A esperança equilibrista

Nos 36 anos da anistia, nunca é tarde para atualizar a dívida e exigir reparos

Nos 36 anos da anistia, nunca é tarde para atualizar a dívida e exigir reparos
Nos 36 anos da anistia, nunca é tarde para atualizar a dívida e exigir reparos (Foto: Camilo Vannuchi)


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— Precisa atualizar essa música.

— Como assim, atualizar?

— Atualizar. Modernizar, entende? Não dá para entender a parada. Precisa fazer uma versão, uma poesia que tenha mais a ver com a gente.

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— A versão original não tem a ver com a gente?

— Tem. Mas vai ficar melhor se o papo for reto, se simplificar o recado, tá ligado? O meio é a mensagem. Li essa frase num ônibus outro dia. Massa, né?

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— Ô. Mas me diz uma coisa, de que jeito vai atualizar a música?

— Bom, precisa ir vendo, verso por verso. Por exemplo, "caía a tarde feito um viaduto"... Tá vendo? Não rola. 

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— Por quê?

— Mó viagem. Compromisso zero com a realidade. Esquece. Primeiro porque esse lance de cair da tarde é cafona, parnasiano. Meio maricas. Depois que a mina fala em viaduto.

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— Mina? Que mina? 

— A moça que canta. 

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— Elis? Ela fala em viaduto porque está na letra, ué. E a letra não é dela.  

— Ah, não?

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— Não. Elis Regina não compunha. Esta canção, por exemplo, é do João Bosco e do Aldir Blanc. Mas retoma o assunto, vai. O que há de errado em falar em viaduto.  

— Fora de moda. Ninguém mais quer saber de pontes e viadutos. Melhor trocar pra ciclovia.

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— Caía  a tarde numa ciclovia? Ou a noite? Caía a noite numa ciclovia?

— Pode ser. Mas aí não rima com luto, né? Precisa rever. Aliás, melhor não falar de bêbado. Não pode.

— Como, não pode?

— Politicamente incorreto. Precisa usar alcoólatra. Ou alcoólico. Ou não usar nada. Porque esse impulso por tachar os caras disso ou daquilo. Faz diferença saber se o mané tinha tomado umas ou não? Se ele  é manguaceiro. pinguço? E trajar luto? Faça-me o favor. Quem veste luto hoje?

— É uma figura de linguagem. Uma metáfora. Não precisa levar ao pé da letra. O cara da música vestia e por isso fazia lembrar Carlitos.

— Grande Tevez!

— Porra, que Tevez? Que Tevez?

— Carlitos Tevez, o craque? Parque São Jorge, 2005. Tabelinha com Nilmar, lembra? Aquilo que foi 7 x 1. 

— Bicho, vou te dizer uma coisa, tem hora que ser jovem é uma merda.

— Por que você está falando isso?

— O Carlitos da música não é o Carlitos Tevez. É um personagem do cinema, o vagabundo interpretado por Charles Chaplin. Um personagem de comédia, muito importante, que fazia filme mudo, em branco e preto, e que sempre usava terno escuro e chapéu coco. 

— Puxa, não conhecia. Então é melhor trocar para Poechat, que tal? 

— Nem fodendo. 

— Marcelo Adnet? 

— Não. 

— Gregorio Duvivier?

— Porra, não dá, não tem nada a ver. 

— Deixa Carlitos, então. Tem certeza de que esse Chaplin não vai processar a gente por tachá-lo de alcoólico ou de dependente químico?

— Ele já morreu. 

— Nossa, que insensibilidade a sua... Eu aqui preocupado com nosso Carlitos que não é o Tévez e você me dá essa notícias assim, de supetão? 

— Faz quase 40 anos. Fica frio.

— Okay. Dona do bordel cai fora.

— Cuma? 

— Dona do bordel. Dona do bordel não pode. É conteúdo impróprio. As rádios não tocam, as tevês não mostram. 

— Vai tirar a dona do bordel? O Aldir Blanc vai ficar maus. 

— Quem? 

— O Aldir Blanc. Aldir. Não é Almir nem Valdir, é Aldir. É o nome do cara que escreveu essa letra. Ela gosta de meter uma sacanagenzinha na música sempre que pode. Numa delas, ele teve a proeza de tascar um "xereca da vizinha" num verso. 

— Xereca também dá merda. Melhor não abusar.   

— E mata-borrão?

— Que que é isso?

— Não sabe o que é mata-borrão?

— Não tô lembrado. É aquele negócio que o povo instala nas fazendas para proteger a casa dos animais? 

— Não. Isso aí é mata-burro.  

— Ah, é. Bem lembrado. Então fiquei confuso.

— Mata-borrão é um dispositivo usado para chupar o excesso ainda úmido da tinta usada para escrever uma carta a mão, por exemplo. Era indispensável para quem usava caneta tinteiro, por exemplo.

— Tô dizendo que essa música está inteira comprometida, velha, desgastada...

— Só que nessa estrofe, os mata-borrões podem não ser exatamente mata-borrões.

— Ihhh.

— Tô falando sério, repara. Aqui os mata-borrões chupam manchas torturadas. Até agora, a letra vinha tergiversando, floreando, adoçando. Agora escancarou. Botou a tortura na roda, armou o cenário, formou o contexto. 

— Que sufoco louco! Mas é tortura mesmo? No duro? 

— E bota duro nisso. 

— E como a gente vai atualizar isso?

— E precisa?

— Óbvio, né? Dãr... O cara fala em tortura, em mata-borrão de manchas torturadas, e você me pergunta se precisa atualizar? Quem entende o que é tortura hoje?

— Lamento informar, companheiro, mas a tortura está aí, pra todo lado, nas periferias, no morro, nas madrugadas das delegacias. Quem é preto sabe. Quem é pobre tá por dentro. Só não vê quem não quer, quem prefere não ver.

— Mas é diferente...

— Diferente por quê? 

— Diferente, oras. Não tem mais preso político. Muito menos tortura de preso político. Ninguém é preso ou torturado por ir contra o regime ou fazer movimento estudantil. 

— Depende. De certa forma, tudo é política. E preso político nós tivemos recentemente. Há dois anos teve estudante preso por carregar uma embalagem de vinagre na mochila. Além do mais, não existe atenuante nessa evolução que você cita. Enquanto tiver um preto, um pobre, um ladrão de galinha ou traficante sendo torturado num terreno baldio ou num porão de periferia, há razões para gritarem "ditadura nunca mais". 

— Calma, velho, só tava dizendo que não tem mais aquela caça às bruxas de antes, aqueles anos de chumbo. Foi mal. Você tem razão nisso aí. Mas ó, não entendi essa parte kardecista que vem em seguida. 

— Que parte kardecista? Pirou? 

— "Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu". 

— E de onde você tirou que isso é kardecista?

— Se liga, maluco, a mina tá falando na volta de gente que partiu. Sinistro paca. 

— É partiu de ir embora, de viajar, e não partiu de morrer. 

— Mas o irmão do Henfil não é aquele cara que morreu, aquele que tinha o rosto chupado e que fazia uns lances de combate à fome e à miséria? Estudei isso aí. 

— Exatamente. O irmão do Henfil é o Betinho. Na verdade os dois tinham mais um terceiro irmão, o Chico Mário, que era músico, mas esse verso se refere ao Betinho. Betinho foi exilado. Por isso Elis Regina diz que o Brasil sonhava com a volta do irmão do Henfil. Nessa época a população começava a pedir a Anistia. 

— Tipo perdão de dívidas? 

— Não, energúmeno! Anistia aos presos e exilados políticos. 

— E o que Marias e Clarices têm a ver com isso? Clarice Lispector?   

— Na verdade aqui tem uma mensagem subliminar. Clarice é o nome da viúva do Vladimir Herzog, um jornalista de São Paulo que foi preso e assassinado nas dependências do DOI-Codi, em 1975. Lá se vão 40 anos... 

— Caralho, é tempo pra burro. 

— Pois é. E apenas dois anos atrás a família do Herzog pôde finalmente receber um novo atestado de óbito, com a revisão da causa mortis: lesões e maus-tratos sofridos nas dependências do Segundo Exército, sob tutela do Estado. 

— Isso tem a ver com a Anistia? 

— Claro que tem. A morte do Herzog provocou mudanças na direção da repressão, ajudou a acelerar o processo de abertura e também serviu para pressionar os militares em favor da anistia. E foi como anistiados políticos que pessoas como Herzog, Alexandre Vannucchi Leme e Stuart Angel tiveram seus atestados de óbitos reformulados.  

— Saquei. Então é sobre a dor de tantas Clarices que a mina está falando quando diz que "uma dor assim pungente não há de ser inutilmente". E também logo em seguida, quando ela diz que "a esperança dança na corda bamba de sombrinha

e em cada passo dessa linha pode se machucar". 

— Aldir Blanc e João Bosco. 

— Hein?

— Nada. Deixa quieto. 

ANISTIA 

Os 36 anos da promulgação da Lei da Anistia estão sendo celebrados com uma série de programas especiais ao longo de toda a semana. Nesta sexta-feira, 28, haverá um ato na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, a partir das 19h, durante o qual a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça vai lançar o site Anistia Virtual e o Laboratório em Tecnologia e Direitos Humanos. A iniciativa do ato tem o apoio de diversas instituições parceiras, entre elas a Jornada pela Democracia, na qual tenho atuado, além da Fundação Maurício Grabois, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, do Centro Acadêmico XI de Agosto, do Memorial da Resistência, da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério Público Federal, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. 

ANISTIA 2

Marcelo Rubens Paiva lança no sábado, 29, às 16h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, o livro "Ainda estou aqui". Autobiográfico, o livro foi motivado pelas recentes descobertas da Comissão Nacional da Verdade, que finalmente desvendaram a tortura seguida da morte de seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, no DOI-Códi da Tijuca, no Rio, em 1971. Nele, o autor refaz episódios da infância, como o desaparecimento do pai, para se concentrar no relato e na força de sua mãe, a advogada Elnice Paiva, hoje com um Alzheimer avançado, aos 85 anos. Segundo o filho, Elnice militou mais contra a ditadura do que o próprio deputado. 

ANISTIA 3

O Instituto Lula lança no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, na terça-feira, 1º de setembro, às 18h, o Memorial da Democracia. Concebido como um museu virtual, interativo e intuitivo, o Memorial reúne fotos, vídeos, documentos e músicas que contam a história das lutas por democracia no Brasil. A composição desse vasto material teve a coordenação e a colaboração de Franklin Martins, Ricardo Batista do Amaral e Vladimir Sacchetta, entre outros autores e pesquisadores.

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