Elegia para Ranúsia

Será que valeu a pena, tanta luta, tanta morte, quando um companheiro faz tudo ao contrário do sonho socialista?



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Eu a conheci durante as inúmeras passeatas, que fazíamos contra a Ditadura Civil-Militar de 64. Era uma quase meninota, magrinha, de olhar meigo, olhar faceiro, olhar puro, pernas finas, tez branca, nariz adunco, cabelos alourados e muito lisos. Era extremamente generosa, dócil, apegada à profissão de Enfermagem, que escolhera para ajudar ao próximo. Valente e guerreira. Incursa no Decreto-Lei 477, feito pelos generais para afugentar os jovens da conscientização política e da luta pelas liberdades democráticas, não se furtou a continuar o seu trabalho de ajudar fundamentalmente os enfermos pobres, ontem, como hoje, a sofrerem pela própria doença e pelo descaso com os hospitais universitários, carentes de tudo.

Lembro-me que a vi no enterro do Padre Henrique Pereira Neto, este uma das primeiras vítimas do terror da era Médici, de olhos úmidos, em plena Avenida Caxangá, ao lado da minha irmã, como ela, enfermeira. No ano de 1970, quando eu era interno no Hospital Pedro II, por volta das nove horas das sextas feiras, quase sempre me trazia um enfermo pobre para medicar e, sobretudo, companheiros, que militavam em luta clandestina, mostrando na pele estigmas das torturas ocorridas no DOPS. Eu os via de modo sorrateiro, com nomes falsos, tentando burlar a vigilância dos agentes direitistas, que pululavam nas unidades da UFPE, que, ulteriormente, viria a saber ser um dos centros de tortura política no país.

Em fins de 1970, ela me chama com discrição e diz estar partindo para a luta armada. "Tem certeza, Ranúsia, que é este o caminho? - Sim, Lurildo, não há outro, esta ditadura só será exterminada na bala. Tu não queres ir comigo? - Não, Ranúsia, não tenho coragem, não. - Mas, companheiro, a gente adquire na luta! - Não, amiga, prefiro atuar como médico". Foi este o nosso último encontro. Em 1973, leio no Estadão, em frente ao apartamento, onde recém casado residia na Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo: "Terrorista é morta em tiroteio contra as Forças de Segurança em Jacarepaguá". Enchi os olhos de lágrimas, eu e todos sabíamos que aquela notícia era falsa, devia ter sido morta pelas torturas medievais, comandadas por Fleury, o sádico serviçal da ditadura, desumano e cruel.
De fato, as cinco maiores organizações da esquerda armada - VAR-PALMARES (fusão da VRP e COLINA), da qual era uma dos dirigentes a companheira Dulce, e que iria futuramente sofrer a metamorfose direitista atual como Presidente Dilma; a ALN, do Mariguella e Joaquim Câmara; a VPR, do Comandante Lamarca; o PCBR, do Mário Alves; o MR8, de Franklin Martins, Palmeiras e Gabeira; e a APML, do Mata Machado - se juntaram no justiçamento de famoso torturador paulista, íntimo do Delegado Fleury, que havia morto vários companheiros da guerrilha urbana, em violentas torturas no DOI-CODI de São Paulo. Ranúsia representou o PCBR em plena Avenida Copacabana. Por este ato político, Fleury jurou diante dos seus asseclas, que nenhum dos componentes do grupo guerrilheiro, se salvaria da tortura e da morte.

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Ranúsia foi apanhada em 27 de outubro de 1973. Viríamos a saber que durante dois dias, ininterruptamente, foi torturada sem piedade pelos comparsas de Fleury, sob seu comando pessoal. Como era comum nesses atos criminosos, deve ter sofrido no pau de arara, deve ter recebido choques elétricos na sua intimidade de mulher, deve ter tido unhas e dentes extirpados a cru, deve ter padecido horrores, com gritos lancinantes. Ainda assim, quase exangue, foi obrigada pelo monstro humano, a reconhecer, naquele bairro distante da cidade do Rio, companheiros com quem iria encontrar-se. É possível, com a coragem da mulher sertaneja, que tenha se recusado a cumprir o papel de delatora, mas há um limite para a atrocidade e a dor. E, ali mesmo, teve o que restava do seu corpo, metralhado por balas, sendo jogado em cova rasa e tempos depois, em vala comum. Antes disso, meses antes, teve a prudência de entregar a sua filhinha, gerada e nascida na repressão, a uma senhora doméstica da casa dos pais na infância em Garanhuns, para dela cuidar, criança não de todo aceita, face à clandestinidade em que vivia a mãe, não compreendida por muitos.

Posso avaliar já distante no tempo, o que deve ter pensado aquela menina, sequiosa de Justiça, amante do Socialismo, durante as sessões de tortura:" Onde estaria Zane, sua irmã, membro do mesmo PCBR? Como estaria sua filhinha, de quem foi forçada a se separar, pelo amor à Pátria? Como estaria seu pai, o senhor Moisés Rodrigues, de quem cuidei pessoalmente como médico, observando diariamente o seu semblante triste, com o afastamento de quatro filhos, todos em luta clandestina contra aquela mistificação de "Revolução"?

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E os algozes que se desfaziam daquele corpo violentado, como nos dizia o nosso Dom Helder - "Templo vivo do Espírito Santo", mal sabiam que estavam a enterrar uma Heroína Pernambucana, que deu a própria vida por Justiça, preenchendo, assim, plenamente, uma das Bem-Aventuranças de Jesus Cristo, para adentrar no seu Reino de Paz. Sequer sabiam aqueles "homens bichos", que tinham em suas mãos um corpo quase imaculado, pois que legara à Pátria os seus anos juvenis, na luta contra uma sangrenta ditadura civil-militar, serviçal do Capitalismo sem Pátria, mantenedora de um regime excludente, que ainda hoje persiste, sob a égide de uma coligação de centro-direita, a enriquecer, de modo exponencial, os que sempre foram ricos, como agora fez, praticamente doando aos Capitalistas o campo petrolífero de Libra, o maior já descoberto na História.

Querida Ranúsia, ainda ecoa em nossos corações a gargalhada do sádico Coronel Perdigão, "que ria, ria muito alto", naquela noite sombria de 28 de outubro de 1973, na Praça Sentinela, em Jacarepaguá, quando terminava a sua heroica vida, atirando na sua cabeça, os dois últimos tiros que a exterminaram. Nós, permanecemos fiéis aos mesmos ideais que nos levaram às ruas deste país nos anos 60, continuamos seus irmãos. Sua vida não será nunca esquecida, você, inesquecível amiga, hoje Heroína Pernambucana, Heroína da sua Garanhuns, está e estará sempre, no Altar da Pátria, nos lares dos empobrecidos do nosso país, nos que padecem nas filas de hospitais sucateados pela ex-companheira Dulce, para facilitar a sua privatização, nos ônibus que são uma ofensa ao deslocamento dos operários, em ruas entupidas de carros, pois o modelo neoliberal de direita assim o quis, para aumentar o lucro gigantesco dos fabricantes de veículos.

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Ao contrário do que queríamos, querida Ranúsia, quem organiza e orienta as nossas cidades, não são os representantes do povo, são as empreiteiras, são as construtoras de gigantescos e feios megaprédios, que vão destruir, dentro de poucos anos, a beleza da Recife, que conhecemos em 1962, aquela linda Veneza Brasileira, querida amiga.

E você jamais pensou, na grandeza da sua valente luta, que Dulce, aquela mulher valente da VAR-Palmares, que chegou a considerar o Comandante Lamarca um "frouxo", e que participou do planejamento da expropriação do cofre de Ademar de Barros da casa da sua amante no Rio, para o financiamento da guerrilha urbana, agora, neotransformada pela coligação de centro direita, que nos comanda, traindo o seu passado, vítima do Exército na tortura cruel que sofreu, jogaria esse mesmo Exército contra o seu povo, que protestava nas ruas do Rio contra a doação do riquíssimo campo petrolífero de Libra aos mesmos capitalistas que mataram Getúlio e a torturaram, em crime de Lesa Pátria, a merecer o devido " impeachment" do cargo mais honroso da Nação.

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Mas, Ranúsia, diga ao grande Prestes, diga ao João Amazonas, diga ao Padre Henrique, diga ao nosso Dom, diga ao Frei Tito de Alencar, que apesar de estarmos entrando na etapa final da vida, agora surgem jovens tão valentes como fomos, a invadirem as nossas ruas, clamando por Justiça e Liberdade, por um modelo econômico autenticamente nosso, não subordinado ao Capital Internacional, como atualmente reina e nos sufoca. Amiga, a semente vingou, vingou Companheira Ranúsia!

Que você ouça, Ranúsia, no Altar da Pátria, o que nos disse o nosso Dom Helder: "Felizes os que sonham, alimentarão a Esperança de muitos, e correrão o doce risco de um dia ver os sonhos realizados".

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