Carlos Latuff: “A polícia é brutal e corrupta”

Cartunista brasileiro conhecido internacionalmente por seus trabalhos com o movimento Zapatista e pela causa Palestina acredita que "agora mais do que nunca é preciso levantar a voz e as canetas contra o estado policial em que estamos mergulhando"; segundo ele, a desocupação do bairro de Pinheirinho, no interior paulista, "foi terrorismo de Estado"

Carlos Latuff: “A polícia é brutal e corrupta”
Carlos Latuff: “A polícia é brutal e corrupta”


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Por Eder Fonseca, do portal Panorama Mercantil

Apesar de ter iniciado sua carreira como ilustrador numa pequena agência de propaganda no centro do Rio de Janeiro, em 1989, o ativista político Carlos Latuff tornou-se cartunista publicando sua primeira charge num boletim do Sindicato dos Estivadores, em 1990, e permanece trabalhando para a imprensa sindical até os dias de hoje. Com o advento da Internet, Latuff deu início ao seu ativismo artístico o qual ele chama de "artivismo", produzindo desenhos copyleft para o Movimento Zapatista.

Após uma viagem aos territórios ocupados da Cisjordânia, em 1998, tornou-se um simpatizante da causa Palestina, destinando boa parte de seu trabalho a esse tema. Tem trabalhos espalhados por todo o mundo. A exemplo disso, a primeira publicação de uma charge brasileira no concurso de charges sobre o Holocausto, promovida pela Casa da Caricatura do Irã, em resposta às caricaturas de Maomé divulgadas na imprensa europeia, foi de sua autoria.

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O desenho retrata um palestino em lágrimas diante do muro erguido por Israel, usando um uniforme de prisioneiros dos campos de concentração nazistas: em vez da Estrela de David no peito, aparece o Crescente Vermelho. Durante o ano de 2011 vários protestos estouraram em todo o mundo árabe, sendo chamados de "Primavera Árabe", Latuff se torna no meio midiático através de seus trabalhos artísticos, um dos grandes expoentes internacionais do movimento fazendo quase que diariamente charges sobre episódios durante todo o evento.

SCAF (Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito), Líbia e OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) são por exemplo temas frequentes de seu trabalho, sendo divulgado pela mídia brasileira e diversos veículos internacionais. Seu trabalho sobre os acontecimentos se tornaram inclusive notícia em grandes meios de comunicação, tendo suas declarações expostas nos mesmos, como por exemplo quando disse "É um trabalho autoral, mas não se trata da minha opinião. É preciso que seja útil para os manifestantes, e que eles possam usar aquilo como uma ferramenta". E também de forma curta e direta dizendo "charge incomoda".

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Seu trabalho com temas sobre a "Primavera Árabe" tornou-se algo tão evidente e importante para os povos que viveram e que ainda vivem os acontecimentos que se tornou fácil encontrar os trabalhos de Latuff nas mãos de manifestantes pelas ruas de todas as nações árabes e de outros países que vivem tal efervescência. Seus desenhos são impressos e expostos em tamanho normal, e por vezes ampliados e copiados em cartazes. Nessa entrevista exclusiva ao portal Panorama Mercantil, ele faz um relato de sua trajetória e expõem a sua visão sobre temas espinhosos que ocorrem no Brasil e no mundo.

Panorama Mercantil - Latuff, entrando em seu site nos deparamos de cara com a frase do cineasta Gláuber Rocha: "A função do artista é violentar". Os artistas brasileiros, em especial os chargistas, têm violentado muito, pouco ou quase nada?

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Carlos Latuff - Parece que com o fim da ditadura civil-militar no Brasil em 1985, os cartunistas e chargistas adotaram um tom mais ameno, especialmente se tomarmos como exemplo aqueles que participaram do jornal 'O Pasquim'. Alegam que com a democracia já não é mais necessário o discurso que faziam contra o autoritarismo, como se esse tivesse acabado de fato com a redemocratização. As minhas passagens por delegacias nos anos 2000, por ter feito charges contra a violência policial, me dizem o contrário. Agora mais do que nunca é preciso levantar a voz e as canetas contra o estado policial em que estamos mergulhando.

Panorama - Como era a sua visão política antes de ter contato com o Movimento Zapatista?

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Latuff - Na minha juventude nunca militei, nunca me interessei por política, trabalhava para a imprensa sindical porque foi a única mídia que abriu as portas pra mim sem exigir o "quem indica". No entanto, o contato com os sindicalistas e com a esquerda produziu um acúmulo ideológico, somado a isso, o meu contato com o Movimento Zapatista fez de mim o que sou hoje, um "artivista".

Panorama - Você disse que a mídia se alimenta dos processos violentos em países em conflito como "Drácula". Isso se dá apenas pelo lado pró-Israel, ou os pró-Palestina atuam da mesma forma?

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Latuff - Não me lembro de ter feito essa comparação com Drácula, mas a questão é que catástrofes produzem altos índices de audiência, sejam guerras, operações policiais em favelas ou incêndios em casas noturnas.

Panorama - O quão as informações sobre o conflito Israel X Palestina chegam distorcidas para nós aqui no Brasil, já que você esteve lá e viu de perto toda a situação?

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Latuff - Quando estive na Palestina em novembro de 1998, a internet era diferente. Hoje com as redes sociais a comunicação foi potencializada. É possível ter contato com a realidade palestina diretamente com os palestinos. Existem muito mais fontes para se consultar, sem ter de passar necessariamente pelo "mainstream media". Quando visitei os territórios ainda não havia a Segunda Intifada (conjunto de eventos que marcou a revolta civil dos palestinos contra a política administrativa e a ocupação israelense na região da Palestina a partir de setembro de 2000, enquanto a Primeira Intifada ocorreu em 1987.), nem o muro do apartheid e nem a divisão da Palestina entre Cisjordânia e Gaza. Se na época a situação já não era fácil, agora ficou ainda pior.

Panorama - Os seus trabalhos foram muito utilizados na "Primavera Árabe". Acredita que por serem charges, o poder da imagem foi muito mais forte se por exemplo fossem textos com o mesmo conteúdo?

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Latuff - Sendo a imagem uma linguagem universal que pode ser compreendida por povos de idiomas e culturas diferentes, seu alcance é muito maior. Se um texto requer tradução, uma charge sem palavras transmite uma mensagem mais fácil e rápida. E quando um manifestante resolve imprimir a charge e levá-la para as ruas, isso significa que além de ter compreendido a mensagem, ele agregou o desenho para sua vida e sua luta. A charge virou seu alto-falante.

Panorama - Como você vê a inversão de papéis de governos como do Bahrein, quando dizem que o seu trabalho não é neutro, sendo que os próprios talvez são os que menos sabem o que quer dizer a palavra neutralidade?

Latuff - Não existe neutralidade em lugar nenhum. Até mesmo um cadáver tem lados! Quando morre um palestino vítima de um dos tantos ataques de Israel, seu corpo no caixão é levado em cortejo pelas ruas, é um ato político. Assim também quando o estudante Edson Luiz foi morto pela Ditadura em 1968 seu corpo foi levado para a Assembléia Legislativa do Rio. Ou seja, nem mortos somos neutros. Existe os que assumem lados e outros que os mascaram.

Panorama - As pessoas que te chamam de antissemita sabem o que é ser um antissemita ou simplesmente repetem o discurso de terceiros?

Latuff - A maioria repete sem qualquer reflexão. Compram o discurso de que críticas contra o Estado de Israel, contra seus políticos ou militares, é um ataque a todo povo judeu. Essa estratégia tem sido aplicada ad nauseam (sob de argumento de repetição) pelos defensores de Israel como forma de blindar o Estado de qualquer crítica. Isso sem falar que semitas são os árabes também.

Panorama - A primeira coisa quando se fala do conflito entre israelenses e palestinos é que a motivação é religiosa. Você diz que a questão é apenas política. Quem está querendo mudar o foco então desviando a questão para a Bíblia?

Latuff - O discurso religioso serve como cortina de fumaça. Os defensores do Estado de Israel seguem a linha Chacrinha: "Eu vim para confundir e não pra explicar". Tentam confundir a opinião pública com questões religiosas e raciais para encobrir o que de fato se resume a questão palestina: o neocolonialismo.

Panorama - Alguns comentários na web dizem que você é um grande crítico dos meios de comunicação, mas mesmo assim quando é convidado para ir na Globo News, que pertence ao maior grupo de comunicação do Brasil, não pensa duas vezes. Como enxerga essa afirmação dos seus críticos?

Latuff - Antes eu costumava não dar entrevistas para veículos de grande circulação. Hoje entendo que, se querem ouvir o que tenho a dizer, eu digo. O importante é não mudar o discurso por estar diante das câmeras da Globo. Tenho adotado também a estratégia de gravar toda entrevista por telefone, para o caso de minhas palavras serem manipuladas ou postas fora de contexto.

Panorama - Uma charge sua que nos chamou bastante atenção e ao nosso ver é bastante forte foi aquela sobre Pinheirinho, quando um policial Militar, uma advogada, o governador paulista Geraldo Alckmin e um investidor brindam com sangue a retirada das pessoas daquele lugar que, na sua visão, trarão grandes dividendos financeiros aos mesmos. Nos fale mais sobre essa charge.

Latuff - Creio que a charge fala por si, a celebração da barbárie. As vidas de toda uma comunidade jogada na sarjeta para atender interesses de especuladores. Um crime inominável. Eu visitei o Pinheirinho dias antes do despejo. Me revolta lembrar que os sorrisos daquelas crianças foi apagado pela Tropa de Choque. O que aconteceu no Pinheirinho foi terrorismo de Estado.

Panorama - Você é um grande crítico da Polícia no Brasil dizendo que ela é feita apenas para repressão. Então lhe perguntamos: a sociedade precisa da polícia?

Latuff - Precisa de segurança, não necessariamente de polícia, ainda mais dessa polícia brutal e corrupta que temos. Mas afinal, o Estado também é brutal e corrupto, como esperar que a polícia seja diferente?

Panorama - Alguns estudiosos dizem que parte da classe média brasileira é que sustenta as atrocidades contra os menos favorecidos, uma visão bem parecida com a sua. Então de certo modo, podemos dizer que vivemos uma Guerra Civil não declarada no país?

Latuff - Não há Guerra Civil aqui. Não existem forças antagônicas se digladiando pelo poder. O tráfico, por exemplo, não é uma força estrangeira buscando a derrubada do regime e a implantação de outro. Tráfico, polícia e Estado são tentáculos de uma mesma criatura monstruosa. O que existe é terrorismo de Estado, é controle social.

Panorama - Em algum momento, você já sentiu medo por causa das reações contrárias ao seu trabalho?

Latuff - Sim, mas é que nem dor de cabeça. Dá e passa.

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