEC da Redução da Maioridade Penal que tramita na Câmara dos Deputados?

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Ana Paula Motta Costa – Em primeiro lugar, temos muitos elementos para analisar nesse contexto. Quanto ao conteúdo da proposição da redução da maioridade de responsabilidade penal, eu sou absolutamente contrária, trabalho e pesquiso nesse tema há muitos anos e sei, por todas as pesquisas e dados que a gente possa aferir nesse tema, que isso não vai resolver aquilo que ela se propõe a resolver, que seria um clamor popular ou uma necessidade da população de uma redução da violência, ao contrário, ela pode gerar mais violência, na medida em que pressupõe o encaminhamento de jovens com idades menos avançadas do que atualmente já vão para o sistema penitenciário adulto, ou seja, jovens de 16 a 18 anos no sistema penitenciário adulto, que certamente é um fato, um gerador de violência.

Sul 21 – Isso quer dizer que encarcerar os jovens cada vez mais cedo não é uma medida adequada para reduzir a violência?

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Ana Paula – Não, não resolve a violência. Então, a primeira coisa que eu te diria pra analisar sobre isso, que ela em principio tem um discurso que a justifica, que seria um discurso de redução da violência ou de redução da impunidade e com isso, ela acaba gerando mais violência. As consequências disso para o Brasil são muito sérias, no sentido de violência gerada, então eu acho que dialogar com a população sobre isso, pressupõe esclarecer isso. Quando uma pessoa vai para o sistema penitenciário, o sistema que tem hoje em especial, mas poderia se dizer sobre a pena de prisão ao longo da história dela mesmo, ela sempre produziu violência. O que acontece é que há um processo de aculturação, de vinculação com a cultura carcerária e de fortalecimento da identidade carcerária, da identidade criminosa. Isso na adolescência é mais sério do que em outras etapas da vida, porque na adolescência, não é porque o sujeito não tem consciência dos seus atos, do que é certo ou errado, mas ele é um sujeito ainda em processo de desenvolvimento, de formação de identidade.

Sul 21 – E quais seriam essas consequências sérias para o país caso a PEC seja aprovada?

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Ana Paula– Têm algumas imediatas e têm coisas mais amplas. A primeira coisa que não tem nem lugar hoje para ir essa população, que hoje está no sistema educativo ir para dentro do sistema penal adulto, é completamente inconsequente. Na política criminal alemã, por exemplo, utiliza-se muito o cálculo do efeito de uma medida criminal com relação à estrutura do Estado para dar conta daquela medida. Isso para falar de exemplos europeus, mas nem precisava, poderíamos ir para qualquer (país) aqui na volta, também vai ter isso, ou seja, quando tu defines uma política criminal, tu tens de ter estrutura prevista para aquilo, não tem estrutura nenhuma prevista, então é um bode pendurado na sala, não tem consequência nenhuma essa medida. No dia seguinte, não tem como aplicar, porque não tem como encaminhar os jovens para o sistema adulto, a partir daquele momento. Segundo, o processo de investimento na formação de identidade na juventude voltada pra coisas boas, positivas, ele é abortado por um processo de fortalecimento de uma identidade negativa voltada para a criminalidade. Então, se a gente enxerga que o sistema carcerário, isso a criminologia há muitos anos define o sistema carcerário como um processo de fortalecimento de identidade criminosa, de rotulação. O sujeito que vai para o sistema carcerário é rotulado com uma identidade, é um criminoso, e aquilo só fortalece a tua identidade criminosa, salvo se o sujeito tem toda uma outra bagagem anterior e quer evitar voltar para aquele lugar, a sua identidade anterior supera a possibilidade que aquela experiência lhe apresenta. A experiência é uma experiência de fortalecimento de identidade criminosa, é isso que acontece na prisão. Bom, para os adultos, a gente pode dizer que é horrível um jovem de 19 anos, de 20 anos, de 30 anos ir para o sistema penitenciário fortalecer a identidade criminosa, é ruim, só que esse sujeito está numa idade da vida em que determinados fatores, que formam a identidade, já estão mais consolidados. Um adolescente ir para esse sistema significa colocar com uma possibilidade de formação dessa identidade maior ainda. Um adolescente é aquele sujeito que está deixando de lado a identidade que veio da família, que o pai e mãe diziam de certo e errado, ele não tem ainda um juízo de valor, ele não tem ainda uma afirmação sobre autonomia em relação a sua conduta. Na adolescência, ele está abandonando isso e está buscando referenciais. A gente usa a ideia de um labirinto, ele está num labirinto, está procurando um referencial, às vezes é um professor, às vezes é um próprio familiar, ele está procurando uma profissão, ele precisa se definir o que ele vai ser do ponto de vista profissional, ele precisa encontrar uma identidade sexual, ele precisa encontrar uma identidade na comunidade de quem ele é, ele está em busca disso no meio de um labirinto em que a sociedade também está dizendo para ele o que ele é, como a sociedade fosse um espelho e está dizendo: olha, tu és um jovem que vale a pena apostar, tu és um jovem que não vale a pena apostar. Ele está seguindo esse caminho, todos nós passamos por isso, a gente tem uma fase da vida em que a gente está procurando quem a gente é de verdade, a gente não é mais aquela criança lá da família, a gente é outra pessoa. Nessa fase da vida que o sujeito está procurando a identidade, agente vai dizer para ele: olha, a tua identidade é criminosa. O resultado disso é mais violência, mais gente que vai passar pelo sistema carcerário e vai sair de lá pior.

Sul 21 – Como a senhora avalia alguns argumentos usados pelos defensores da PEC como, por exemplo,  o fato de o jovem pode votar aos 16 anos, então poderia responder seus atos pelo sistema penal adulto e ser submetido  a penas mais severas?

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Ana Paula – Eu penso que essas definições da lei: voto, época em que começa a dirigir, a época em que pode, por exemplo, realizar determinados atos cíveis, elas todas são definições normativas, não há uma idade cronológica, biológica que define uma capacidade definitiva, do ponto de vista mental.  O que acontece é que o Brasil é signatário de uma serie de tratados internacionais e de uma doutrina toda que foi conquistada. Todos esses acordos, como as regras das Nações Unidas de tratamento dos adolescentes em cumprimento de conflitos com a lei, todas essas normas internacionais decorrem de uma conquista social importante, que é a conquista de compreender esse sujeito, criança, adulto e adolescente também, de 12 a 18 anos,  como um sujeito em desenvolvimento. Todos nós estamos sempre em desenvolvimento da vida, mas nessa etapa, quando se é criança e se é adolescente, esse desenvolvimento tem características especiais e peculiares, então não quer dizer que ele não tenha discernimento, que não pense, que não tenha opinião, não quer dizer que ele não saiba o que faz. Quer dizer que o seu desenvolvimento ainda é peculiar, ainda é uma etapa de desenvolvimento, em que a responsabilidade por esse desenvolvimento é do Estado, da família e da sociedade. Então, quando a gente tem um adolescente nessa etapa da vida ainda, sob nossa responsabilidade, quer seriam todos do Brasil, por exemplo, nós temos uma responsabilidade enquanto adultos, que é investir nesse jovem para que seu desenvolvimento seja mais saudável. Ao abrir mão disso, estamos abrindo mão dessa responsabilidade enquanto sociedade.

Sul 21 – A sociedade e o Estado não estariam cuidando do jovem?  Há uma responsabilidade nesse sentido?

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Ana Paula – Aí fica um outro argumento, que eu acho significativo. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) este ano faz 25 anos. A Constituição Federal, desde 1988, prevê a previsão normativa de que existe no artigo 227 da Constituição, de que é dever da família, do Estado garantir com absoluta prioridade todos os direitos da criança e do adolescente. Isso não aconteceu até agora, não só em discurso, mas tudo parcial, ou seja, se garante escola com maior facilidade do que antes da Constituição de 88, mas essa escola, embora tenha vaga para todos, ela não é acessível a todos. Se garante saúde, mas ainda há uma mortalidade juvenil muito grande, então se a gente for pensar em mortes violentas, do ponto de vista da saúde, não foi garantida a todos. Ainda não se conseguiu garantir aquilo que se comprometeu o estado brasileiro, ainda não se conseguiu efetivar direitos e essa medida abre mão da responsabilidade em fazer isso e isso precisa ficar claro. A responsabilidade da sociedade, da família e do Estado é com estes jovens, crianças e adolescentes. A responsabilidade penal começa aos 12 anos de idade, o sujeito já responde penalmente perante o sistema próprio, que é o previsto pelo ECA. Dos 12 até os 18 anos. Ele não responde perante o sistema adulto. Qual a diferença de um sistema para outro? Em vários aspectos, há diferença, mas eu diria que tem uma coisa central, que é responder pelo ato. O sujeito responde pelo ato desde os 12 anos pelo que faz e responde sozinho.  Embora tudo isso seja a causa, esse sujeito, na hora em que comete um ato infracional, ele tem uma resposta do Estado e essa resposta não é positiva para ele, ela é aflitiva, privativa da liberdade, eventualmente, dos direitos dele, então ele responde. A questão é que no sistema penal adulto, essa resposta tem outras características, que não são necessariamente melhores. O sistema de penas adulto parte da pena privativa de liberdade, então todo crime previsto na lei penal, tem uma pena preventiva de liberdade, alternativa de multa e dependendo do grau dessa pena, ela pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos. No ECA, a previsão é de medidas socioeducativas, que preferencialmente, serão restritivas de direitos. Então há uma diferença, no sentido de que a intencionalidade maior é  que houvesse medidas restritivas de direitos. Mas existem medidas de internação, que é muito semelhante à pena privativa de liberdade.  A diferença é que no sistema brasileiro, na realidade brasileira, os presídios são imensas instituições, com condições piores ainda que o sistema socioeducativo.

Sul 21 – Com bem menos chance de recuperar, a senhora diria?

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Ana Paula – Bem menos chance de individualizar a intervenção. A pena do adulto não tem condições de saber, por exemplo, no nosso caso do Presídio Central, que chegou a ter 4 mil detentos, não há como identificar quem é aquela pessoa, o que ela precisa e quais são as necessidades dela. É impossível. Se trata de uma massa carcerária. No sistema socioeducativo, por mais ruim que esse sistema esteja, por mais lotada que uma unidade de internação esteja (nós temos aqui em Porto Alegre unidades de internação que seriam pra 120 jovens no máximo e estão com 180). Por mais ruim que seja o atendimento, ainda assim estamos falando de 180, não de 4 mil pessoas, ou seja:  há um universo menor, há uma possibilidade maior de atendimento adequado para um público menor. E de um juiz mais adequado para atender esse público, de um promotor mais voltado para atender esse público, ou seja, de uma especialização da Justiça, né? E de uma especialização de todo um sistema. Isso garante um degrau na qualidade. No sistema adulto, não se tem nenhuma possibilidade de reverter aquilo que a própria instituição já produz, que é a aculturação, que é a identidade criminosa, que é a reprodução dessa realidade. Não tem como intervir nisso. No sistema socioeducativo, há mais possibilidades, há também processos de aculturação nesse processo de construção de identidade criminosa, mas há mais possibilidades, para que o Estado possa fazer isso. Então, a medida socioeducativa é mais adequada ao que o sujeito é, que é um sujeito ainda em desenvolvimento. Não se está desistindo dele, está se procurando investir mais nele.

Sul 21 - Há críticas ao Estatuto da Criança e do Adolescente de que protegeria demais os adolescentes e até estimularia a impunidade. Como a senhora avalia essa questão?

Ana Paula – Esse é um outro argumento a ser enfrentado. Há um mito de que os adolescentes não seriam punidos, isso não é verdade. Os adolescentes cometem um ato infracional, que equivale a um crime, a uma contravenção penal, ai eles são processados, são julgados e recebem uma medida socioeducativa. Esse julgamento, na maioria das vezes, ele é mais rápido do que o julgamento que os adultos são submetidos. A possibilidade desse julgamento resultar numa privação de liberdade é maior no sistema socioeducativo do que no do adulto, porque o sistema socioeducativo é aberto do ponto de vista do que a lei diz, a possibilidade que o juiz tende de aplicar a medida de internação sempre está presente , sempre há uma possibilidade. No sistema adulto, é bem mais fechado no que se refere ao que o sujeito fez e o que ele tem de pena. Isso faz com que o adulto acabe tendo mais garantias perante o Estado que o adolescente, o que é ruim para o adolescente. Então, a gente tem vários casos, eu mesmo atuei em vários casos, em que se tem um concurso de pessoas num crime em que tem um maior de idade e um adolescente, o maior de idade respondeu ao processo todo em liberdade, porque era primário, por exemplo, e continuou em liberdade depois da condenação, porque houve um recurso. Esse adulto está em liberdade e o adolescente foi privado de liberdade desde o início numa internação provisória e ai recebeu uma medida fechada e já cumpriu sua medida, e o adulto não foi nem tem terminado de ser julgado ainda. Então, essa é a realidade concreta, não há muita possibilidade desse adolescente responder mais rápido e com mais severidade até mesmo que o adulto. Na hipótese abstrata da lei, o adulto tem uma pena prevista de privação de liberdade, na hipótese abstrata do Estatuto da Criança e do Adolescente, o adolescente tem uma hipótese aberta, que é aberta em todos os sentidos, até para prejudicar o adolescente. Então, como na prática o sistema acaba sendo muito intenso, de muita intervenção do sistema de Justiça no adolescente, às vezes, essa intervenção acaba sendo mais dura para o adolescente.

Sul 21 – Que alternativas podem ser tomadas para conter a criminalidade entre jovens e o envolvimento com as drogas? 

Ana Paula – Eu penso que intensificar a intervenção em todos aqueles fatores que levam à violência, políticas sociais, evidentemente são necessárias. Políticas sociais não só de educação e saúde, que são falhas, mas de visibilidade cultural, de visibilidade social, de empoderamento dos jovens no sentido de seus projetos de vida, alternativas para os jovens. Hoje, há uma tarefa que os adultos têm, que a sociedade tem, que a família tem, que é disputar com a oferta do tráfico. O que que o tráfico oferece? O tráfico oferece empoderamento, oferece renda imediata, o tráfico oferece a possibilidade de comprar tênis, de comprar um celular, de comprar uma roupa de marca, o tráfico leva a uma visibilidade que o sujeito está invisível para a sociedade, ele não existe até então.  Então, a gente enquanto sociedade, se a gente pensasse no filho da gente, na minha filha, por exemplo, como é que a gente pensa projeto de vida para esse filho? A gente tem de pensar em alternativas que os adultos têm de estar propiciando, alternativas no campo da educação, no campo da oportunidade de trabalho, oportunidades para construir visibilidades para as coisas boas que esse sujeito faz: se ele tem uma aptidão artística, se ele tem uma aptidão intelectual. Então, muito mais é preciso pensar no sujeito e o que a gente pode fazer para esse sujeito. Como política pública, isso se dá numa massa muito maior, eu não tenho de pensar no meu filho, mas no filho de um monte gente, então que política pública pode ser oferecida para esse jovem? Hoje muito pouco se oferece.

Sul 21 – Principalmente na periferia.

Ana Paula – Isso, principalmente na periferia. Outro tema que eu trabalho, que é o trabalho de adolescentes no meio rural, que alternativas de profissionalização existem no meio rural para essas jovens? Que alternativas existem na cidade de profissionalização, como é que ele começa? Ele vai lá procurar um trabalho e ai o trabalho exige que ele tenha experiência, qual é a possibilidade de ele conseguir o trabalho, de ele conseguir estudar com alunos que estão aqui na universidade até o grau de chegar na faculdade de Direito, por exemplo? Qual a possibilidade real que um jovem da periferia  tem de chegar à faculdade de Direito, que deveria ser uma oferta pública para todos? Qual é a possibilidade real? É uma hipótese só de um salvador da pátria, aquele que estuda tanto, na verdade acorda todos os dias de manhã e ele acredita nesse futuro, porque o contexto dele não é para ele acreditar. A nossa realidade, ela impede, ela torna essa proposta (PEC da Maioridade) hipócrita para a sociedade. Eu digo assim: olha sociedade, vocês têm medo da violência, então nós vamos responder com uma solução, que solução? Se o problema da violência está em outro lugar. O problema da violência está na falta de possibilidades da juventude, por exemplo.

Sul 21 – A senhora acredita que esse cenário de violência é agravado por se investir só em repressão e pensar muito pouco em políticas de prevenção?

Ana Paula – A repressão se dá de várias formas. Ela se dá na cultura desde a infância, ela se dá na repressão policial, ela se dá na repressão que a Justiça atua, a resposta de violência também, eu entendo a repressão stricto sensu como uma forma de violência também, diferente de conceito de construção de limites. Construção de limites é necessário desde a infância, eu costumo comparar um adolescente a um rio. O rio corre para o caminho que ele quiser correr, vai pro mar provavelmente, os adultos têm de ser a margem desse rio, margem que significa referência de limites. Por exemplo, coerência. Os adultos têm de ser margem permanentemente desde que a criança é criança, é preciso ser margem, quem abre mão de ser margem, está abrindo mão de constituir no seu filho, no seu aluno, no seu responsável, na sociedade, referenciais para a pessoa seguir. Essa margem que cabe aos adultos é um limite que dá muito trabalho, é um limite que significa permanência, presença, coerência. Sempre que esse limite for testado tem que haver uma resposta a esse limite, essa resposta diz respeito a dizer não sempre e não ficar: agora, eu digo não, agora, eu não digo não, agora eu aceito, agora eu não aceito o que tu fazes, ou seja, coerência no atendimento desse sujeito. Isso leva a construção de pessoas na fase adulta que têm clareza de seus limites, que têm clareza de suas possibilidades, que sabe que tem um rio pela frente para correr, mas que sabe que tem que seguir regras. O fato de a repressão ser usada como sinônimo de limite leva a que se aprenda a violência, o que acontece é que se eu uso a repressão como significado de limite, eu estou na verdade usando a ideia de que eu ensino não coisas da vida, eu ensino que o sujeito tem de se submeter e ao submeter o sujeito, eu estou ensinando que ele deve submeter os outros também. Então, na realidade, se tu partes de um conceito do que é repressão, repressão não é igual colocar limites, repressão é ensinar a submeter, mas isso não leva a construir referenciais claros. Então, eu acho que essa é a diferenciação.  Diz-se está faltando repressão ou tem repressão demais, depende do que se está usando como conceito. É, claro, que precisa de limites, mas limites se constroem.

Sul 21 – Há um crescimento do conservadorismo no Brasil, a senhora acredita que esse fato pode levar à aprovação de propostas como a da redução da maioridade ou da pena de morte?

Ana Paula - O Brasil vive um momento muito delicado, muito difícil de qualquer previsão. Há uma crise das instituições e é incrível como nesse momento se retoma esse tema (redução da maioridade), encontra-se espaço para discussão desse tema depois de 25 anos e, ainda, a PEC 171 para o Código Penal, é um estelionato social. É incrível! Por isso, não posso dizer, pode acontecer de tudo. Agora, eu também tenho esperança, porque uma coisa é a concentração de conservadores na Comissão de Constituição e Justiça, outra coisa é o plenário da Câmara, ainda tem o Senado. Acho que hoje, talvez, o grande problema do Brasil no sentido político seja o Congresso Nacional. Numa análise mais ampla de tudo o que está acontecendo, que é causa geradora da corrupção, que é causa geradora de uma série fatores. Mas acho que quando ela for ser votada em plenário, que ainda é no semestre que vem, poder ser que todo esse movimento que está se produzindo na sociedade, que é muito legal, muito importante, eu nunca vi nesses anos todos que eu trabalho com esse tema, trabalho desde 1992, um movimento da sociedade em favor dos adolescentes desse jeito como a gente está vendo. Acho que tem muita gente se pronunciando contrária, juízes, promotores, advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil, instituições importantes da sociedade civil, igrejas também importantes, embora tenham as conservadoras lá, tem de ser discutido na sociedade. A imprensa tem um papel muito importante de esclarecer os fatos, acho que há uma crise de desinformação, as pessoas trabalham com a informação superficial, então como é que vai se informar se não for pela imprensa. Acho que tem um debate a ser feito no país e vai ter de ter esse tempo para reverter essa situação.

Sul 21 – A senhora tem conhecimento de experiências de outros países que reduziram a maioridade e quais foram as consequências dessa medida?

Ana Paula – Não. A maioria dos países utiliza o referencial de 12 a 18 anos como de  responsabilidade penal adulta. Há outros sistemas que eles trabalham com responsabilidades diferentes nessas faixas etárias: até 16 anos, um tipo de responsabilidade, de 16 a 18 anos, a 21 anos um outro gradual de tipo de responsabilidade. Então, há diferentes experiências, mas em regra quem segue a Convenção Internacional de Direitos da Criança considera criança até os 18 anos, porque a Convenção considera criança até 18 anos, e há um sistema de responsabilização próprio para essa faixa etária. Eu não tenho conhecimento se houve a redução em tal país e se apresentou como positiva, ao contrário, trazendo para a realidade brasileira toda vez que foram tomadas medidas para a ampliação da penalização como, por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos…. A lei é do mesmo ano do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei dos Crimes Hediondos aumentou a prática de crimes hediondos, então eu não vejo nenhuma esperança de que isso (PEC da redução) pudesse trazer um benefício, ao contrário, tudo aponta, toda pesquisa, toda reflexão que se faz nesse tempo aponta, primeiro lugar que não foi feito o que deveria ser feito, o que o país se propôs, em segundo lugar, portanto, a falha está nos adultos, no Estado, na sociedade e na família. Em segundo lugar que uma medida desse tipo, ela vai ser ruim para aqueles jovens específicos e para a sociedade, no sentido do efeito que produz.

Sul 21 – A senhora já foi presidente da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), de 2000 a 2002. Acredita que as medidas socioeducativas e a estrutura oferecida são suficientes para reinserção dos jovens na sociedade?

Ana Paula – Eu penso que elas não são suficientes, mas também eu penso que a inserção do jovem na sociedade, ela não depende só da medida socioeducativa. Esse adolescente que comete um ato infracional, ele não cometeu por um fato esporádico, ele cometeu por toda uma situação social onde ele está inserido, há contexto na comunidade, há uma realidade familiar, há uma situação de violação de direitos, há um processo que gerou tudo aquilo ali. Há todo um contexto que quando terminar a medida socioeducativa, ele vai voltar para aquele mesmo contexto, então aquilo que gerou, por óbvio, aquilo se gerou um ato infracional, ele se repete como possibilidade, e não é a medida socioeducativa que evita, em regra, a existência de um outro ato infracional ou até mesmo de um crime adulto. O que a medida socioeducativa faz é uma resposta ao que o sujeito fez  e nesse sentido, ela tem um conteúdo sancionatório, uma resposta que é uma sanção, como esse sujeito é um sujeito que tem todos seus direitos, inclusive direito à educação, essa medida ela tem que trabalhar no sentido educativo com esse  sujeito. Ela tem todas as condições de fazer isso? Não. Muitas medidas socioeducativas são aplicadas no Brasil sem esse conteúdo educativo, então ai entra a falha, mais uma vez, do Estado que deveria ter um conteúdo educativo nessa medida: deveria ter escola, deveria ter profissionalização, deveria ter possibilidade desse sujeito construir um projeto de vida, isso não é um realidade no Brasil  nem era no tempo em que eu atuava diretamente na medida socioeducativa e nem é hoje. Para alguns aspectos, pior a situação, para outros, melhor. A estrutura das instituições nem sempre é adequada, a estrutura física, os profissionais que trabalham nem sempre são suficientes. Existe um modelo nacional arquitetônico definido para isso, é um modelo que não está aplicado em todo o Brasil, porque faltam recursos. Então nada se fez ainda no sentido de garantir esse sistema, esse é o grande ponto, o país se propôs a um processo de priorização da sua juventude, de sua adolescência, encarando esse sujeito em sua etapa de desenvolvimento, não fez o que tinha de fazer ainda e acha que a solução do problema geral, que não é essa, é da conta da responsabilização do sujeito. Outra coisa importante e que eu não posso deixar de retomar é o conceito de impunidade. Como esse país pode falar de impunidade dos jovens? Me parece uma hipocrisia generalizada, os dados estão apontando que a votação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça, as pessoas que votaram a favor da PEC, 60% respondem a processos judiciais e estão soltos, estão lá votando, os jovens que respondem a processos, em regra, estão presos, porque eles são pobres, são negros, são de periferia. Há uma vulnerabilidade muito maior desse público a ser atingido pelo sistema socioeducativo do que dos adultos que votam uma emenda como essa. Então, a impunidade ela tem local no Brasil, ela tem classe social, ela tem um contexto cultural e a impunidade não é da população pobre, a população pobre está nos presídios, tanto é que agente tem 500 mil presos no Brasil e o perfil desses presos é de pessoas pobres, negras, jovens de 19 a 20 poucos anos e a maioria é por tráfico, que é um crime econômico, que diz respeito a uma situação econômica e de retorno imediato. Ou, a pessoa que se envolve com o tráfico ela tem uma oferta de renda imediata. Então, para discutir impunidade a gente tem de discutir todas as instituições, todos os setores da sociedade que estão envolvidas com impunidade e que referencial de impunidade está se falando para jovens hoje no Brasil. O que alguém aprende sobre impunidade quando nasce nos contextos diferentes socais e não que esse jovem tem impunidade, pelo contrário, ele responde pelo ato dele e responde muita rapidamente e, às vezes, responde no lugar  de um adulto, inclusive, porque assume a responsabilidade de um adulto.

Sul 21 – O G10 – grupo vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju) da UFRGS e que assessora e acompanha adolescentes em conflito com a lei- tinha algumas críticas em relação ao fato de as meninas que cumprem medida no Casef – unidade feminina da Fase – aprenderem a lavar louça e roupa e meninos não, o que poderia ser configurado preconceito quanto ao gênero?

Ana Paula – No meio de tudo isso, tem o tema de gênero. O número de meninas que cumpre medida socioeducativa não só em meio aberto, como em meio fechado é infinitamente menor. A gente tem aqui no Rio Grande do Sul uma unidade de internação, que é o Casef, que tem lá não sei quantas meninas tem hoje, mas de 20 a 30 meninas, para um universo de mil e poucos adolescentes, o Casef, é pelas nossas pesquisas aqui, mais pelo grupo de pesquisa do que pelo G10, que é um projeto de extensão, a gente encontra que o Casef é uma instituição que tem muitas características de uma instituição total, o controle das meninas lá dentro é muito grande, sobretudo o que elas fazem,  inclusive sobre sua prática de gênero. Não é só uma questão de que elas fazem atividades que seriam femininas, elas fazem atividades femininas, porque são oferecidas oficinas de profissionalização para os meninos algumas, para elas, outras. Elas acabam reproduzindo aquilo que elas sabem fazer, que são as coisas de casa, mas a contradição disso não é só porque elas sabem fazer e estão acostumadas a fazer. É porque quando alguém tem a possibilidade de fazer alguma coisa, essa oportunidade não está oferecida. Então digamos assim: eu quero ser mecânica, essa oportunidade não está oferecida naquele contexto, porque aquele contexto é de controle, de manutenção do sujeito na sua condição, não de emancipação. E uma atividade laboral que fosse de outro viés de gênero, ela seria um tipo de emancipação feminina, então essa possibilidade de construir um projeto para além do gênero, para além do estereótipo de gênero, ela não está oferecida no Casef e isso se deve a toda a história do Casef, tudo ele que sempre foi, e então é mais uma coisa para se preocupar no que se refere à medida socioeducativa. Ela não é só para ser uma estrutura de controle, ela tem de oferecer oportunidades.

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