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Geral

‘Reforma excluirá da Previdência especialmente as mulheres’

A inclusão dos trabalhadores e trabalhadoras rurais na Previdência Social a partir da Constituição de 1988 beneficiou particularmente as mulheres que vivem e trabalham no campo; até então, elas eram consideradas como “do lar”; desempenhavam (e seguem desempenhando) uma tripla jornada de trabalho que envolve a manutenção da casa, do espaço rural em torno da casa e da produção que gera renda para a família; mas a Reforma da Previdência, proposta pelo governo de Michel Temer, estabelece idade mínima de 65 anos, com tempo mínimo de contribuição de 25 anos para a aposentadoria. “Isso significa excluir do sistema da Previdência boa parte da população rural, especialmente as mulheres”, diz Roberta Coimbra, dirigente estadual do setor de gênero do MST-RS

A inclusão dos trabalhadores e trabalhadoras rurais na Previdência Social a partir da Constituição de 1988 beneficiou particularmente as mulheres que vivem e trabalham no campo; até então, elas eram consideradas como “do lar”; desempenhavam (e seguem desempenhando) uma tripla jornada de trabalho que envolve a manutenção da casa, do espaço rural em torno da casa e da produção que gera renda para a família; mas a Reforma da Previdência, proposta pelo governo de Michel Temer, estabelece idade mínima de 65 anos, com tempo mínimo de contribuição de 25 anos para a aposentadoria. “Isso significa excluir do sistema da Previdência boa parte da população rural, especialmente as mulheres”, diz Roberta Coimbra, dirigente estadual do setor de gênero do MST-RS (Foto: Leonardo Lucena)
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Marco Weissheimer, Sul 21 - A inclusão dos trabalhadores e trabalhadoras rurais na Previdência Social a partir da Constituição Federal de 1988, representou uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro. Esse mudança beneficiou particularmente as mulheres que vivem e trabalham no campo. Até então, elas eram consideradas como “do lar”, que ajudavam o marido. Na verdade, desempenhavam (e seguem desempenhando) uma tripla jornada de trabalho que envolve a manutenção da casa, do espaço rural em torno da casa e também da produção que gera renda para a família. Essa foi a razão pela qual a aposentadoria das trabalhadoras rurais foi fixada em 55 anos de idade. A Reforma da Previdência, proposta pelo governo de Michel Temer, acaba com essa regra, estabelecendo a idade mínima de 65 anos, com tempo mínimo de contribuição de 25 anos para a aposentadoria. “Isso significa excluir do sistema da Previdência boa parte da população rural, especialmente as mulheres”, diz Roberta Coimbra, dirigente estadual do setor de gênero do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul.

Assentada em Piratini há 16 anos, Roberta, além de coordenar o setor de gênero do MST, faz parte de um grupo de produção de sementes agroecológicas e ervas medicinais ligado à Cooperativa Bionatur, trabalha com ervas medicinais e participa de feiras de produtos agroecológicos pelo Estado. Em entrevista ao Sul21, ela fala sobre o impacto do projeto da Reforma da Previdência sobre os trabalhadores em geral, e sobre as trabalhadoras rurais em especial. “Uma das faixas que vamos carregar na marcha do dia 8 de março diz: ‘Aqui estão homens e mulheres que nunca chegarão à aposentadoria’, afirma, referindo-se a mobilização unificada de sindicatos e movimentos sociais rurais e urbanos, no Dia Internacional da Mulher, que, em Porto Alegre, iniciará às 5h30min da manhã, na ponte do Guaíba.

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Sul21: Qual sua avaliação sobre a proposta de Reforma da Previdência proposta pelo governo Temer e quais os seus impactos sobre a vida das mulheres que vivem e trabalham no meio rural?

Roberta Coimbra: Há muitas décadas, mesmo antes da própria existência do Movimento Sem Terra, existe uma luta pela visibilidade da mulher do campo. As nossas matriarcas, assentadas mais antigas do MST, fizeram parte dessas lutas nas décadas de 80 e 90, ajudando a manter acampamentos em diversas partes do Estado, participando inclusive de uma greve de fome na Praça da Matriz. Vários movimentos e sindicatos participaram dessa luta para que as mulheres rurais fossem reconhecidas enquanto trabalhadoras. Até então, elas eram vistas como “do lar”, que ajudavam o marido. Na realidade não é isso o que acontece. Se as mulheres urbanas fazem dupla jornada, as mulheres rurais fazem tripla jornada. Além da manutenção da casa e da família, há toda a manutenção do espaço rural no entorno da casa, além do trabalho com a produção em si responsável pela geração de renda da família.

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A nossa participação na Previdência Social como trabalhadoras é uma conquista recente. A forma como os trabalhadores e trabalhadoras rurais participam da Previdência se dá por meio do recolhimento de 2% no momento da comercialização do produto agrícola. A totalidade desses recursos arrecadados em todo o Brasil representa uma quantia bastante considerável que supera o que é gasto com a Previdência de trabalhadoras e trabalhadores rurais. Pela mudança que está sendo proposta agora, além desse recolhimento de 2%, cada indivíduo no meio rural terá que pagar, durante 25 anos, um boleto mensal equivalente a 5% do salário mínimo, o que hoje daria algo em torno de 47 reais. Pensando numa família de quatro pessoas, ela teria que dispor mensalmente de aproximadamente 200 reais, só para cumprir essa exigência. A realidade do pequeno agricultor não permite bancar isso.

Apenas alguns integrantes da família poderão pagar esse valor, o que significa que nem todos terão direito à aposentadoria. Além disso, a pessoa só poderá receber benefícios como auxílio maternidade e auxílio doença se estiver em dia com o pagamento desse boleto. Isso significa excluir do sistema da Previdência boa parte da população rural, especialmente as mulheres.

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Sul21: Este ano, a Reforma da Previdência será um dos temas centrais das mobilizações em torno do 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Como está sendo pensado esse dia?

Roberta Coimbra: O 8 de março, além de ser o Dia da Mulher, é também uma data em que debatemos as formas de violência. Consideramos essa proposta de Reforma da Previdência como uma forma de violência institucional contra as trabalhadoras rurais e urbanas. E entre todos os afetados por essa reforma, as trabalhadoras rurais serão as mais penalizadas. Além da exigência de pagamento desse boleto mensal de 5% do salário mínimo, seremos penalizadas com dez anos a mais de trabalho. O trabalho na agricultura é um dos mais pesados para a saúde do corpo. A gente faz uma força e trabalha muitas vezes em ambientes insalubres. É por essa razão que a idade de aposentadoria para as trabalhadoras rurais foi fixada em 55 anos. Agora, as condições de trabalho no meio rural estão sendo completamente desconsideradas pelos autores dessa proposta de reforma.

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Sul21: Na média, as mulheres começam a trabalhar com que idade no meio rural?

Roberta Coimbra: Em média, com 10, 11 anos, já têm algumas tarefas para cumprir. Nós estamos fazendo esse debate dentro dos assentamentos para criar um ambiente diferente, incluindo os jovens na produção, mas com qualidade de vida, documentação e renda. Nós temos vários jovens, hoje, de 14, 15 anos, envolvidos com a produção de sementes agroecológicas. As gerações passadas não tinham nenhuma regra para o trabalho infantil. As pessoas dessas gerações, com 40 anos, já apresentam problemas de saúde. As mulheres mais ainda.

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Em geral, no Brasil, não existe esse debate. O trabalho escravo segue sendo uma realidade em vários locais. Até bem pouco tempo, tínhamos um programa que estava avançando na questão da documentação, especialmente de trabalhadoras rurais. Só no Rio Grande do Sul foram mais de um milhão e meio de documentos novos, em sua maioria de mulheres. No meio rural, falta uma cultura do documento, principalmente no que diz respeito ao trabalho das mulheres. Há muitas mulheres que trabalharam a vida inteira e nunca tiveram um documento. Essa é uma realidade presente em praticamente todo o país. Por isso se instituiu o trabalho por idade na aposentadoria rural. Com a proposta de Reforma da Previdência feita agora, desaparecerá a figura do agricultor. Todos virarão autônomos. O que valerá será o pagamento do boleto mensal.

Sul21: Pelas conversas que vocês já fizeram com trabalhadores e trabalhadoras rurais, é possível perceber uma consciência do significado e dos impactos dessa proposta da Reforma da Previdência?

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Roberta Coimbra: Para os que seguem apenas os meios de comunicação oficiais, ainda há uma grande dificuldade de entendimento sobre a gravidade dessas mudanças, especialmente no meio rural. O MST, a Via Campesina e vários sindicatos e organizações urbanas e rurais estão se mobilizando para levar essas informações para as pessoas. Estamos indo às comunidades para conversar com a população e convidá-la a participar da mobilização contra a reforma. Isso está ocorrendo em todo o Brasil, unificando muitas lutas e setores para a mobilização do dia 8 de março quando devem ocorrer várias ações para denunciar essa situação.

Já estão unificados em torno dessa luta movimentos sociais pela reforma agrária, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento das Mulheres Camponesas, MTD, professores, servidores da saúde, municipários e inclusive representantes de partidos que apoiam o governo atual. Há muitos vereadores e prefeitos que sabem que essa reforma vai quebrar muitos municípios. Hoje, em muitos municípios, uma das principais fontes de renda que faz girar o comércio local vem do pagamento das aposentadorias. Boa parte dos nossos pequenos municípios tem a Previdência como sua primeira ou segunda renda. Esse debate precisa ser aprofundado, pois nem dentro desses partidos há consenso sobre a proposta de reforma.

Há uma necessidade de fazer mudanças na Previdência, mas é preciso considerar o sistema como um todo, principalmente as empresas que devem ao governo e a situação de categorias que são super protegidas e recebem uma boa fatia do que é recolhido, como os militares, o Poder Judiciário e os próprios políticos. Estes setores não serão atingidos, ao contrário de trabalhadores que passam a vida inteira recebendo um salário mínimo. Não há um rombo na relação entre o que é recolhido pelos trabalhadores e o que retorna para eles na aposentadoria. Se há um rombo é por conta das empresas que devem milhões ao governo e que serão praticamente anistiadas caso a atual proposta de reforma seja aprovada. Se precisamos mexer na Previdência Social, devemos começar por aí. Uma das faixas que vamos carregar na marcha do dia 8 diz: “Aqui estão homens e mulheres que nunca chegarão à aposentadoria”.

Sul21: Como está sendo pensada a mobilização contra esse projeto do governo Temer?

Roberta Coimbra: Diferentemente do que ocorreu em outros 8 de março, não teremos mobilizações separadas. Os movimentos de mulheres da cidade e do campo estarão unificados. Estamos enfrentando um inimigo comum e esse tema unifica as nossas lutas. Essa jornada iniciará às cinco e meia da manhã na ponte do Guaíba e se estenderá até à noite. Os diversos movimentos e entidades que estarão nesta jornada não participarão necessariamente juntos de todas as atividades programadas, mas todo mundo está divulgando como uma jornada única, pois se trata de uma construção conjunta. Ela inicia com a nossa jornada e por volta das oito e meia teremos um ato em frente ao prédio do INSS. Dali, seguiremos para a Assembleia Legislativa onde será realizado um seminário sobre a Previdência Social que abordará questões técnicas sobre o tema, o olhar do Legislativo sobre ele e também alguns crimes que já estariam acontecendo.

Sul21: Que crimes são esses?

Roberta Coimbra: Recebemos relatos que algumas agências já estariam cobrando o pagamento do boleto, sendo que isso sequer foi votado ainda. Esses relatos também serão apresentados no seminário. Depois, à tarde, há uma diversidade de atos programados que ocorrerão em diferentes espaços mas estarão articulados entre si. Às 17h30min, haverá uma concentração na Esquina Democrática para uma segunda marcha voltada mais para o público urbano.

Sul21: Você é coordenadora do setor de gênero dentro do MST. Como é que está esse debate dentro do movimento?

Roberta Coimbra: Nós vivemos em um país e em mundo machista, onde pouquíssimas sociedades têm uma prática mais igualitária. No trabalho rural, nós temos uma separação bastante clara e marcada principalmente pela exploração. Isso vem desde o tempo em que grandes latifúndios contratavam homens sabendo que, de lambuja, contariam também com o trabalho do resto da família. Como disse antes, mesmo antes da criação do MST, existe um debate sobre a questão da visibilidade da mulher do campo. Nós temos uma dupla luta aí. Uma se dá no plano interno para fazer os companheiros e companheiras entenderem quais são as raízes da violência e quais são os gatilhos que despertam, muitas vezes, sentimentos e comportamentos de preconceito e de discriminação.

Nós tivemos um debate bem difícil para chegar ao que temos hoje dentro do MST e sabemos que ainda temos um longo caminho a percorrer. Em janeiro deste ano, tivemos uma reunião da coordenação nacional do movimento, com representação de todos os estados. Além de analisar a conjunta política, tivemos um debate sobre alguns temas e setores específicos. Como ocorre já há muitos anos, as mulheres fizeram uma grande assembleia, onde, entre outras coisas, foram identificadas e debatidas as diferentes formas de violência vividas por elas. Uma novidade este ano foi que tivemos também uma assembleia só com os homens, onde se debateram vários temas, inclusive a questão LGBT que também está presente no meio rural e dentro dos movimentos. Nós temos bastante dificuldade para trabalhar esse tema, principalmente nas áreas rurais, onde os tabus são mais cristalizados.

Temos vários temas para debater aí, envolvendo questões como o acesso a crédito e à terra para casais gays, a aceitação nos assentamentos enquanto família, a participação nas instâncias sem que a sua escolha sexual interfira nos seus direitos e no seu acesso ao espaço político, social e produtivo. Esse é um dos desafios que traçamos para o próximo período: conseguir fazer esse debate em todos os níveis, desde a nossa liderança nacional até a base do movimento, nos assentamentos. Precisamos enfrentar o machismo e todos os preconceitos decorrentes de nossa sociedade patriarcal que atingem não só as mulheres.

Nós temos assentados homossexuais em todo o país. A Bahia foi o primeiro estado que se desafiou a realizar um seminário para debater a questão da diversidade sexual. No MST, dentro do setor de gênero, o qual eu coordeno aqui no Rio Grande do Sul, nós temos coletivos. Em um primeiro momento, tínhamos coletivos de mulheres. Agora, começamos a ter coletivos LGBT também. Temos várias pautas para resolver aí, inclusive do ponto de vista institucional. Essa não é uma luta que se limita ao âmbito do MST. É uma luta universal por igualdade de direitos que estão sofrendo um ataque agora com esse governo. Nós tínhamos conseguido avançar um pouco e agora vemos um grande retrocesso. Tratamos de nos inserir nesta luta, vendo como, na condição de assentados e trabalhadores rurais podemos ajudar a conquistar essa igualdade e a quebrar os nossos próprios preconceitos.

Sul21: Qual é a gravidade da situação da violência contra a mulher, hoje, no meio rural?

Roberta Coimbra: Esse é um problema significativo no meio rural principalmente porque os dados quase não aparecem. A criação de delegacias especiais para mulheres nos municípios pólo do Rio Grande do Sul já foi um baita avanço, mas que ainda não atende quem vive lá no interior e, muitas vezes, está a duzentos quilômetros de uma delegacia especial de mulheres. Uma de nossas pautas é fazer com que esse atendimento chegue também a esses locais. Hoje, quando temos uma denúncia de violência nestas regiões, contamos muito mais com a boa vontade da delegacia local e de quem está coordenando a delegacia. Em alguns municípios, conseguimos construir uma boa relação com as delegacias. Em outros, nem atendem, seguindo a lógica do dito “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

Como são locais isolados, o agressor se sente mais protegido e mais livre. Essa violência atinge as mulheres desde muito cedo com casos de estupro e casamentos forçados de meninas de 13, 14 anos, que ainda são muito comuns.

Sul21: Seguem muito comuns aqui no Rio Grande do Sul, inclusive?

Roberta Coimbra: Sim, aqui no Estado. Normalmente, as pessoas acham que isso só acontece no Norte ou Nordeste, mas se olharmos para a metade sul do Estado veremos que não é assim. Temos nesta região municípios muito grandes em extensão, mas com uma estrutura mínima. Piratini, por exemplo, tem quase 280 quilômetros de ponta a ponta, mas conta com um núcleo urbano muito pequeno que não dá conta das demandas de serviços de acesso à saúde, educação, segurança, etc. Tudo fica muito precarizado. A possibilidade de comercialização é outro problema sério. Um dos maiores desafios do MST é como é que a gente organiza os nossos assentamentos que estão há quase 150 quilômetros do asfalto – que, além da distância, é muitas vezes intransitável – para poder comercializar os produtos. Cerca de 70% de nossos assentamentos estão nesta região que se estende de Livramento até a beira de Pelotas. Eles foram criados lá, sem nenhum planejamento estratégico, numa área de extrema pobreza. Agora, os assentamentos já ajudam a girar um pouco mais o comércio e a politizar esses municípios. Essa falta de acesso a serviços e a direitos foi sendo naturalizada como uma realidade que já estava ali há cerca de trezentos anos.

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