Ustra, São Paulo e Bahia

É incrível assistirmos, nesse período, depois de mais de 28 anos do fim da ditadura, um bandido, um torturador, um assassino afrontar o Estado de Direito



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É sabido e consabido vivermos um período conhecido como de Justiça de Transição, entrecruzamento do passado e presente, instante em que o Estado Democrático tenta jogar luzes sobre o período tenebroso da ditadura. Essa Justiça de Transição exige que se assegure o direito à memória e à verdade, que ao menos se revele e de preferência se puna os torturadores do antigo regime e que se desenvolva um conjunto de reparações destinadas a fortalecer as instituições democráticas. Fazer isso significa evitar a reprodução de violações dos direitos humanos e estimular a constituição de uma consciência coletiva capaz de barrar qualquer aventura golpista. Significa dar consistência à vida democrática.

É incrível assistirmos, nesse período, depois de mais de 28 anos do fim da ditadura, um bandido, um torturador, um assassino afrontar o Estado de Direito, negar-se à verdade, mentir de modo obsceno, negar as 50 mortes ocorridas sob seu comando direto na OBAN/DOI-CODI. Fosse outra a nossa correlação de forças, não tivéssemos feito uma transição conservadora da ditadura para a democracia, e Carlos Alberto Brilhante Ustra estaria na prisão, e de lá não sairia mais. Videla ficará na cadeia até o último dia de sua vida de terror, culpado pelas mais de 30 mil mortes de revolucionários argentinos.

Se mérito existe nisso, e não creio haver, Videla, a Enguia, como o chama Tomaz Eloy Martinez, nunca negou ter matado aqueles que denominava comunistas e o fazia com acentuado prazer, como Ustra que, no entanto, covardemente, não admite ter praticado os crimes que cometeu. A presidenta eleita, que exerceu o sagrado direito à resistência, próprio de quaisquer regimes democráticos, não pode ser alcunhada de terrorista por um, aí sim, sádico terrorista, disposto sempre a massacrar seres humanos, de crianças a mais velhos, homens e mulheres, que sentia o gozo do gosto de sangue na boca, se comprazia enormemente com o sofrimento dos torturados e com os corpos dos mortos apresentados aos demais presos para que falassem.

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Quando me refiro à Argentina, quando agora me lembro do processo chileno e de outro terrorista, Pinochet, quando me assalta a lembrança do processo uruguaio, países que puniram de modo bem mais severo os seus monstros torturadores, não o faço com a pretensão de reescrever a história ou de lamentá-la, até porque um exercício inútil. Cada povo tem sua lógica e supera ditaduras a depender de suas singularidades. Nós passamos da ditadura à democracia num pacto que decorreu de muitas lutas, mas que manteve muito das marcas mais cruéis de nossas classes dominantes. Agora, no entanto, estamos vivendo um momento rico, e creio, apesar de tudo, ter sido positiva a presença de Ustra à frente da Nação, revelando como pensa um terrorista.

Não digo terrorista à toa. Terrorismo existiu no Brasil, e sempre foi obra da direita, da ditadura. Esta prendeu, torturou, matou, fez desaparecer pessoas, e sempre covardemente, sempre matando pessoas submetidas. Eram criminosos. Na Argentina, volto a ela, o processo que redundou na prisão perpétua de Videla e de tantos outros, ficou conhecido como o Nuremberg argentino. Ainda não fizemos o nosso Nuremberg brasileiro, e nem sei o faremos já que a maioria dos mandantes – os Costa e Silva, Médici, Geisel e outros – já estão mortos. Tenho convicção, no entanto, que a Comissão da Verdade cumprirá a sua tarefa.

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Apesar de tudo, o torturador-assassino foi desmascarado. À vista de documento das forças repressivas, que admitia a morte de jovens dentro do DOI-CODI, o terrorista respondeu perguntando se Cláudio Fonteles acreditava que eles fossem jovens inocentes, e afirmando que eles eram terroristas – ou seja, admitiu sua participação na morte deles. Ele se acreditava senhor da vida e da morte, acreditava poder julgar e matar aqueles jovens, e ainda quer se passar por inocente. Ao invés de assumir sua responsabilidade, o terrorista quer diluí-la, distribuí-la para o restante do Exército brasileiro. Em qualquer país do mundo, em períodos de Justiça de Transição, não se julga a instituição armada como um todo, mas os que concretamente cometeram crimes contra a humanidade, como Ustra. Assim foi, inclusive, em Nuremberg.

Para os que não sabem, Ustra, junto com outro terrorista, Sérgio Paranhos Fleury, andou por terras baianas. Foi na Operação Radar, em 1975, quando torturou, sempre lado a lado com Fleury, dezenas de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entre os quais o admirável Luiz Contreiras, o ex-deputado Sérgio Santana, o engenheiro Marco Antônio da Rocha Medeiros, o operário petroquímico Carlos Marighella, entre tantos outros, todos militantes ou simpatizantes do velho Partidão. No meu próximo livro – Golpe. Tortura. Verdade. –, quarto da série Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento, revelo isso com muito mais detalhes. Ustra, assim, é um terrorista de abrangência nacional, embora a maior concentração de seus crimes tenha ocorrido no DOI-CODI paulista.

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Ainda não fizemos a catarse desse período terrível de nossa história. A ditadura deixou marcas fundas na vida do nosso povo, e particularmente nos que experimentaram a perseguição, as prisões, as torturas, o exílio, feridas na alma de famílias que não puderam sequer enterrar os seus mortos porque os terroristas-assassinos sumiram com os corpos. A Comissão Nacional da Verdade tem a grande tarefa de fazer essa catarse. Com a verdade posta à mesa, seguramente, a sociedade brasileira e o Estado de Direito tomarão as medidas cabíveis para que os torturadores que estiverem vivos sejam devidamente punidos. É um dever de justiça e de humanidade. Um dever que o Estado Democrático de Direito há de cumprir.

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