Glória e tragédia de Danton, revolucionário e corrupto

Ao escrever sobre a Operação Lava Jato, da Polícia Federal, o jornalista Paulo Moreira Leite resgata a antiga história de Georges Jacques Danton e sua contribuição para a Revolução Francesa; "Danton é nome de avenidas, ruas, praças e vários locais públicos, inclusive cafés e restaurantes, como nenhum outro personagem da Revolução Francesa de 1789. Também enfrentou denúncias frequentes de corrupção", diz PML; leia a íntegra

Georges Jacques Danton
Georges Jacques Danton (Foto: Paulo Moreira Leite)


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No fim de semana, durante um seminário na OAB de São Paulo, o juiz Sérgio Moro justificou o uso da delação premiada com um comentário irônico:

-- É traição? É traição, mas é uma traição entre criminosos. Não se está traindo a Inconfidência Mineira, não se está traindo a Resistência Francesa.

Não há dúvida que o combate à corrupção e a punição de corruptos, com o respeito absoluto aos direitos e garantias individuais, é uma necessidade de toda sociedade moderna e interessa à preservação da democracia.

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Embora o juiz  tenha sido aplaudido após o discurso, que teve trechos reproduzidos pelos telejornais, não custa lembrar que estamos falando de coisas diferentes.

O esforço para justificar medidas condenadas por juristas respeitáveis -- como a delação premiada, as longas prisões preventivas -- pode ser tentador do ponto de vista da propaganda, mas não dá conta de toda realidade. Os direitos de uma pessoa não podem variar de acordo com a opinião das autoridades a respeito de seus compromissos políticos.

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Mesmo considerando o inferno em que o governo Dilma se encontra no segundo mandato -- em grande parte como efeito perverso da própria Lava Jato -- basta andar pela rua, consultar estatísticas e olhar a paisagem para se verificar que ocorreram transformações importantes no país ao longo dos últimos 12 anos -- para melhor, em especial para os mais pobres e excluídos.

Essa situação permite questionar a ideia, sempre conveniente para adversários políticos do governo, mas absurda do ponto de vista dos fatos, de que o país foi administrado por uma quadrilha, organização criada para cometer crimes de modo regular e permanente -- o que está longe de ser verdade.

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Também nos ajuda a lembrar que o debate sobre corrupção e política é assunto antigo e importante no mundo inteiro desde sempre.

Na França, que inventou os direitos humanos e a democracia moderna, o assunto envolve um personagem da estatura de Georges Jacques Danton (1759-1794). Com a imensa distância histórica e geográfica que separa personagens de lugares e tempos tão distantes, vale a pena dedicar um minuto de reflexão sobre o tema.

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Guilhotinado aos 34 anos num fim de tarde na atual praça da Concórdia, em Paris, Danton é nome de avenidas, ruas, praças e vários locais públicos, inclusive cafés e restaurantes, como nenhum outro personagem da Revolução Francesa de 1789.

O curioso é que Danton também enfrentou denúncias frequentes de corrupção, confirmadas mais tarde por abundante documentação histórica encontrada por estudiosos que tiveram acesso a documentos públicos.

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O que isso significa?

Gérard Walter, autor de biografias e estudos analíticos sobre o período, responsável inclusive pela publicação das atas do julgamento de Danton, escreveu:

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-- O que nós queremos de Danton? É saber quanto dinheiro ele ganhou em sua carreira política e como? Ou quais serviços ele prestou à revolução? Se compreendermos isso, não é o balanço de sua fortuna que é preciso definir, mas de seus atos. É isso que, no fim das contas, permite estabelecer que a atividade de Danton contribuiu efetivamente ao triunfo da revolução, pouco importa se ele recebeu da Corte ou de qualquer outro lugar, 30 000 libras, ou 300 000, ou mesmo 3 milhões. Mas, se ficar demonstrado que ele jamais tocou no dinheiro de ninguém, mas que não foi  salvador da França revolucionária na época em que os alemães e outros  estrangeiros avançavam sobre Paris, nós teremos o dever de proclamar Danton como "grande homem honesto" mas também de apagá-lo definitivamente da lista de grande revolucionário.

François Furet, hoje o mais celebrado historiador da Revolução, admite a venalidade de Danton com base em documentos. Para Furet, Danton foi um "político oportunista, intermitente, pouco delicado sobre os meios de atingir seus objetivos, ao mesmo tempo que um orador até genial na improvisação, e um verdadeiro temperamento político nas grandes ocasiões: a Pátria em perigo, o levante das massas, seu processo..."

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Danton não teve um papel destacado no início da Revolução, mas mostrou-se uma liderança insubstituível para organizar a resistência dos franceses na hora em que uma invasão de tropas estrangeiras colocou a França revolucionária em sua hora mais difícil. Foi ali que nasceu o herói.  Num tempo em que o principal instrumento de luta política eram as ideias e as cordas vocais, levantou uma nação com o grito de "audácia, audácia, sempre mais audácia," que lhe valeu ser definido como "a encarnação da revolução" por seu primeiro estudioso importante, Jules Michelet, ainda no século XIX.  

Acusado de levar uma existência de luxo e desperdício, impossível de pagar com os rendimentos de advogado, os papéis mostram que Danton pagou dívidas e construiu um escritório em Paris como beneficiário de uma rede de políticos e jornalistas comprados por Mirabeau a mando de Luís XVI. Ministro da Justiça do governo revolucionário, teve problemas para prestar contas e nunca deu explicações satisfatórias para outras denúncias, inclusive envolvendo um fabricante que fornecia armas para o Exército francês, que era seu amigo.   

Sempre que Danton subia à tribuna da Convenção, os adversários tentavam abafar suas palavras fazendo um coro: "E as contas? E as contas?"

Acusado de fazer "jogo duplo", de ser "corrupto" e "hipócrita", Danton foi condenado à morte num julgamento político, cujo resultado era possível adivinhar com antecedência.

No mesmo processo estavam incluídos espertalhões notórios, homens de negócio, um banqueiro austríaco e um financista espanhol -- o que ajudava a colocar o herói a ser eliminado de qualquer maneira no interior de uma "conspiração internacional".

Quando um dos presentes sugeriu que Danton pudesse se defender, Maximiliano Robespierre -- que parecia no máximo de seu prestígio -- tentou impedir. Alegou que era preciso garantir um tratamento igual para todos prisioneiros: "Não queremos privilégios. Não queremos ídolos."

O fato é que restaram poucos registros das declarações de Danton no tribunal. Num deles, ficou a negativa às acusações de corrupção. Ele disse: "Vendido, eu? Eu? Um homem de minha têmpera não se compra."

Na conjuntura política anterior ao julgamento, a revolução que derrubou o absolutismo já havia começado a transformar-se numa ditadura e, talvez pelo oportunismo assinalado por Furet, Danton assumiu uma postura de tolerância e conciliação.

Não participou da revolução para embolsar algum. Formulava, dirigia, disputava. Ele combateu a ideia de mandar a rainha Maria Antonieta à guilhotina, decisão que agradou a multidão de Paris mas ajudou a aprofundar os instintos belicosos da Áustria, um dos inimigos mais ferozes e decididos da França revolucionária. Depois de apoiar o Terror em sua fase inicial, quando nem sempre fazia jus ao nome, era quase brando em relação ao que viria depois, Danton tomou partido contra prisões sem julgamento. 

"Abram as prisões a 200 000 cidadãos chamados de suspeitos porque, conforme a Declaração dos Direitos do Homem, não há lugar para suspeitos", escreveu, num artigo dirigido ao governo revolucionário, Camille Demoullins, grande aliado político de Danton -- que foi condenado no mesmo processo, decapitado no mesmo cadafalso, na mesma tarde de abril. "Vocês querem exterminar todos os inimigos pela guilhotina. Nunca houve tão grande loucura. Creiam-me: a liberdade será consolidada e os inimigos vencidos se vocês fizerem um Comitê de Clemência." 

Em suas últimas palavras, já no cadafalso, Danton se dirigiu ao carrasco com um pedido insólito: pediu que não deixasse de mostrar sua cabeça à massa que estava aglomerada para assistir ao espetáculo de sua execução. "Ela é bonita de se ver", disse.  

No discurso em que pedia a execução de Danton, Robespierre definiu a decisão nos seguintes termos: "Nós veremos hoje se a Convenção irá destruir um suposto ídolo apodrecido há muito tempo ou se em sua queda ele vai arrastar a Convenção e o povo francês."

O rumo da história foi outro. Embora destruindo o "ídolo apodrecido há muito tempo", como disse Robespierre, a Convenção foi arrastada na mesma queda.

No momento em que a charrete que o conduzia para a guilhotina passou em frente à casa de Robespierre, Danton lançou um grito: "Você vai me seguir!"

Três meses e meio depois, Robespierre foi conduzido à guilhotina, 48 horas após de ter sido preso. Era conhecido como Incorruptível e nada surgiu na posteridade contra sua reputação.

O Termidor estava começando. Em meses, o clube dos Jacobinos, partido da revolução, foi fechado. Logo depois, através de um golpe de Estado, a alta burguesia e os banqueiros assumiam o controle do Estado, revogando conquistas populares e garantias democráticas. Em 1804, Napoleão Bonaparte era coroado imperador.

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