As lágrimas e o funeral

O Veloriomício é uma depravação oriunda do desregramento, da anomia, da catarse simulada, da reificação, da coisificação da morte. Fruto, toda essa fuleiragem, do que chamamos de senso de oportunidade

O Veloriomício é uma depravação oriunda do desregramento, da anomia, da catarse simulada, da reificação, da coisificação da morte. Fruto, toda essa fuleiragem, do que chamamos de senso de oportunidade
O Veloriomício é uma depravação oriunda do desregramento, da anomia, da catarse simulada, da reificação, da coisificação da morte. Fruto, toda essa fuleiragem, do que chamamos de senso de oportunidade (Foto: Lelê Teles)


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Há pouco vivenciamos, entre consternados e estarrecidos, um inusitado espetáculo fúnebre. Inusitado no que apresentou de inusual: selfies e sélficos sorrisos, pesquisa de boca de túmulo, chicletização de slogan, manipulação de imagens, cretinização de motivos, falsificação de biografias, simulacros, simulações e distribuição de toda sorte de material de campanha.

Deus é testemunha.

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As cerimônias fúnebres, todos o sabemos, costumam ser previsíveis, visto que são compostas por determinado número de atributos e repetições de uma série de eventos apreendidos pela tradição.

Têm regras fixas e consensuais. O humor, que aí é um imperativo categórico, varia de cultura para cultura, mas em cada cultura é invariável.

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Sabemos disso ao ler o seminal L'expression obligatoire des sentiments, de Marcel Mauss.

Chorar é o mesmo que demonstrar ternura e respeito ao morto que vai aos céus e aos seus que vivem e ficam. Embora pareça que o fazemos por uma questão individual, é óbvio que o fazemos como uma prática puramente coletiva.

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As lágrimas, antes de se tornarem uma reação fisiológica e psicológica, são uma prática social, uma simbólica interação coletiva que tem como finalidade a coesão do grupo em conformidade com isso que Mauss chamou de fato social total, o rito funeral de despedida do morto.

E não estamos a falar somente em lágrimas, o choro fúnebre é composto por outras numerosas expressões de sentimentos orais ou não verbais como gritos, discursos, cantos, muxoxos, abraços, afagos, orações...

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Estes elementos, diz Mauss, se constituem em fenômenos sociais marcados por manifestações não espontâneas, típicas de uma obrigação. Não fazemos simplesmente porque queremos, o fazemos porque o momento exige que o façamos.

Mauss teve como objeto de estudo uma tribo destas ditas primitivas da Austrália, mas para universalizar sua teoria é só relativizar.

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Esse veloriomício, assim como a jabuticaba, é algo 100% nosso. Esse se configura, como vimos a pouco, como uma abjeta invenção midiática eleitoreira.

O Jornal Nacional, um dia anterior ao acidente que vitimou Eduardo Campos acusava o candidato de nepotismo, agora eleva o defunto ao panteão dos estadistas nacionais, neto daquele, filho daquele outro, apadrinhado por este aqui e que deve ser substituído por esta de cá.

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O destino da nação, de repente, ficou nas mãos de uma viúva, uma beata, um irmão exaltado, e uma abútrica mídia córvica e canalha.

Quando estava em terceiro lugar e sem o menor indício de crescimento futuro, Eduardo minguava no noticiário. Sua morte abria espaço para o surgimento de sua vice, a cândida candidata, com potencial para embolar a corrida presidencial.

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Tudo se encaixava perfeitamente com o sonho dos nossos jurássicos grupos de comunicação dominados por famílias bilionárias.

O segundo turno e, lá, a Bala de Prata, uma bolinha de papel, um dossiê fajuto, uma pilha de notas de 50 lascas...

Por isso, antes mesmo que o corpo esfriasse, por assim dizer, já se faziam sondagens junto ao eleitorado, em busca da manchete da dia seguinte.

Slogan já tinham, estava pregado em uma faixa no carro que levava o féretro, no alto do qual, os órfãos faziam uma estranha coreografia, punhos cerrados.

Porque se falou tanto sobre as manifestações obrigatórias de sentimentos neste funeral, mais do que em qualquer outro? Porque algo ali destoava de tudo.

Sua gramática era outra, havia outros significados semânticos que resultavam de sua prática, desvirtuou-se o que era consensual e descaracterizou-se o que era tradicional, por uma inovação improvisada e atípica.

É de respeito que estamos a falar quando falamos em relações de alteridade, em trocas simbólicas coletivas, em organização do espírito emotivo de uma sociedade.

O Veloriomício é uma depravação oriunda do desregramento, da anomia, da catarse simulada, da reificação, da coisificação da morte. Fruto, toda essa fuleiragem, do que chamamos de senso de oportunidade.

Que luto é esse?

Vendo o desdobramento que esta tragédia vem tendo até então, não posso me furtar a ilustrá-la com um fragmento de nosso magnífico Machado de Assis, em uma passagem do seu maravilhoso Quincas Borba, ao texto:

"... as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me, então, licença que acenda ali o meu charuto?"

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