Dallagnol tenta pôr Lava Jato acima do bem e do mal

Paulo Moreira Leite, diretor do 247 em Brasília, diz achar "errado e inaceitável" o discurso do procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, ontem, em uma igreja batista no Rio; de um púlpito, ele citou a Bíblia e disse acreditar que Deus colabora com a investigação; "Deus está respondendo", afirmou Dallagnol; "Cabe estranhar" que ele "tente apresentar a Lava Jato num patamar acima de toda crítica, sugerindo que se trata de uma obra divina", escreve PML; "Se isso é feito por puro marketing, é desprezível. Se apoia-se numa crença verdadeira, hipótese em que acredito, é mais grave ainda", diz o jornalista, que acha a "postura estranha -- eu diria incompatível até -- com a justiça dos homens"

O procurador da República Deltan Dallagnol, que integra o núcleo da Operação Lava Jato, participa de lançamento, no Rio, do projeto 10 Medidas Contra a Corrupção, do MPF (Vladimir Platonow/Repórter da Agência Brasil)
O procurador da República Deltan Dallagnol, que integra o núcleo da Operação Lava Jato, participa de lançamento, no Rio, do projeto 10 Medidas Contra a Corrupção, do MPF (Vladimir Platonow/Repórter da Agência Brasil) (Foto: Paulo Moreira Leite)


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Nunca tive religião. Só frequentei igrejas, templos e sinagogas por razões sociais, como assistir a casamentos, batizados e cerimônias fúnebres.

Essa situação me ajudou a ter um convívio enriquecedor com várias correntes religiosas, usufruindo da diversidade cultural de nossa época, a partir da compreensão de que a diferença não nos afasta, mas pode nos aproximar e fortalecer.

Estou convencido de que entender que somos iguais em nossas diferenças é um dos principais aprendizados do século XXI, numa  civilização onde a intolerância deixou marcas terríveis e profundas.

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Um de meus grandes amigos foi Jaime Wright, pastor protestante, grande militante de direitos humanos. Convivi com pessoas de profunda fé católica, boa parte em minha família. Mantive longos diálogos com o rabino Henri Sobel, orador capaz de rezas emocionantes. Conversei menos do que gostaria com Leonardo Boff. Já maduro, após uma viagem a Paris -- olha só -- tive um longo contato com lideranças umbandistas. Graças aos romances de Nagib Mahfouz e aos ensaios de Edward Said, compreendi a riqueza da cultura árabe e da religião muçulmana.

Escrevi os parágrafos acima porque me confesso chocado com as revelações de Bernardo Mello Franco, na Folha de S. Paulo de hoje.

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Ontem, Mello Franco esteve numa igreja batista na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, onde o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, falou para cerca de 200 pessoas.

A reportagem descreve: "Antes de falar, o procurador, que tem mestrado em Harvard, foi apresentado como 'servo' e 'irmão.' De terno e gravata, discursou do púlpito, citou a Bíblia e disse acreditar que Deus colabora com a Lava Jato."

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O jornalista cita um diálogo entre Dallagnol e os fiéis: 

"Dentro da minha cosmovisão cristã, eu acredito que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando para mudanças", afirmou.

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"Amém", respondeu a plateia.

"É isso aí. Deus está respondendo", devolveu Dallagnol.

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O procurador também disse: "se nós queremos mudar o sistema, precisamos orar, agir e apoiar medidas contra a corrupção", disse, antes de acrescentar: "O cristão é aquele que acredita em mudanças quando ninguém mais acredita. Nós acreditamos porque vivemos na expectativa do poder de Deus".

Em seguida, Dallagnol pediu apoio para um abaixo-assinado favorável a um projeto de lei do Ministério Público que pede mudanças na lei contra corrupção.

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Eu acho errado e inaceitável.

A Lava Jato é uma operação policial feita por homens de carne e osso, com qualidades e defeitos. Podemos listar uns e outros, mas este não é o caso, agora.

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Quando as mudanças nas leis contra corrupção, basta saber que, no Supremo, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello fazem críticas à alteração principal, aberração que tenta permitir que a Justiça aceite provas obtidas de modo ilícito. (Algo a ver com as escutas da Lava Jato, terrestres e ilegais? Quem sabe).

Cabe estranhar que seu responsável, chefe da força-tarefa, condição que lhe dá uma posição muito especial no Ministério Público, e uma força interna muito grande frente ao PGR Rodrigo Janot, tente apresentar  a Lava Jato num patamar acima de toda crítica, sugerindo que se trata de uma obra divina.  "Deus está respondendo." É isso aí?

Se isso é feito por puro marketing, é desprezível. Se apoia-se numa crença verdadeira, hipótese em que acredito, é mais grave ainda -- pois, através de convicções religiosas, exprime um absurdo viés antidemocrático, anterior à Revolução Francesa de 1789. Em qualquer caso, é uma postura estranha -- eu diria incompatível até -- com a justiça dos homens.

Se aprendemos que o bom Direito se revela através do conflito e do contraditório, como conciliar essa noção, moderna, herética, com noções divinas, quando sabemos que o sagrado é intocável?

Deltan Dallagnol é procurador da República, num país onde o artigo 127 da Constituição diz que o "Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."

Em seu artigo 5o, parágrafo VI, a Constituição diz ainda que é "inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”

No artigo 19, inciso I, se afirma que é "vedado a União, Estados e Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

São regras importantes. O  Estado não pode perseguir religiões. Também não pode ter preferências.

O Brasil define-se como um Estado laico desde 1889, na proclamação da República. Essa visão se contrapõe a de um Estado confessional, aquele onde uma religião específica tem proteção especial e direitos específicos.

O Brasil, há 126 anos, optou pelo caminho da tolerância e da igualdade entre as religiões, proibindo até que estabeleçam "relações de dependência ou aliança."

É esta "ordem jurídica" que cabe a um procurador desta República defender. E só. 

Alguma dúvida?  

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