“Redução de desigualdades é uma questão civilizatória”, diz economista

Uma das formuladoras das propostas de Guilherme Boulos (PSOL), Laura Carvalho avalia as desigualdades históricas do Brasil e o “milagrinho econômico” entre 2006 e 2010, que ela considera equívoco de Dilma por ter sido uma “Agenda Fiesp”; "O que eu aponto é a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento, renda, desigualdades regionais, acesso à saúde, à educação pública”, diz ela

Laura Carvalho
Laura Carvalho (Foto: Voney Malta)


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Luís Eduardo Gomes/Sul 21 - Um passo para frente, um para o lado e um para trás. Essa é a dança da economia brasileira que a economista Laura Carvalho descreve no livro “Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico”, lançado em maio e que há três semanas está na lista dos mais vendidos do País, com mais de 10 mil exemplares comercializados. Doutora em economia pela New School for Social Research, de Nova YorK (EUA), professora da Universidade de São Paulo (USP), colunista da Folha de S. Paulo e integrante do grupo de trabalho formulou uma proposta de plano de governo na área de economia para o pré-candidato à presidência Guilherme Boulos (PSOL), Laura, 34 anos, esteve em Porto Alegre na última terça-feira (12) para lançar o seu primeiro livro. Entre uma visita à amiga também presidenciável Manuela D’Ávila e o evento na Faculdade de Economia da UFRGS, conversou com o Sul21 no diretório acadêmico da instituição.

Na entrevista, que foi concluída dois dias depois por telefone, Laura diz que prefere não se apresentar como a “economista” de Boulos, como seu nome tem aparecido na imprensa desde que passou a contribuir com o pré-candidato, porque está apenas participando da construção de uma proposta que ainda precisa ser aprovada pelo PSOL em assembleias para integrar o programa econômico oficial. Também por isso, diz não se ver no papel de oferecer um “respaldo” à candidatura de Boulos, que é visto pelo establishment como um “extremista”, quando não como “um perigo”, pela sua atuação como coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

“Eu acho que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma reforma tributária progressiva, por exemplo, são aquelas que não acham extremistas posições de simplesmente deixar numa sociedade como a brasileira o mercado agir livremente, acham que isso é uma posição equilibrada, quando, na verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do capitalismo financeiro mundial, isso é o debate feito hoje”, diz.

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A economista também avalia os motivos que levaram o Brasil a vivenciar o que chama de um “milagrinho econômico” entre 2006 e 2010, porque foi um equívoco do governo Dilma Rousseff adotar em seu primeiro mandato a “Agenda Fiesp” — calcada em benefícios fiscais para as grandes empresas –, como caminho que o Brasil deveria seguir para sair da longa crise econômica em que se encontra.

“O que eu aponto no livro é a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento, desigualdade de renda, desigualdades regionais, carências de acesso à saúde, acesso à educação pública. Essas carências históricas, num país do tamanho do nosso, também se apresentam como uma oportunidade para um programa econômico que vá funcionar, que é aquele que enxerga essas carências como o próprio eixo de investimentos públicos, de crescimento econômico”.

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Confira a seguir a íntegra da entrevista.

Sul21 – Qual é o teu envolvimento com a campanha do Guilherme Boulos?

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Laura Carvalho: Na verdade, o que eu fiz foi uma consultoria nessa fase inicial de sugestões e elaboração de uma proposta de programa na área de economia. A metodologia que foi estabelecida é que isso não define como será de fato o programa. A gente, num grupo de trabalho de economia, fez reuniões com uma série de economistas e representantes do partido, a maioria acadêmicos. A gente se organizou por temas, fizemos as reuniões para cada tema, chamamos especialistas em determinados temas. No final, compilamos um documento num formato bastante enxuto, mas um documento que tem um diagnóstico e um conjunto de propostas e entregamos esse documento, que vai ser apresentada em plenárias — que vão acontecer também para saúde, educação, são 17 grupos de trabalho. O nosso, a gente vai apresentar no dia 9 de julho, em São Paulo, e daí a etapa que segue, o que será feito desse documento, já é um debate que será do partido, não está claro para mim exatamente. É muito provável que o programa e aquilo que o candidato no final vai defender não seja exatamente aquilo que o nosso GT propôs. Então, a minha participação se encerra agora.

Sul21 – Sim, mas tu tem sido identificada como a “economista” do Boulos…

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Laura Carvalho: Eu não tenho me identificado como a economista do Boulos, as pessoas que estão me identificando.

Sul21 – Hoje em dia todos os pré-candidatos têm o “seu economista”, a Marina Silva tem o Gianetti, o Bolsonaro tem o Paulo Guedes…

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Laura Carvalho: Sim, é verdade, porque eu justamente aceitei coordenador esse grupo que está fazendo essas propostas. Mas eu não sei muito bem o que é o “economista do fulano”, porque mesmo nesses casos que você deu como exemplo, na prática, tem candidato que tem vários economistas. Aquilo que o candidato diz não é exatamente o que o economista falou. Então, eu tenho evitado me colocar nessa posição, porque eu acho que o candidato tem ideias próprias, o programa econômico que será o final vai contar com todo um debate interno ao partido. O que eu digo é aquilo que eu penso, portanto não falo por ninguém a não ser pelas minhas próprias ideias. E acho que esse é o caso de vários economistas que estão sendo atribuídos a candidatos e, na prática, só estão aceitando ajudar.

Sul21 – Mas tu acreditas que essa tua participação no programa econômico ajuda a ter um respaldo à candidatura? Porque a gente sabe que o Boulos é visto por muita gente como um extremista, pelo establishment, especialmente. Tu, por ser uma economista conhecida, professora da USP, ter todo uma trajetória, apesar de jovem, dá um respaldo de que ele não está propondo nenhuma “revolução”?

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Laura: Carvalho: Eu acho que a sociedade, infelizmente, tem essa visão do que é extremista muito distorcida, porque as mesmas pessoas que acham que é extremista propor uma reforma tributária progressiva, por exemplo — as coisas que o Guilherme está falando por aí, que tem muito a ver com justiça social –, na prática, são aquelas que não acham extremistas posições de simplesmente deixar, numa sociedade como a brasileira, o mercado agir livremente, acham que isso é uma posição equilibrada, quando, na verdade, nenhum país do mundo, nem no centro do capitalismo financeiro mundial, isso é o debate feito hoje. Aí tem um problema que independe de quem é o economista, se tem economista ou não tem, o candidato tem feito propostas que são radicais no bom sentido, de promover a transformação social num país como o Brasil, e as pessoas que acham que isso é, de alguma maneira, extremista querem preservar no Brasil uma estrutura de desigualdade que, ao meu ver, nos aproxima da barbárie. Isso independe do programa e de quem é o economista, não acho que vou conseguir resolver esse problema ao apresentar propostas concretas, porque a visão que eu tenho já é uma visão de transformação profunda do sistema econômico, sempre, nas posições que defendi publicamente.

Sul21 – É possível construir uma política econômica para o Brasil que não seja essa que temos hoje, que é da visão hegemônica do mercado, simbolizada no Henrique Meirelles?

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Laura Carvalho: Eu acho que é. Do ponto de vista econômico, é muito viável. O que eu aponto no livro é a compreensão de que temos desigualdades históricas, carências históricas, que vão desde a estrutura básica, saneamento, desigualdade de renda, desigualdades regionais, carências de acesso à saúde, acesso à educação pública. Essas carências históricas, num país do tamanho do nosso, também se apresentam como uma oportunidade para um programa econômico que vá funcionar, que é aquele que enxerga essas carências como o próprio eixo de investimentos públicos, de crescimento econômico. Claro que isso passa por uma reforma profunda do sistema tributário, que também pode gerar arrecadação para que esses investimentos ocorram. Eu acho que, quando a gente olha para qual é a situação, a sociedade sabe muito bem o que ela precisa, quais são as demandas mais urgentes e concretas. Um sistema de transporte urbano, moradia, saneamento básico, educação, saúde. Se você mapeia isso e coloca dinheiro nessas coisas, o poder que isso tem de não só gerar emprego, renda, arrecadação pro estado, como também gerar inclusive o desenvolvimento de setores produtivos, de tecnologias nacionais, é enorme. O problema é que a política econômica tem sido dominada por interesses particulares de grupos de alto poder econômico, não só no setor financeiro, mas também no setor industrial, vamos dizer, que acabam moldando a política para interesses que não são os do conjunto da sociedade.

Sul21 – Pois é, quando a gente fala de política econômica, muito se fala do ponto de vista financeiro e se deixa de lado essa questão dos investimentos. Não se faz esse diálogo de que investir em saneamento básico é economia, de que investir em obras é economia. Por que isso acontece?

Laura Carvalho: Então, há uma tentativa recorrente de associar aquilo que está ocorrendo com o mercado financeiro, se a bolsa está caindo ou subindo, àquilo que está acontecendo com a economia real. Tenta-se vender muitas vezes a ideia de que se a Bovespa subiu, a economia está bem. Se a Bovespa caiu, a economia está mal. E, na verdade, a relação entre essas coisas não é tão estreita assim. A gente vê em muitos momentos em que a bolsa sobe… Isso acontece, inclusive, em 2008, nos Estados Unidos. A bolsa se recupera muito rapidamente e a economia real, as taxas de desemprego continuam elevadíssimas durante muito tempo. A recuperação da economia real é muito mais lenta, os movimentos são mais lentos, e sempre há uma tentativa daquelas pessoas que estão mais envolvidas com o setor financeiro de tentar trazer a ideia de que setor financeiro é algo que necessariamente, vamos dizer, está atrelado à própria dinâmica que interessa para as pessoas.

Sul21 – Sim, que o que seria bom para o mercado seria bom para a população.

Laura Carvalho: Não é assim que acontece. A gente vê que não é assim, muito pelo contrário. Acho que faz parte de uma proposta de qualquer programa, vamos dizer, progressista-econômico, o País ficar menos refém desses movimentos. Agora, nós estamos sofrendo mais um choque externo bastante grande, não só nós, vários outros países emergentes. E, sempre que alguma coisa acontece lá fora, a gente vê rapidamente contaminando os mercados financeiros, a gente vê o dólar que valoriza muito rápido, isso gera impacto na inflação, os juros começam a subir. O problema é que não só o mercado não traz necessariamente benefícios para o conjunto da economia, como ele também, às vezes, prejudica a economia real por ser demasiado volátil e pelo tamanho da especulação financeira que está envolvida. Então, [é preciso] regular bem esses mercados, regular esses fluxos de capitais que entram e saem do País num curtíssimo prazo, em busca de retornos muito rápidos, que não são investidores que estão construindo uma empresa aqui, ou algo permanente e de longo prazo, são investidores que entram e saem no mesmo dia. Se você não reduzir a volatilidade desses fluxos, regulando e taxando esses fluxos na entrada e na saída, você vai ter sempre esse grau de vulnerabilidade que, não interessa, você pode ter o melhor dos programas, você pode ter o melhor dos objetivos, mas vai continuar sujeito e só vai conseguir implementar quando o cenário externo ajudar.

Sul21 – Mas é a realista a implementação de políticas que libertem o Brasil de ser refém desse sistema? Que tipo de medidas poderiam ser tomadas?

Laura Carvalho: Olha, o próprio FMI tem discutido medidas nesse sentido. Então, tem vários países do mundo fazendo isso. Inclusive, o Brasil implementou durante o governo Dilma, por exemplo, medidas de taxação na entrada. IOF sobre determinados conjuntos de operações financeiras, que ajudou na época a frear o movimento de entrada maciça de capitais por aqui, o que estava sendo chamado pelo Guido Mantega na época de “guerra cambial”. Só que não se taxou na saída. Se fez esse controle de forma assimétrica. Então, existe uma série de propostas de economistas que trabalham muito com esse assunto que são implementadas em outros países para tornar esse fluxos menos voláteis. O Brasil tem uma das moedas mais voláteis do mundo, porque está sujeita a um nível de especulação muito maior, muitas vezes até coordenado. O CADE descobriu que tinha cartéis envolvidos nessas especulações.

Sul21 – Tem como explicar de uma forma simples, para pessoas totalmente leigas, qual é o impacto da especulação financeira para a economia real?

Laura Carvalho: Um deles é isso que estamos vivendo agora. Estamos com uma economia ainda numa crise muito grave, vemos que os empregos não foram recuperados, estamos na mais lenta da história das recuperações de crises brasileiras, e ainda assim o Brasil teve que interromper a queda na taxa de juros básica, que vinha caindo, porque a inflação, dado o tamanho da crise, já estava abaixo do piso. Por quê? Porque os Estados Unidos, o banco central norte-americano, criou expectativas de elevação da taxa de juros lá. E só uma pequena expectativa de que a taxa de juros vai subir em outro país e mudanças no ciclo internacional rapidamente levam esses capitais de curto prazo para fora dos países, vamos dizer, periféricos, para o centro do capitalismo financeiro. Isso acontece de forma recorrente. A consequência é que, a taxa de juros então, independente do que está acontecendo aqui dentro, passa a ter que subir ou se manter para atrair capital externo para impedir que esse choque se propague, para impedir que isso acabe gerando uma inflação maior. Ao contrário do que se diz, o regime de metas brasileiro não está usando o instrumento taxa de juros para controlar a inflação, pelos mecanismos tradicionais de diminuir crédito para desaquecer a economia. Ele, na verdade, está tendo que responder sempre a esse tipo de movimento de capital daqui para fora, de lá para cá, e quando o sistema externo ajuda, a gente cumpre a meta da inflação. Quando o sistema externo não ajuda, a gente não cumpre. Ao contrário do que se diz num manual de economia, esse regime regime claramente não está funcionando da maneira como deveria.

Sul21 – Não está trazendo a estabilidade prometida?

Laura Carvalho: Não está trazendo essa estabilidade, por quê? Porque o grau de globalização financeira e o tamanho dessa financeirização que atinge diversas dimensões — estou dando uma delas, que é a especulação com a moeda e entrada e saída de capitais — está tirando a autonomia dos países em suas políticas econômicas, por isso que o FMI está discutindo atualmente controle de capitais.

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