“Eu posso tomar um tiro na cara a qualquer momento”

Dona de quatro empresas em São Paulo, advogada, ativista da World Association for Sexual Health, Márcia Rocha contou ao jornalista Alex Solnik por que gosta de mulheres mesmo sendo travesti; apesar de o Brasil ser um dos líderes em crimes contra transexuais, "é o único país do mundo onde trans anda na rua", diz ela; Márcia, que tem uma filha e ficou no armário até os 40 anos, conta ainda frequentar todos os lugares em São Paulo; "Eu frequento qualquer lugar. Você que se dane. Eu estou sendo eu, se você se incomoda com a minha presença você tem um problema"

Dona de quatro empresas em São Paulo, advogada, ativista da World Association for Sexual Health, Márcia Rocha contou ao jornalista Alex Solnik por que gosta de mulheres mesmo sendo travesti; apesar de o Brasil ser um dos líderes em crimes contra transexuais, "é o único país do mundo onde trans anda na rua", diz ela; Márcia, que tem uma filha e ficou no armário até os 40 anos, conta ainda frequentar todos os lugares em São Paulo; "Eu frequento qualquer lugar. Você que se dane. Eu estou sendo eu, se você se incomoda com a minha presença você tem um problema"
Dona de quatro empresas em São Paulo, advogada, ativista da World Association for Sexual Health, Márcia Rocha contou ao jornalista Alex Solnik por que gosta de mulheres mesmo sendo travesti; apesar de o Brasil ser um dos líderes em crimes contra transexuais, "é o único país do mundo onde trans anda na rua", diz ela; Márcia, que tem uma filha e ficou no armário até os 40 anos, conta ainda frequentar todos os lugares em São Paulo; "Eu frequento qualquer lugar. Você que se dane. Eu estou sendo eu, se você se incomoda com a minha presença você tem um problema" (Foto: Gisele Federicce)


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Por Alex Solnik, para o 247

Com que nome você nasceu?

Marcos. Nada a ver. Foi um alívio. Minha história é super-complicada. Eu sempre fui trans, eu tive que ficar menino, eu sou de uma família de um nível muito alto e tal, de 13 para 14 anos eu comecei a tomar hormônio porque eu queria que meu corpo mudasse como das minhas colegas de escola. Meu pai percebeu meus seios crescendo, me levou no médico. Tive que contar. E eles me convenceram a ficar no armário, a não contar para ninguém e eu fiz isso até os 40 anos. O que não foi errado. Lógico que seria melhor se eu pudesse ter sido quem eu era aos 14 anos, se o mundo me aceitasse, só que eu teria morrido! Então, não foi uma decisão errada ficar no armário. Em razão da época, no contexto em que a gente vivia. Hoje é perfeitamente possível para mim ser quem eu sou, sair na rua, andar por aí. E aí se fala: "mas o Brasil é o país que tem mais violência e homicídios contra trans". Sem dúvida. Estatisticamente é mesmo. Só que é o único país do mundo onde trans anda na rua. Porque eu não vi trans em lugar nenhum do mundo! Fui para a Espanha, fui para a Inglaterra, fui para a Alemanha! Argentina eu vi, uma ou outra. Em balada. Na maioria dos países elas não saem na rua. Não têm uma vida normal. Como aqui também não têm. Estamos lutando por isso.

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Nos documentos você é Marcos ou Márcia?

É Marcos e eu não quero mudar. Eu não mudei o nome pelo seguinte. Eu tenho quatro empresas, eu tenho uma filha, tenho firma em praticamente todos os cartórios de São Paulo, tenho muitos imóveis, se eu tivesse que mudar de nome o trabalho que eu teria seria imenso... teria que mudar toda a documentação. E a questão da minha filha, como é que fica o documento dela? Para mim não compensa, porque não é uma coisa que me incomoda. Eu tenho o nome social Márcia Rocha, dentro da OAB onde faço parte da comissão contra a discriminação sexual e combate à homofobia eu uso Márcia Rocha, nos cartões de visita sou Márcia Rocha, então eu sou Márcia Rocha. Se eu quiser assinar um documento, é Marcos, e daí?.

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A tua filha é tua filha biológica?

É biológica, do primeiro casamento...

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Ah, você foi casada com mulher?

Fui casada com mulher, eu sou bissexual, eu gosto de mulher. Então, foi muito fácil para mim ficar no armário quarenta anos, porque eu gostava de mulher, então me casei, depois me separei, porque eu queria ter uma filha, depois eu conheci uma mulher que me aceitou como eu sou, me apaixonei, fiquei com ela oito anos, só que... ela me apoiou para fazer minha transição dos quarenta anos em diante, só que quando eu comecei a ficar muito mulher ela perdeu o tesão, porque ela não é lésbica. E acabamos nos divorciando. Hoje eu namoro uma mulher lésbica, advogada também, ativista também. Já fiquei com homem várias vezes na minha vida, tentei namorar com homem, mas não consigo. Para mim, homem dá para brincar, para se divertir, mas para casar, para namorar, não consigo. E essa questão minha, eu não sou a única, conheço muita gente que é assim. Só que não sai do armário. Por que a gente sai de uma caixinha e tem que entrar em outra? "Você é uma mulher trans... então você tem que operar e mudar o nome"... e ficar uma mulher igual a todas as outras que apanham do marido. Para! Tem que dar liberdade! Se eu não faço mal a ninguém... direitos humanos...por que não?

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Até os quarenta anos você se vestia como homem?

Eu sempre, desde os meus sete anos gostei de me vestir de mulher, escondido. Eu sempre tive isso, desde os quatro. Eu queria ficar só com meninas até que uma professora me disse você é menino, tem que andar com meninos. Eu não gostei, não queria mais ir à escola. Comecei a me expressar como menino, mas forçado. Sempre mantive um outro lado, paralelo. Com oito anos eu já usava salto alto. Minha mãe saía, eu ia no armário pegava anágua, sapato de salto alto, maquiagem, me maquiava, ficava observando minha irmã se maquiar, minha madrasta (meus pais se separaram) para fazer igual. Assim foi a vida inteira. Dos 13 para os 14 eu ficava reparando nas meninas tendo seios, ficando com curvas e tal e eu virando homem. Coisa horrorosa! Eu vi uma travesti na rua e perguntei para ela o que ela fazia para ficar assim e ela falou: uma pílula anticoncepcional. Fui na farmácia e comprei. Depois de três, quatro meses meus seios já estavam se formando. Meu pai percebeu na camiseta da escola, me levou ao médico, eu tive que contar o que estava fazendo, parei. Mas continuei minha vida dupla. Todas as minhas namoradas sabiam como eu era. Minha ex-mulher... a outra menina com que eu morei quatro anos. A minha última esposa também, todas sabiam, sempre souberam, nunca escondi, até porque não dá para levar a intimidade escondendo... eu sempre tinha um monte de roupa de mulher guardadas... não dava para esconder. Eu sempre vivi essa vida dupla a vida inteira... tenho provas disso, tenho testemunhas, fazia terapia... terapia a vida toda... o terapeuta sabia, fazia anotações...meu pai sempre me fez fazer terapia... outra besteira é a cura gay, se tivesse cura gay... fui tratada pelos três melhores psiquiatras dos Brasil e eles jamais falavam que eu devia me expor, diziam que eu tinha que tomar cuidado, me botavam medo... chegou uma época em que quase me deram remédio, eu tinha uma angústia muito grande em não assumir... "você não pode assumir, não pode, vou te dar um remédio"... E o que vai acontecer? Eu vou brochar? "Vai"! Então eu não quero! Eu não ia ter mais libido, ia ficar catatônica, sei lá o que. Imagina! Eu sou advogada de uma grande imobiliária, tenho quatro empresas, duas delas fiz sozinha, fiz Direito na PUC, estou fazendo pós-graduação agora, eu sou uma pessoa proativa, produtiva, construí muita coisa, criei uma empresa do nada, em 1990, presto serviço para grandes empresas e tudo, então, não tem o menor cabimento, eu sou competente, a roupa que eu uso não afeta a minha capacidade, a roupa que eu uso é a roupa que eu uso, com a qual eu me sinto bem, o corpo que eu tenho é o corpo que eu preciso ter... não existe uma razão lógica para que a sociedade não aceite as pessoas trans. Não tem! Estive num congresso, agora em Singapura... na Índia há ainda um preconceito muito grande com as "injas", as travestis... e eu falei "eu sou inja"...e eles ficaram com o olho desse tamanho. Eu sou, qual é o problema?

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Você se considera travesti?

Eu me chamo aqui de travesti também. Porque eu acho que tenho que puxar para mim: eu sou uma pessoa bem-sucedida, falo várias línguas, viajei muito, sou culta, eu puxei isso para mim, eu me chamo travesti porque sou travesti e pronto. Eu sou o que quiserem me chamar. Porque o próprio rótulo não cabe em mim, ele se desmancha. Travesti, aquela coisa da rua, ignorante, põe esse rótulo em mim! Não cabe! Desmantela o rótulo, não a mim!

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Você nunca se questionou por que você teve que virar mulher se você gosta de mulher?

Isso nunca passou pela minha cabeça. O que aconteceu foi o contrário. Durante esse período em que fiquei no armário eu tinha um conflito muito grande. Por que eu pensava "gente, eu não sou gay, eu não me sinto homossexual... o que que é isso? Por que? É uma brincadeira que eu faço? É um fetiche"? E esse terapeuta bambambam ele falava "você é um caso único, você é um caso único". Isso de querer ser mulher e gostar de mulher. Depois, muitos anos depois eu conheci o Oswaldo Rodrigues que falou: "não tem nada a ver, orientação sexual é uma coisa e identidade de gênero, outra". Eu falei: é? Eu tinha 39 anos. Foi aí que eu resolvi tocar o barco. Comecei estudar muito, muito. Médicos, psicólogos, antropólogos, sociólogos. Foi aí que eu entendi: então eu posso, por que não? Eu posso ser eu! E descobri um grupo, o brazilian cross dressing club, que é fechado que tem muita gente importante no armário, gente importante, inclusive, empresário... diretor de multinacional, engenheiro, arquiteto, gente de peso. Eu falei: não quero mais ficar no armário. E conheci Laerte. E com meu discurso de não quero mais ficar no armário, a Laerte saiu primeiro. Logo depois eu assumi também. Eu nunca quis ficar mulher, eu sempre fui. Acabei tendo um monte de relações com homens, até porque eu achava, quem sabe eu poderia gostar e assim ficava tudo resolvido, mas afetivamente nunca consegui gostar de um homem ou namorar um homem. Eu não escolhi! Eu sou do jeito que sou. Ponto. Por que o mundo acha que se eu sou mulher eu tenho que ficar com homem? Não existe lésbica? Por que o mundo acha que se eu sou homem eu não posso me vestir de mulher? O que não tem lógica é a moral. O ser humano é diverso. Existe de tudo. A natureza adora a diversidade. A sociedade é que não aceita. Veja o quanto a sociedade é estúpida!

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Você não se operou?

Não me operei e não me opero por nada desse mundo! Eu sempre tive meu pênis, me dou muito bem com ele, amo de paixão, tenho prazer com ele, apesar de 12 anos de hormonização funciona numa boa, diminuiu a minha libido não é mais como era antes, era muito alta, eu tenho 50 anos, mas eu transo três vezes por semana, para 50 anos e jubilada há 12 é bom demais. Depende muito do tipo de hormonização, eu estou fazendo uma pesquisa, mas não operei, não quero operar, não quero mudar meu nome, o que me joga dentro da característica médica de travesti, transexual. Eu não sou transexual. Conheço muitas transexuais e não é só externo, é interno, há uma diferença. Quando são trasnsexuais, se entendem como do sexo oposto. "Eu sou mulher, eu sou mulher, meu corpo é que está errado, tira esse negócio daqui". Travesti não tem isso. Travesti sou eu. Eu sou mulher, eu me identifico com o feminino, tudo que é feminino me atrai, gosto de mulheres, inclusive, no meu caso, mas minha identidade é travesti clássica, se você pegar qualquer travesti que é travesti mesmo se conversar comigo vai bater tudo. Há muitas brigas no mundo LGBT por causa disso e eu ponho panos quentes. Gente, aceite o outro. Ele não é igual. Assim como a transexual tem o direito de se sentir mulher, fazer cirurgia, esquecer o passado, esperar o príncipe encantado, lavar a roupa dele, é direito dela. Assim como a travesti fala "não, eu gosto de comer meus clientes na rua". Direito dela! Assim como eu, quando eu assumi e contei que gostava de mulher vieram para cima de mim. "Você é travesti! Como é que você pode gostar de boceta"? Eu sinto muito, eu sou eu, eu não saí de uma caixinha para entrar na tua! Eu sou assim. Tem um monte de gente como eu. Ser humano não tem regras.

Tua filha mora com você ou com a mãe dela?

Comigo. Até os 15 anos eu obrigava ela a ficar com a mãe, era guarda compartilhada desde que ela nasceu; com 15 anos ela resolveu morar comigo, vai visitar a mãe, vai jantar, mas mora comigo há cinco anos. Ela traz namorados aqui, amigos, faz churrasco, todo mundo me adora, as amigas dela pedem dicas de maquiagem, de roupa, é muito saudável. Minha mãe, também, é doente, mas a gente sai para jantar. Agora recentemente eu fiz um jantar aqui em casa, vieram meus irmãos, minha madrasta, que foi a segunda mulher do meu pai. Minha namorada, já estou namorando há quase um ano também frequenta aqui. Três, quatro dias por semana. Vou à casa dela. Minha sogra me adora. Mas nem tudo são flores. Eu resolvi assumir o risco. Eu posso tomar um tiro na cara a qualquer momento. Posso morrer a qualquer minuto. Perdi amigos. Perdi a esposa que eu amava e que foi embora porque não gostava de mulher. Você fez tudo isso para pegar lésbica? Eu pegava dez vezes mais mulheres antes. Capa de Playboy umas dez. É difícil as pessoas entenderem essa mudança. Que não é uma mudança. Eu sempre fui. Eu fingia não ser. Eu parei de fingir. Eu sou essa aqui. Ponto. Adoro tirar fotos, adoro me olhar no espelho, me arrumar, cuidar do meu cabelo, da minha pele, faço ginástica. Eu frequento o Paulistano. Igreja. Eu não frequento porque não acredito mais. Mas se me chamarem para um casamento eu vou. Eu frequento qualquer lugar. Você que se dane. Eu estou sendo eu, se você se incomoda com a minha presença você tem um problema.

No Paulistano nunca teve problema?

Uma vez eu estava entrando, com a minha mãe inclusive, só que ela estava na frente e eu atrás, e eu estava muito grandona, com salto muito alto, chamando atenção eu vi um senhor falando ao telefone que me olhou assim de alto a baixo e ligou para falar com alguém, talvez da diretoria "olha tem uma travesti dentro do clube". Só que eu nasci dentro do clube. Eu tenho um título meu. Minha família inteira tem. Então, eles não têm o que fazer. Já tentaram comprar meu título, perguntaram se eu queria vender. Não. Foi a única vez, esse cara que me olhou estranho. Vou lá com minha mãe, minha filha, almoço, janto. Só não vou na piscina porque lá muita gente me conhece, desde a infância, então pode dar ensejo a algum comentário, alguma coisa com filhos de amigos meus, eu acho que é forçar um pouco a barra, por enquanto não fui ainda.

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