A ousadia de Jessé Souza

Jessé reconstrói a história das ideias no Brasil ao identificar que esses argumentos são meros instrumentos de dominação das mentes e dos corações das pessoas, o que faz com que elas esqueçam de outros problemas tão graves e não resolvidos, como o ódio e a exclusão da ralé brasileira pela classe média e pelas elites dominantes

Jessé Souza 
Jessé Souza  (Foto: Diego Ricoy)


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Jessé Souza é talvez hoje um dos maiores intelectuais brasileiros em atividade. Professor titular da UFABC, o sociólogo conhece como poucos o funcionamento da dinâmica social do nosso país. Fazia tempos que não tínhamos uma produção acadêmica que questionasse contundentemente a historiografia tradicional e as ideias dominantes que a intelectualidade brasileira produziu sobre nossa identidade nacional. Jessé atualizou este cenário.

Autor de obras marcantes, como A Ralé Brasileira, A Tolice da Inteligência Brasileira e A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato, o professor Jessé se propôs a refutar as ideias tradicionais que governam nossa sociedade ao refletir criticamente, a partir de uma extensa bibliografia de base, sobre temas arraigados no imaginário sociocultural brasileiro e que perpetuam uma visão de senso comum sobre as nossas raízes (de onde viemos?), nossa identidade (quem somos?) e nossa projeção como nação (para onde vamos?). Afinal, caro leitor, nosso país tem problemas muito mais graves do que a corrupção e o jeitinho, além de não sermos a única nação do mundo onde esses fenômenos ocorrem. Acredite.

Jessé refuta, a partir de argumentos sólidos, as análises “pseudocientíficas” (de acordo com ele) de intelectuais consagrados, como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta. Para o sociólogo, esses pensadores acreditaram fazer crítica social ao construir análises que partiam do mito da brasilidade construído por Gilberto Freyre: o da democracia racial. No entanto, essas análises não são vistas como críticas para Jessé, tendo em vista que elas não questionam os pressupostos científicos do mito e apenas repetem banalidades oriundas do senso comum, recheadas de preconceitos, como “o homem cordial”, de Sérgio Buarque, o “patrimonialismo” de Faoro, e o “jeitinho brasileiro”, de DaMatta. Afinal, esses intelectuais não desconstruíram nosso mito de origem.

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Jessé reconstrói a história das ideias no Brasil ao identificar que esses argumentos são meros instrumentos de dominação das mentes e dos corações das pessoas, o que faz com que elas esqueçam de outros problemas tão graves e não resolvidos, como o ódio e a exclusão da ralé brasileira pela classe média e pelas elites dominantes. Para o professor, a escravidão é o nosso berço e é a sua permanência, em forma de uma ralé de novos escravos, que faz com que a desigualdade se perpetue. Uma ralé constituída a partir de um processo de modernização precário, retrógrado e conservador e que impediu a integração do ex-escravo à sociedade. O negro e o mestiço, quando libertados sem ajuda do Estado (que o preteriu em função do imigrante branco europeu, tutelado pelo governo) em sua (re)inserção social, ficaram fadados a uma condenação eterna, já que não partiam do mesmo ponto que os demais grupos na corrida por um espaço no mercado de trabalho. O descaso com a ralé gerou um ódio generalizado a essas pessoas, que passaram a ser vistas como infratoras da ordem quando reivindicavam seus direitos. Estigmatizou-se, aí, o negro como o inimigo interno a ser batido, criando, de forma covarde, “um tipo de política pública informal para higienizar as cidades” (sic). O negro passa a ser perseguido não mais pelo capitão do mato, mas pela polícia, e com aval da classe média e das elites.

Percebe-se nas leituras das obras de Jessé que nosso problema é muito maior que o da corrupção. Temos uma dívida enorme com a ralé brasileira e com nosso passado. Sofremos, como provocado pela historiadora e antropóloga Lília Schwarcz, de uma amnésia nacional, ao sermos dominados por grupos que querem apagar à força a página mais perversa de nossa história: a escravidão e seus desdobramentos. 

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Nossa elite é atrasada por promover um processo precário de modernização e criar um abismo social e uma exclusão tão grande que, quando líderes populares alcançam o poder e tentam minimizar e reduzir as desigualdades, são alvos de perseguições políticas e de processos jurídicos mascarados de legalistas. A justiça age de forma seletiva de modo a garantir a manutenção do status quo dessas mesmas elites dominantes, criminalizando os supostos algozes desse grupo: representantes populares e a população pobre, negra e mestiça. Essa mesma elite governa a cabeça e os corações dos brasileiros por deter o monopólio dos principais meios de comunicação, promovendo a circulação de ideias de seu interesse de forma a legitimar suas ações.

A mídia faz uso dos discursos dominantes produzidos por intelectuais brasileiros consagrados, como os já citados Sérgio Buarque, Faoro e DaMatta, e despeja cotidianamente sobre seu público notícias que corroboram com os interesses de nossa elite: o da corrupção, do patrimonialismo e do jeitinho. Isso causa um desconforto por parte dos brasileiros que, muitas vezes, sem entender os jogos de interesse envolvidos na trama, reproduzem o discurso da necessidade de acabar com a corrupção. Esse é um prato cheio para nossa elite, que justifica a venda de nossas empresas estatais ao mercado estrangeiro ao qual ela faz parte direta ou indiretamente. Demoniza-se assim o Estado, como “o reino de todos os vícios”, e transforma o mercado no “reino de todas as virtudes” e, por isso, merecedor de nossas riquezas. É assim que as ações da Petrobrás são vendidas a preço de banana ao mercado cambial. O preço dos combustíveis aumenta e culpa de tudo continua sendo do Estado e da corrupção, e não da elite do atraso que arquiteta todo esse jogo de interesse em benefício próprio.

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Jessé Souza foi muito além que qualquer outro intelectual brasileiro que se propôs a refletir sobre nossa identidade e sobre as ideias que nos governam. Talvez o momento histórico em que esteja inserido o favoreça na construção de suas análises. Certo é que ele não só merece como já faz parte do seleto grupo dos maiores intelectuais e intérpretes do Brasil. Talvez o único que se propôs a refutar o nosso mito de origem. E nunca é demais lembrar que, em momentos de crise, como o que vivemos, é sempre importante discutir os clássicos na tentativa de reformular as ideologias dominantes. É na crise de ideias, quando as tradicionais não mais se sustentam, que uma sociedade deve renovar suas forças para se reconstruir como pátria. E talvez as ideias de Jessé sejam o caminho para isso. 

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