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Poder

“Escolho continuar vivo”, diz Jean Wyllys

"Eu não saí do Brasil porque eu queria, fui obrigado. O país mergulhou num pesadelo fascista pelo qual nossa permanência no país coloca nossas vidas em risco. Eu não quero ser mártir. Não quero ter o mesmo fim da Marielle", diz Jean Wyllys, em carta enviada ao jornal português Expresso

“Escolho continuar vivo”, diz Jean Wyllys (Foto: GABRIELA KOROSSY/AG. CÂMARA)
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Texto Jean Wyllys (carta recolhida por Christiana Martins, do jornal Expresso) – Pouco antes da votação na Câmara dos Deputados do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff (aquele golpe de Estado mal disfarçado que deu início à tragédia atual do Brasil), uma organização criminosa dedicada à divulgação de fake news inventou uma promessa que eu nunca fiz: que se o impeachment fosse aprovado, eu deixaria o Brasil.

Milhões de pessoas compartilharam a mentira nas redes sociais e nos grupos de Whatsapp e, a partir do dia seguinte à votação, comecei a receber, dia após dia, semana após semana, mês após mês, milhares de mensagens por todas as vias possíveis exigindo que eu cumprisse a promessa que eu nunca tinha feito. "Já comprou as passagens, deputado?", perguntavam os mais educados. Os outros é melhor não citar, porque o grau de violência e grosseria é francamente insuportável.

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Anos depois, quando começou a perseguição judicial que acabaria com a prisão política do ex-presidente Lula (o melhor presidente da nossa história, hoje sequestrado em Curitiba pelo regime de exceção que tomou conta do país), a falsa promessa foi atualizada: "Jean Wyllys diz que sairá do Brasil se Lula for preso". E novamente, agora depois da prisão do ex-presidente, começou a cobrança: "Já está na Venezuela, deputado?".

No universo paralelo das fake news, eu sou um político "bolivariano" e defendo até o regime da Coreia do Norte.

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Não importa tudo o que eu escrevi sobre a Venezuela e o quanto eu fui criticado por pessoas de esquerda ao longo dos últimos anos por denunciar as violações aos direitos humanos cometidas pelo regime autoritário de Nicolás Maduro: no universo paralelo das fake news, eu sou um político "bolivariano" e defendo até o regime da Coreia do Norte. E agora que, sem tê-lo prometido jamais e após abandonar o país pelas ameaças de morte que recebo, a narrativa nesse universo paralelo é que eu finalmente cumpri "a promessa".

O círculo vicioso acima descrito talvez sirva para explicar o inferno que a gente está vivendo. A distinção entre a mentira e a verdade desapareceu. Essa gente que está no poder usa a mentira e o ódio como suas principais armas políticas, para destruir seus adversários, enganar as pessoas, impor seu projeto autoritário e esconder seus crimes. Se você se opõe aos interesses deles, como eu fiz durante oito anos no Congresso, você vira alvo e não tem limites para o tipo de coisas que eles são capazes de fazer.

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Associar um político homossexual à pedofilia é uma tática muito eficaz, que se aproveita do medo das pessoas para reforçar seus piores preconceitos.

No universo paralelo que eles criaram, eu sou autor de projetos de lei para mudar trechos da Bíblia (como se fosse possível!), legalizar o casamento de adultos com crianças e de pessoas com animais, instaurar o ensino obrigatório da religião islâmica nas escolas e obrigar as crianças a mudar de sexo, entre outras barbaridades.

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Eu dirigi um filme sobre Jesus Cristo, eles dizem, e foi financiado pelo Estado. Ninguém nunca viu o filme, que não existe, mas tem milhares indignados por ele. Também dizem que eu mandei prender uma professora cristã, que eu disse que a Bíblia é uma piada e que os cristãos são doentes.

Eles me atribuem diversas frases defendendo os pedófilos e falando que a pedofilia é "uma orientação sexual que deve ser aceita", porque associar um político homossexual à pedofilia é uma tática muito eficaz, que se aproveita do medo das pessoas para reforçar seus piores preconceitos. Divulgam fotos adulteradas, em que eu seguro cartazes com frases absurdas, ou manchetes falsas de jornais que noticiam coisas que eu nunca fiz ou disse, e até vídeos editados com má-fé.

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Vários políticos e líderes religiosos foram condenados por me difamar, mas nada mudou.

Imaginem por um segundo o que significa para uma pessoa (não um deputado, mas qualquer pessoa) virar alvo desse tipo de campanha. Milhões de pessoas acreditam que eu defendo os pedófilos e me odeiam por isso. É algo tão aberrante que eu mesmo, se não fosse eu mesmo e acreditasse nessa mentira, não gostaria de mim. Minha equipe de comunicação dedicou nos últimos anos quase tanto tempo a desmentir mentiras que a divulgar os meus projetos.

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Um deputado da "bancada da bala" é réu no Supremo Tribunal Federal por divulgar um vídeo toscamente adulterado para me difamar. No vídeo original, eu falava que a formação racista leva muitos agentes da segurança pública a pensar que uma pessoa negra é potencialmente mais perigosa que uma pessoa branca. No vídeo adulterado, que foi compartilhado nas redes por centenas de milhares de pessoas, a frase é cortada e eu simplesmente digo que "uma pessoa negra é potencialmente mais perigosa que uma pessoa branca".

Outro deputado do partido do presidente Bolsonaro foi condenado pela justiça a 2 anos e 26 dias de prisão em regime aberto por injúria e difamação contra mim: ele me atribuiu a frase "a pedofilia é uma prática normal em diversas espécies", que também viralizou nas redes. Vários políticos e líderes religiosos foram condenados por me difamar, mas nada mudou.

Quando toda a máquina está funcionando ao serviço da destruição da reputação de alguém, o efeito é devastador. No meu caso há uma especificidade - eu sou gay.

A máquina de difamação da ultradireita brasileira é muito poderosa. Essa gente tem muito dinheiro e estrutura, que permite a eles "viralizar" qualquer mentira a tal velocidade que faz com que todos os esforços das vítimas e dos veículos de imprensa que se dedicam à checagem de notícias e à denúncia de mentiras pouco possam fazer.

Eles têm sites hospedados em servidores no exterior, robôs que administram milhares de perfis falsos nas redes sociais, grupos de Whatsapp com milhões de pessoas que recebem e repassam as fake news, pastores evangélicos fundamentalistas que reproduzem as mentiras nos cultos e até celebrities bizarras que usam seus próprios perfis para isso.

Milhões de pessoas acreditam em cada mentira e, quando toda a máquina está funcionando ao serviço da destruição da reputação de alguém, como acontece comigo há anos e aconteceu durante a última campanha com Fernando Haddad e Manuela D'Ávila, o efeito é devastador.

Porém, no meu caso, há uma especificidade. Eu sou gay e sou uma figura pública que se tornou uma referência positiva para as minorias sexuais e outros grupos excluídos e difamados cujos direitos defendi durante oito anos no Congresso Nacional.

O fato de eu ser gay produz ao mesmo tempo uma banalização da violência contra mim e uma subestimação das ameaças quando eu as denuncio.

O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT. Centenas morrem a cada ano em crimes de ódio praticados com uma violência inusitada. A homofobia é um problema muito grave no país e nos últimos tempos o clima político tem ajudado a piorar as coisas. Hoje temos no Planalto um presidente que fez carreira espalhando ódio contra as minorias e especialmente contra nós, gays, lésbicas, bissexuais e trans. O homem que é a encarnação da homofobia no Brasil ocupa hoje a Presidência da República.

Nesse contexto, a intensa campanha de mentiras contra mim, que busca destruir minha reputação, tem incentivado como nunca as ameaças à minha vida. E o fato de eu ser gay produz ao mesmo tempo uma banalização da violência contra mim e uma subestimação das ameaças quando eu as denuncio.

Recebo ameaças há muitos anos. Minha equipe periodicamente entrega as provas à Polícia Federal e já até optámos por expor publicamente os autores desses crimes, publicando nas redes tanto as ameaças quanto as calúnias com a imagem do perfil dos autores nas redes sociais. Recorremos também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que cobrou ao Estado brasileiro proteção à minha vida.

As ameaças aumentaram novamente, atingindo inclusive a minha família. Eu passei a ter de circular em carro blindado, com custódia armada.

No ano passado, tudo piorou. O assassinato da minha companheira e amiga pessoal Marielle Franco, vereadora do nosso partido no Rio de Janeiro, teve um impacto profundo em todos nós. Entendemos que não é brincadeira, que as ameaças são sérias, que não podemos subestimar. Sentimos a dor profunda da perda de uma pessoa que amávamos e que fazia parte das nossas vidas.

Assistimos ao espetáculo tenebroso da máquina de fake news, a mesma que me difama, tentando sujar o nome da Marielle, acusando-a até de ter relações com o tráfico de drogas. Vimos um candidato do partido de Bolsonaro sendo ovacionado por uma multidão num comício fascista quando exibiu com orgulho uma placa rasgada com o nome de Marielle. Vimos esse candidato sendo o deputado estadual mais votado do Estado e o homem que o acompanhava nessa celebração macabra sendo eleito governador.

As ameaças aumentaram novamente, atingindo inclusive a minha família. Eu passei a ter de circular em carro blindado, com custódia armada. Vivi durante meses como se estivesse em cárcere privado, sem ter cometido qualquer crime. Não podia ir a lugar nenhum sem a custódia, nem mesmo comprar no supermercado ou visitar um amigo.

Eu não saí do Brasil porque eu queria, fui obrigado.

Todos os meus movimentos ficaram restritos, limitados, custodiados. Passei a viver pela metade, escravo das normas de segurança necessárias para proteger minha vida, enquanto as ameaças e a difamação aumentavam. Nos últimos dias soubemos pela imprensa que o filho do presidente empregou em seu gabinete a esposa e a mãe do criminoso foragido que, de acordo com a polícia, é suspeito de chefiar o grupo de sicários que matou a Marielle. Não tenho como me sentir seguro nesse contexto, nem posso garantir a segurança das pessoas que trabalharam durante todos esses anos comigo, às quais agradeço imensamente por tudo.

Eu não saí do Brasil porque eu queria, fui obrigado. O país mergulhou num pesadelo fascista pelo qual nossa permanência no país coloca nossas vidas em risco.

Eu não quero ser mártir. Não quero ter o mesmo fim da Marielle.

O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, quando soube da situação, me disse: "Rapaz, se cuide! Os mártires não são heróis". Eu não quero ser mártir. Não quero ter o mesmo fim da Marielle. Escolho continuar vivo, também para continuar lutando. Deixar o mandato e o país foi uma decisão dificílima, dolorosa, triste. Abri mão de muita coisa para proteger minha vida e recuperar minha liberdade de ir e vir, minha humanidade. Espero que esta decisão que tive de tomar abra os olhos de muita gente, que o mundo veja a tragédia que está acontecendo no Brasil, um país que já foi feliz, esperançoso e orgulhoso de si, e hoje está submergido no ódio, na mentira e no fascismo.

Eu não vou desistir de lutar, mesmo que seja desde outro lugar, sem cargo oficial, de outras maneiras. Agradeço muito a solidariedade recebida e espero que a gente consiga se refazer e recuperar nosso país desse estado de barbárie.

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