Eunice Paiva deixou grande exemplo de resistência

"Num país que enfrenta um ambiente de ameaça a democracia, Eunice Paiva deixou um exemplo de vontade de luta e consciência política", escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Viúva de Rubens Paiva, empresário nacionalista e deputado assinado sob tortura em 1971, sua resistência mudou a história do regime militar e deu nova dimensão a luta por direitos humanos"

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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas pela Democracia - Num país que hoje encara um ambiente de ataque às liberdades democráticas, a história de Eunice Paiva (1929-2018) é um conforto e um exemplo. Viúva de Rubens Paiva, empresário nacionalista e deputado que denunciou o financiamento da CIA aos políticos alinhados na conspiração contra João Goulart no golpe de 64, Eunice Paiva mudou a própria biografia e ajudou a mudar a história da ditadura que governou o Brasil por 21 anos.

Ao se engajar no esforço para esclarecer as circunstâncias do assassinato do marido, morto sob tortura depois de ter sido levado de casa para prestar depoimento num quartel do Rio de Janeiro, em 1971, ela deixou uma lição rara de responsabilidade pessoal, consciência política e vontade de luta. Também contribuiu para que os brasileiros tivessem uma visão mais clara da importância de se defender os direitos humanos e denunciar o crime de tortura.

Incansável no esforço para conhecer o destino do marido, Eunice Paiva jamais aceitou as mentiras sob encomenda e desculpas esfarrapadas que marmanjos – fardados ou não, envergonhados ou cínicos – lhe ofereceram durante anos a fio. Só para recordar o tamanho da desfaçatez naquele ambiente de treva. Quando ficou claro que o marido de Eunice Paiva fora morto e que esse fato nunca seria admitido pelas autoridades responsáveis, os grandes jornais brasileiros divulgaram a lenda de que o ex-deputado havia sumido depois de ter sido sequestrado por militantes de uma organização terrorista quando era conduzido para interrogatório em outra repartição militar.

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Para poder atuar com mais eficiência, Eunice Paiva formou-se em Direito, condição que lhe abriu novas portas de atuação. Pela teimosia, obteve duas vitórias, que só parecem insignificantes para quem não tem noção da selvageria em que o país vivia naquele tempo.  Após uma luta de 25 anos, conseguiu receber um atestado de óbito e depois de 40 o Estado admitiu que Rubens Paiva foi morto sob sua guarda. Mas só em 2014, a partir da Comissão da Verdade, foi possível estabelecer um relato fidedigno sobre o assassinato. A partir de depoimentos de testemunhas, foi possível confirmar as antigas e fundadas suspeitas: o deputado foi morto sob tortura após dois dias de interrogatório violento. Em seguida, seu corpo foi ensacado, enterrado e desenterrado duas vezes, até que, dois anos depois, embarcado numa lancha, foi jogado em alto mar.

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Se, na democratização, o Brasil não teve uma articulação política capaz de localizar, julgar e condenar responsáveis pela tortura e pela violência contra presos políticos, como ocorreu em vários países vizinhos, é obrigatório reconhecer o papel de Eunice Paiva entre os mais lúcidos esforços para esclarecer crimes contra os direitos humanos e exigir reparações às vítimas e suas famílias. Com acesso natural aos salões que sempre tiveram influência nos destinos nacionais, nunca deixou de cobrar responsabilidades de quem preferia fingir que nada sabia sobre a memória do porão.

Vítima de Alzheimer, passou os últimos anos em luta contra a doença, numa vitalidade que levou o filho Marcelo Paiva a lhe prestar uma homenagem emocionante no livro Ainda Estou Aqui, obra que se inicia com a vida de seu pai – e se encerra com o heroísmo inegável que marcou a existência de sua mãe. Em minha opinião, o melhor livro de um escritor cuja obra acompanho desde Feliz Ano Velho. (E que Eunice Paiva seguia com a ternura de mãe, que incluía um espírito critico que impressionava quem era de fora e sempre provocou boas risadas do filho).

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Em 2014, quando o Congresso Nacional decidiu homenagear Rubens Paiva com um busto, ocorreu uma cena que o país nunca irá esquecer tão cedo. Enquanto familiares e admiradores se reuniam para ouvir discursos emocionados, como é natural nestas ocasiões, um parlamentar se aproximou aos gritos, chegando a dar uma cusparada no monumento: "teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”, descreve um dos presentes,

Era Jair Bolsonaro, o parlamentar que a partir de 1 de janeiro tomará posse na presidência da República -- em mais uma cena que só reforça o valor da luta incansável de Eunice Paiva.

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