Incidente em Apeú

Eu era o único sarará entre os 22 jogadores, quase todos com traços indígenas, no campo invadido pelos torcedores. Corri feito barata tonta para escapar de trampescos, pescoções, tapas e rasteiras, assim como meus com infelizes companheiros

Eu era o único sarará entre os 22 jogadores, quase todos com traços indígenas, no campo invadido pelos torcedores. Corri feito barata tonta para escapar de trampescos, pescoções, tapas e rasteiras, assim como meus com infelizes companheiros
Eu era o único sarará entre os 22 jogadores, quase todos com traços indígenas, no campo invadido pelos torcedores. Corri feito barata tonta para escapar de trampescos, pescoções, tapas e rasteiras, assim como meus com infelizes companheiros (Foto: Palmério Doria)


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Na primeira metade dos anos 1960, devezemquandamente o time juvenil do Clube do Remo deixava a segurança do estádio Evandro Almeida, o primeiro em concreto armado de Belém, com alambrado e túnel, e se aventurava em exibições contra adversários do interior paraense, onde vencer a agremiação da capital era questão de honra.

Em Apeú, a 55 km de Belém, a partida transcorreria em tarde de calor senegalesco, que no Senegal chamam de calor amazônico, num campo com alguns tufos de grama cercado por precária cerca. Os vips municipais estavam amontados numa arquibancada mambembe de madeira em torno do locutor oficial, que narraria o evento pelo alto-falante quase desabando do toldo de zinco.

Chegamos, os meninos do técnico Zuzu, atrasados num ônibus carcomido, já metidos no uniforme do Leão - camisa azul, calção e meião brancos, chuteiras fuleiras, não tanto quanto a dos adversários, que se vestiam de preto total - e fomos direto para o "gramado", onde o árbitro, completamente sem VAR e bandeirinhas, deu início à partida.

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O narrador, de voz possante e criteriosa, imitando os locutores da PRC-5, Rádio Clube de Belém, Pará, Brasil, "a voz que fala e canta para a planície", procurava manter a equidistância. Os nossos adversários tinham nome, endereço, CPF, Unesco, Bradesco. Nós éramos nomeados apenas pelo número às costas.

E assumiu um tom sinistro quando, aos 40 minutos do segundo tempo, o volante Chico, o único negro em campo, balançou o véu da noiva todo esburacado com um golaço. A partir daí, a torcida que se encostava na cerca foi se acercando atrás do gol por mim guarnecido, de onde lançava em minhas costas mimos como cascas de laranja e outros objetos mais sólidos.

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O pandemônio se instalou quando acertaram o sacco e o vanzetti de Chico, passados mais alguns minutos. Aí uma voz estridente, histérica mesmo, que não era exatamente a do locutor, assumiu o microfone com a senha do levante:

- Pega o louro.

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Eu era o único sarará entre os 22 jogadores, quase todos com traços indígenas, no campo invadido pelos torcedores. Corri feito barata tonta para escapar de trampescos, pescoções, tapas e rasteiras, assim como meus com infelizes companheiros. Enfim, algo como uma patada no crânio me acertou a nuca.

Como voltamos ao ônibus e à segurança do estádio Evandro Almeida é um milagre creditado a Nossa Senhora de Nazaré, o Lírio Mimoso.

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