Haddad, a Constituinte e o futuro da democracia

"Dispensando toda aresta que possa aparecer num segundo turno que se anuncia violento e desleal, Haddad concentra suas propostas de mudança na defesa do Estado do Bem-Estar social e no esforço para derrubar a Emenda que controla gastos públicos por 20 anos," escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. 

Haddad, a Constituinte e o futuro da democracia
Haddad, a Constituinte e o futuro da democracia (Foto: Stuckert)


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Há várias razões para explicar a mudança de posição de Fernando Haddad sobre a Constituinte, anunciada numa entrevista ao Jornal Nacional, nesta segunda-feira.

No Plano de Governo da Coligação Povo Feliz de Novo, formado pelo PT, PC do B e Pros, anuncia-se o compromisso de construir "as condições de sustentação social para a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, livre, democrática, soberana e unicameral, eleita para este fim nos moldes da reforma política que preconizamos. Nosso governo participará logo após a posse da elaboração de um amplo roteiro de debates sobre os grandes temas nacionais e sobre o formato da Constituinte".

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Ao ser questionado pela apresentadora Renata Vasconcelos, Haddad deu uma resposta direta, própria de quem já esperava pela pergunta. "Nós revimos nosso posicionamento, "disse, com franqueza. "Vamos fazer as reformas devidas por emenda constitucional", acrescentou, deixando clara a prioridade para derrubar a emenda que congela gastos públicos até 2036, além das reformas tributária e bancária. 

Pela mudança no semblante da jornalista, ficou  claro que a pergunta fora uma espécie de teste. Ao colocar a questão de modo editorializado, com um evidente viés contrário a proposta, Renata Vasconcelos sugeria que a convocação de uma Assembléia Constituinte  poderia colocar a democracia brasileira em risco. Argumentou  que "a Constituição brasileira, a chamada Constituição cidadã, que é o que garante nossa democracia, e que acabou de completar apenas 30 anos, juristas dizem que a nossa constituição não permite a convocação de uma constituinte, não há previsão para isso".

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Do ponto de vista jurídico, o argumento não tem base real. Para Pedro Serrano, um dos mais respeitados constitucionalistas do país, "a Constituinte é chamada de poder originário exatamente porque não se submete ao poder anterior".

"É uma afirmação sem sentido,"explica o professor Marcelo Neves, da cadeira de Direito Constitucional da Universidade de Brasília. "Uma Constituinte  é fruto de um acordo político, quando uma sociedade chega a conclusão de que é preciso fazer um novo pacto. Ninguém pode prever quando isso pode ser necessário".

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Na verdade, a resposta de Haddad envolveu várias camadas geológicas da campanha presidencial de 2018. Basta recordar o debate da Record, quando foi questionado sobre a Constituinte por Ciro Gomes, para reconhecer que o candidato nunca esteve à vontade com o projeto. Tinha suas dúvidas e nunca deixou de manifestá-las, no partido. Além das críticas públicas de Ciro, o PC do B, principal partido aliado, aceitou a proposta a contragosto na formação da chapa com Manuela D'Ávila.

Há um outro fator, além da convicção pessoal, obviamente importante quando se trata de um candidato presidencial.

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Ao anunciar uma mudança "em nosso entendimento", Haddad tomou uma postura compreensível diante de um segundo turno que se anuncia violento e desleal, no qual a proposta seria distorcida e desfigurada, para servir de instrumento a ataques sob encomenda, num debate desigual. Dando sequencia a teoria dos dois extremos que foi construída no final do primeiro turno para dar vida a candidatura de Geraldo Alckcmin, a finalidade é seguir num jogo desonesto, apresentando Haddad como equivalente de esquerda ao autoritarismo assumido de Jair Bolsonaro. Tratando de modo igual os desiguais, o saldo é beneficiar o pior.    

Em 2018, o debate sobre a constituinte está longe de ser uma bandeira do Partido dos Trabalhadores, convém assinalar. Um manifesto assinado em abril de 2017, pelos juristas Modesto Carvalhosa, José Carlos Dias e Flavio Bierrenbach, diz assim: "impõe-se a mobilização da sociedade por uma Constituinte originária e independente".

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Para justificar o posicionamento, os três escrevem, que "os constantes escândalos comprovam a inviabilidade do vigente sistema político-constitucional. Ele representa um modelo obsoleto, oligarca, intervencionista, cartorial, corporativista e anti-isonômico, que concede supersalários, foros privilegiados e muitos outros benefícios a um pequeno grupo de agentes públicos e políticos, enquanto o resto da população não tem meios para superar a ineficiência do Estado e exercer seus direitos mais básicos".

Um estudo coordenado pelo professor Rogério Arantes, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, mostra que  em seus 30 anos de existência a Constituição passou por uma engorda acelerada, de 44%, contabiliza o professor. Um texto com 245 artigos originais hoje possui 315 artigos e 1825 dispositivos constitucionais.

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Na vida real, as pessoas que discutem o futuro da  Constituição de 1988 podem ser divididas em dois grupos. Existem aquelas que chegaram a conclusão de que o país necessita de uma nova Constituição e defendem a convocação de uma Assembléia Constituinte para escrevê-la.   

A outra parte -- e aqui atua a Constituinte da Globo -- é aquela que trabalha noite e dia para modificar a Constituição nos bastidores, sem correr o risco de chamar o eleitor para participar das discussão e tentar defender sua parte. Faz movimentos de quem pode tomar a sopa pelas bordas, pois tem a força política dominante  e não precisa empregar métodos democráticos -- como convocar eleições -- para avançar interesses e reivindicações.

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Uma versão tosca deste processo foi anunciada pelo general Hamilton Mourão em sua proposta de Constituinte de notáveis -- que Bolsonaro foi levado a desautorizar, ontem, na mesma edição do Jornal Nacional, numa edição montada para ilustrar a noção desonesta de que tanto Haddad como capitão-candidato são concorrentes igualmente descompromissados com a democracia.  

Num editorial recente, o jornal O Globo classificou as ideias em debate sobre a Constituinte como "delírios" em torno de uma "convocação ilegal". O jornal defende que, a partir de 2019, o Congresso realize uma "rodada estratégica de atualização da carta", a ser realizada pelos parlamentares recém-eleitos, quando o Congresso recebeu um novo reforço na bancada conservadora de 2014, aquela que, sob a liderança do cofre de Eduardo Cunha, derrubou Dilma sem crime de responsabilidade e permitiu a aprovação do mais ambicioso conjunto de reformas estruturais da história do capitalismo brasileiro.  

A prioridade dos constituintes da Globo segue "a reforma da Previdência," aquela que Temer foi incapaz de realizar pois, no limite, ameaçava sua sobrevivência fora das grades. Numa referência ao espírito desenvolvimentista que alimentou os debates da Constituinte de 1988, em contradição frontal com a dotrina do  Estado mínimo do guru Paulo Guedes, o jornal também defende a "lipoaspiração" de uma "visão retrógrada do capitalismo" que "permeia o texto". Analisando a configuração política do Congresso, no qual, simbolicamente, o partido de Bolsonaro passou dos 8 parlamentares para 52, tornando-se atrás do PT a segunda bancada da casa, o jornalista Merval Pereira, mais importante colunista político da publicação, define o espírito do plenário nos seguintes termos: "de forma clara e plebiscitária, a tese do golpe foi rechaçada. O povo chancelou o impeachment de Dilma e enterrou a narrativa do golpe".

A sobrevivência da Constituição de 1988 pode ser explicada, em parte, por mudanças de grande interesse importância que foram  operadas na surdina. Foi assim em 1995, por exemplo, quando se extingui o artigo 171 da Constituição, decisão particularmente importante para se definir o caráter do modelo econômico em vigor no país. O artigo permitia um tratamento diferenciado a empresas nacionais em comparação a empresas estrangeiras mas não conseguiu sobreviver por uma década.  Atendendo a uma reivindicação de expansão dos impérios econômicos de nossa época, habituados a cobrar de seus parceiros medidas que jamais aplicaram nem aplicarão dentro de casa, a abolição do 171 atendeu a um impulso do período  Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), dando um grande estímulo à desnacionalização da economia e à abertura do mercado brasileiro a investidores estrangeiros.

Foi pelo caminho preferencial das emendas constitucionais que o Congresso  recentemente impôs ao Brasil, entre outras coisas, a regra que estabelece um teto de gastos por 20 anos e que, se não for revogado antes disso, até 2036 irá reduzir investimentos públicos um ano depois do outro, num país onde o atraso em áreas essenciais atinge um padrão reconhecidamente vergonhoso.

Numa conjuntura em que o Judiciário assume uma postura de protagonismo sobre os demais poderes, com os quais deveria conviver num ambiente de autonomia e harmonia, o STF tem assumido o papel de rescrever a Constituição -- em vez de julgar sua aplicação, como é sua função original.  Estamos falando de medidas graves e fundamentais, muitas vezes consumadas através de decisões individuais.

Ao impedir, em três decisões sucessivas, que a Folha de São Paulo e o programa Voz Ativa, da Rede Minas, entrevistassem o presidente Lula, o ministro Luiz Fux  tomou uma uma decisão que contraria um capítulo essencial da  Constituição -- a denuncia da censura. O inciso IX do artigo 5 não poderia  mais claro: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Trata-se de um fato ainda mais constrangedor quando se recorda que em 2009, ao debater a lei de imprensa, o mesmo tribunal tratou do assunto para reafirmar a mesma linha de pensamento ao dizer que: "não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia".

Em artigo publicado no Estado de S. Paulo (5/10/2018), com um título que lembra a velha retórica maoísta dos anos 1960 ("Vida longa à Constituição de 1968!"), o presidente do STF Dias Toffoli, escreve que "devemos reafirmar o nosso comprometimento com a manutenção e longevidade desse pacto fundante". Toffoli também se refere à "essência imutável do texto constitucional" e afirma:  "O Supremo Tribunal Federal estará sempre a postos como o garante desse pacto".

 O problema é que, na mesma semana na qual a Constituição de "essência imutável" completou 30 anos, era fácil apontar uma imensa distância entre o que se escreve e o que se faz. Algumas mudanças, mesmo inteiramente prejudiciais à  maioria dos brasileiros, passaram pelo voto do Congresso, como acontece com a emenda dos gastos -- que derruba, para todos os efeitos práticos, o espírito do artigo 3o. da Constituição, que define o trabalho de "erradicar a pobreza e a marginalização" como dos objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil. Outras novidades podem ocorrer ao sabor de maiorias de ocasião no STF como acontece com o trânsito em julgado e o habeas corpus, cujo uso flexível parece variar de acordo com a personalidade do interessado -- ou do juiz.

Num país no qual o artigo 2o da Constituição define a separação entre Legislativo, Executivo e Judiciário como três  poderes, "independente e harmônicos entre si, o próprio Dias Toffoli introduziu, por conta própria, uma novidade fundamental, o quarto poder. Ele emprega o termo Poder Moderador, que não faz parte da Constituição brasileira, mas fez parte da legislação brasileira na Carta de 1824, quando o Brasil era governado pela dinastia Orleans e Bragança, derrubada em 1889, com a República. 

Naquela época -- há 194 anos -- o Poder Moderador foi arrancado por Pedro I, logo após a independência, com mão militar, para garantir que o Executivo, Legislativo e a Justiça se tornassem instituições submetidas às suas ordens, num movimento de caráter absolutista que definiu o Estado brasileiro ao longo das décadas seguintes,  contrariando ideias democráticas e liberais que germinavam no período. O  ponto preocupante é que Dias Toffoli fez a apologia do STF como Poder Moderador numa mesma palestra na qual assumiu uma nova perspectiva sobre um dos mais traumáticos momentos da história brasileira, dizendo que, em vez de golpe ou revolução, aceitava a tese de que a queda de João Goulart foi produto de um "movimento".

Nas multiplicas intervenções que ajudaram a enfraquecer a democracia brasileira, a cúpula das Forças Armadas também gostava de definir-se como "Poder Moderador" da República.

As urgências de uma campanha presidencial onde a democracia está em jogo permitiram a retirada de cena do debate sobre a Constituinte. O desmanche permanente da carta de 1988, por obra de quem tem recursos de sobra e contatos certos, mostra que este debate terá de ser assumido, cedo ou tarde, pois nenhum país consegue construir seu futuro sobre o silêncio do povo.  

 

 

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