Protesto acaba em confronto em Porto Alegre
Estima-se que mais de dez mil pessoas foram às ruas para manifestar contra o possível aumento da tarifa de ônibus, as restrições sociais geradas por megaeventos esportivos e contra a violência que marcou outras marchas em distintas capitais do Brasil. No entanto, quando adentrou a noite, o clima se modificou tanto que mais parecia outra manifestação – outra vez, diversos confrontos com a Brigada Militar, ataques a prédios públicos e discrepâncias entre os próprios manifestantes; ““É um momento que requer muita ponderação”, descreveu o governador Tarso Genro (PT)
Iuri Müller, Samir Oliveira, Igor Natusch, Débora Fogliatto, Ramiro Furquim
Sul 21 - Nesta segunda-feira (17), Porto Alegre viu passar pelas suas ruas uma das maiores manifestações dos últimos tempos. Estima-se que mais de dez mil pessoas foram às ruas para protestar contra o possível aumento da tarifa de ônibus, as restrições sociais geradas por megaeventos esportivos e contra a violência que marcou outras marchas em distintas capitais do Brasil. No entanto, quando adentrou a noite, o protesto se modificou tanto que mais parecia outra manifestação – outra vez, houve diversos confrontos com a Brigada Militar, ataques a prédios públicos e discrepâncias entre os próprios manifestantes.
A partir das 18 horas, centenas de pessoas se concentraram na Praça Montevidéu, em frente à Prefeitura Municipal. Diferentemente de outros dias, nesta segunda-feira os próprios cartazes mostravam que a caminhada seria distinta. As mensagens lembravam novas reivindicações, como a crítica aos episódios recentes de corrupção e a impunidade histórica que acreditam pairar sobre a classe política.
Um cartaz dizia “Não à PEC-37”, adesivos lembravam a CPI da Telefonia e uma faixa deixava uma pergunta retórica no ar: “1964, é você?”. Nos cânticos e nas mensagens, estava clara a referência – e a solidariedade – com os atos que tinham início, quase na mesma hora, em outras cidades do Brasil como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Aqui ou ali, os militantes que se concentravam logo seriam milhares e, depois, dezenas de milhares.
Para Marcelo, ativista que rumou à Praça Montevidéu no início da noite, “o movimento quer é mudanças profundas”. Ele dizia que o aumento nas tarifas do transporte público foi “apenas a gota d’água” de uma série de episódios de descaso com a população brasileira. As bandeiras nacionais, aliás, estiveram presentes durante o trajeto como nunca: assim como o hino do Rio Grande do Sul foi cantado com força em alguns momentos. Ana, outra militante que se juntava ao movimento, afirmou que a população estava encontrando “formas de mostrar um descontentamento coletivo”. A aglomeração multitudinária de pessoas em distintos lugares do Brasil mostraria, mais do que nada, “a insatisfação geral com todos os problemas que o país enfrenta há muito tempo”.
Os manifestantes deixaram as proximidades do Largo Glênio Peres e passaram a caminhar pelas ruas de Porto Alegre por volta das 19 horas. Com o rosto tapado, um manifestante lembra que não costuma sair assim nos atos, mas que achou necessário por conta das detenções recentes. Assim como ele, houve quem dissesse estar “marcado” pela Brigada Militar e buscaram formas de evitar outra detenção. Quando a passeata entrou na Avenida Salgado Filho, o grupo já era formado por milhares, e não parava de crescer. A manifestação era inteiramente pacífica e emocionava a muitos dos que viam de fora. A extensão do ato, no entanto, só foi compreendida na Avenida João Pessoa, quando todos passavam por uma mesma e visível rua: a multidão era maior do que na quinta-feira passada (13), e ultrapassava o número de dez mil pessoas.
Porto Alegre viveu uma só marcha, mas houve momentos tão distintos que mais pareceram duas
Em muitas janelas, panos, bandeiras e toalhas brancas mostravam aos manifestantes que ali havia apoio – da mesma forma que pessoas abanavam dos prédios, aplaudiam nos carros e nas calçadas. Em um dos edifícios, uma faixa anunciava que os moradores haviam liberado a internet sem fio para os manifestantes, repetindo algo que aconteceu também na Turquia. O grito mais ouvido enquanto a marcha passava pela Avenida João Pessoa era: “o povo acordou!”. Para Gilberto, que não compartilhava da mesma faixa etária que a maioria dos presentes, o protesto foi um dos maiores das últimas décadas. “Acho que desde a época da ditadura, quando as pessoas também enchiam as ruas, eu não via uma passeata tão grande”, disse. Mesmo quando a marcha passou pelo mesmo cenário em que, no último protesto, houve confronto aberto entre manifestantes e a polícia militar, a caminhada parecia pacífica.
Foi no instante em que a manifestação optou por dobrar em direção à Avenida Ipiranga, no entanto, que as situações se transformaram. A parte dianteira do grupo se aproximava da sede do Grupo RBS, na esquina com a Avenida Érico Veríssimo, quando se ouviram os primeiros disparos e bombas da noite. A Brigada Militar havia entrado em confronto com os manifestantes pela primeira vez, conflito que se repetiria em vários momentos e lugares no decorrer da manifestação. A imensa maioria dos manifestantes parou de caminhar imediatamente. No outro lado da avenida, uma concessionária de motos foi atacada e houve quem corresse para dentro do local. Minutos depois, bombas e rojões atravessavam o Arroio Dilúvio: o cenário havia mudado completamente, e o enfrentamento permaneceria vigente por mais de uma hora nas proximidades entre a Ipiranga e a Azenha.
Manifestantes que encabeçavam a marcha recuaram com o passar do tempo, muitos buscando água para aliviar os efeitos das bombas de gás lacrimogêneo que foram jogadas aos montes. Enquanto recuavam, alguns gritavam “sem violência!” e “a luta não se reprime, protesto não é crime!”. A reportagem do Sul21presenciou casos em que os ativistas tiveram que ser levados para casas próximas a fim de receber auxílio, e até ambulâncias do Samu tiveram que resgatar pessoas na multidão. Na medida em que a onda de gás lacrimogêneo – constantemente alimentada por novas bombas – crescia pela região, os manifestantes recuavam pela Avenida João Pessoa. Por trás da cortina branca de fumaça, a batalha entre alguns ativistas e a polícia se mantinha com força: balas de borracha eram disparadas sem parar, e as pessoas que corriam tentavam entender a dimensão do conflito.
Protesto termina em confronto aberto e perseguição pelas ruas do Centro
Quando a permanência na Avenida João Pessoa se tornou inevitável em função do gás e dos tiros, a marcha se dirigiu para a Cidade Baixa e, consequentemente, se fragmentou. Neste momento, havia o temor de que a polícia bloqueasse os acessos e cercasse os manifestantes, como no protesto da última quinta-feira. De tempos em tempos, mais pessoas deixavam o principal foco de confronto e caminhavam para o Largo Zumbi dos Palmares, junto à Perimetral. Um grupo de manifestantes permanecia resistindo às investidas da Brigada Militar, que buscava desocupar a via, mas em algum momento foi necessário correr em retirada. No caminho, contêineres de lixos foram queimados, outros vidros racharam e um ônibus foi incendiado. Uma longa e dispersa perseguição teve início.
Entre os militantes que já haviam alcançado a Cidade Baixa, difundiu-se a ideia de retornar à Avenida João Pessoa. O grupo permaneceu parado na Perimetral durante cerca de dez minutos, e em seguida praticamente todos aderiram ao chamado de voltar.
Enquanto isso, outra parte do grupo retornava pela Rua Lima e Silva e teve de se refugiar em bares para evitar os efeitos da perseguição. A Brigada Militar, pouco a pouco, tentava diminuir o espaço e estar a poucos metros da manifestação. A violência observada nas vias já mencionadas deixou consequências: 38 manifestantes foram detidos e cinco ficaram feridos.
Parte da multidão voltou a se concentrar e, por volta das 23 horas, cruzou a Avenida Borges de Medeiros, por baixo do viaduto. Houve quem derrubasse as luminárias que contornam a passagem, impondo riscos aos demais manifestantes: as esferas caíram sobre a multidão que caminhava logo abaixo. Naquele local, um carro de uma empresa de segurança ficou trancado em meio aos ativistas e o motorista foi ameaçado pelos manifestantes. Numa ação perigosa, o veículo abandonou o local em marcha ré e por pouco não atropelou com gravidade um ciclista. Pouco antes, ainda na Perimetral, a motorista de um táxi que rompeu o bloqueio do protesto viveu momentos de terror psicológico. Foi cercada por um reduzido grupo que a insultou e tentou furar os pneus do carro.
No final da noite, quase início da madrugada, o palco dos confrontos foi o Centro de Porto Alegre. A cavalaria da Brigada Militar, com sabres em punho, passou correndo pela Duque de Caxias, enquanto manifestantes tentavam alcançar o Palácio Piratini e a Assembleia Legislativa. Prédios da Praça da Matriz, como o Theatro São Pedro e o Palácio da Justiça, tiveram os vidros quebrados, mas o grupo não chegou aos locais pretendidos. A partir daí, a polícia bloqueou ruas centrais e abordou manifestantes que passavam com mochilas, ao passo em que os bombeiros circulavam para apagar o fogo de contêineres. Durante parte da noite, Porto Alegre teve o serviço de ônibus suspenso em função dos acontecimentos.
Tarso Genro: “temos que transformar o momento em algo favorável”
Em entrevista coletiva concedida no final da noite de segunda-feira (17), o governador gaúcho Tarso Genro disse respeitar as manifestações ocorridas em Porto Alegre e em outras cidades do Brasil, as quais atribui a um sentimento de insatisfação popular com as instituições políticas. “É preciso analisar bem a situação, chamar as pessoas para que continuem se manifestando, mas faço um apelo ao movimento para evitar atos violência”, afirmou o governador, acrescentando que “ainda está monitorando” os acontecimentos. “É um momento que requer muita ponderação”, descreveu Tarso.
Segundo ele, os acontecimentos violentos na noite de Porto Alegre são obra “de uma parte restrita” dos manifestantes, que acaba prejudicando a compreensão do restante da população quanto aos objetivos do movimento. Tarso afirma que a BM interviu quando “as depredações se dirigiam para ameaça de integridade física” e que a barreira policial foi necessária para evitar que o confronto “descambasse para violência generalizada”.
De acordo com ele, a orientação era para que a Brigada Militar “usasse de toda ponderação” quanto aos protestos. “O que chegou a mim é que foi cumprido. Mas se constatarmos que houve ato inadequado, vamos responsabilizar”, garantiu. “Temos a Corregedoria, a própria estrutura de segurança pública, e faremos uso dessas estruturas para apurar excessos”.
Ainda segundo Tarso, é possível “transformar o momento desfavorável em algo favorável”, a partir de uma mudança política nacional. “Temos que aproveitar esse acontecimento para uma profunda reforma das instituições e dos partidos políticos”, defendeu. “Há depredações em toda parte (do Brasil). Esperamos que os parlamentos dê respostas a essa juventude, promovendo a reforma de um sistema que está marginalizando milhares e milhares”, concluiu.
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