O boçal, o mito e os Bolsonaros

O eleitor médio do Bolsonaro tem os meios, as capacidades, os acessos e as informações necessárias para formular e defender uma discussão política qualificada, mas não a fazem

O boçal, o mito e os Bolsonaros
O boçal, o mito e os Bolsonaros (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)


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Boçal significada tosco, ignorante, pobre de cultura, rude. Na origem, a palavra deriva do espanhol Bozal que remete àquele que ainda tem buço, penugem na boca, ou seja, ao jovem, imaturo, desajeitado, inexperiente, bisonho. (Sérgio Rodrigues – Revista Veja, 11/02/2017).

Todos os termos da definição cabem perfeitamente no perfil do candidato do PSL.

Em tese, Jair Messias Bolsonaro é um boçal.

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No entanto, provar a boçalidade de Bolsonaro não tem nenhum mérito em si, nem algum valor apreciável ou mesmo qualquer relevância analítica.

O que realmente dá valor a uma análise sobre o tema é o fato de alguém com esse perfil abocanhar um índice tão expressivo nas pesquisas de intenção de voto.

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Mais relevante ainda é observarmos que 60% dos eleitores de Bolsonaro são jovens, com menos de 35 anos de idade. Nenhum outro candidato tem tal nível de aceitação nessa faixa etária. (BBC Brasil. 16/11/2017)

Cresce nossa curiosidade quando vemos que 90% dos que declaram voto a Bolsonaro têm acesso à internet. Ou seja, não é um público desinformado. Também neste quesito, Bolsonaro é líder. Não há outro candidato com eleitores tão conectados (CAVALLARI, Márcia. Diretora do Ibope – idem).

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Segundo a pesquisa Datafolha de abril/2017, o eleitor médio de Bolsonaro é homem (68%), jovens (59%), sem identidade partidária (95%), com ensino superior (29%), morador da parte rica do país (48% da região sudeste), com alta renda familiar (25%).

O eleitor médio do Bolsonaro, dessa forma, tem os meios, as capacidades, os acessos e as informações necessárias para formular e defender uma discussão política qualificada, mas não a fazem. Por que?

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Uma resposta possível pode ser buscada na própria pesquisa do Datafolha que indica que 95% desses eleitores não têm identidade partidária. Ou seja, não veem na política organizada tradicional uma saída para os gravíssimos problemas do país. Mas, contraditoriamente, o seu candidato é um político tradicional, com vários mandatos consecutivos e uma atuação parlamentar pífia.

Por todas as características do eleitor médio do Bolsonaro, eles têm todas as condições de verem a verdade, mas não querem ver. Por que?

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Acho muito significativo esses eleitores cunharem o termo Bolsomito, unindo MITO ao nome de seu candidato.

Nomear o candidato de “mito” diz muito do perfil de seus apoiadores, pois a palavras nunca são vãs. Elas dizem muito do inconsciente daqueles que a formulam.

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A construção do mito é sempre uma busca de um tempo passado idealizado como bom. Um tempo mítico. Claude Lévi-Strauss diz que “é bem conhecido que todo mito é

uma procura do tempo perdido” (Lévi-Strauss, C. Antropologia estructural. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires. p. 185).

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Sigmund Freud também abordou o tema da construção do mito, tanto o mito individual do neurótico, a partir do narcisismo na psiquê infantil quanto o mito da civilização, em “Totem e tabu”, de 1913.

Conta Freud, em Totem e tabu, que em um tempo mítico, na primeira comunidade humana, um pai tirânico liderava a comunidade, escravizava seus filhos e tinha, por direito, todas as mulheres. Algum fato, não explicado por Freud, levou os filhos a questionarem a autoridade do pai e a injustiça, a qual enfim se deram conta. Os filhos se uniram, mataram o pai e o devoraram em um banquete ritual.

Um duplo sentimento surgiu desse parricídio. Primeiro, os filhos alegraram-se frente a liberdade que a morte do opressor representava. Segundo, sentiram a angústia que o sentimento de culpa trouxe.

Surge ainda o questionamento: se tiveram força para matar o tirano, teriam poder também para fazer qualquer coisa. Seriam, eles também, possíveis tiranos? Para evitar o renascimento da tirania, formularam as leis, que valeriam para todos e garantiriam a organização da sociedade.

Esse sentimento filial de culpa buscaria um apaziguamento com a transformação do pai em totem, na transformação do pai real em pai simbólico e a constituição do tabu contra o parricídio.

O nascimento da civilização (assim como da família patriarcal) seria, assim, segundo Freud, resultado de uma organização de leis garantidoras da ordem e, ao mesmo tempo, da criação de um pai simbólico, de um ordenador mítico, de um marco referencial dessa ordem civilizacional.

A lei e o mito fundaram a nossa civilização.

As sociedades, no entanto, não são elementos estáticos. Não são ordens eternas. São, ao contrário, organizações dinâmicas e sensíveis às mínimas alterações de seus equilíbrios.

Nas últimas duas ou três décadas, as sociedades sofreram alterações extremamente significativas.

Hoje, as formas de produção e de trabalho social são radicalmente diferentes do que eram, a informação tornou-se muito mais acessível e diversificada, as lutas feministas e de direito ao corpo trouxeram novos comportamentos, a sexualização da vida desmontou crenças e rompeu preconceitos. Todas as esferas da vida em sociedade sofreram transformações e, em especial, a família tradicional que não mais comporta as demandas da atualidade.

A família tradicional perdeu seu protagonismo.

O pai não é mais o principal mantenedor da estrutura familiar. A mãe não é mais “do lar”. O referencial de saber dos filhos migrou do pai para o Google. As novas visões pedagógicas falam da liberdade e autonomia dos filhos e não mais da repressão e do condicionamento comportamental das crianças.

Como consequência, a sociedade caiu naquele lugar de incertezas que caracterizam os períodos históricos de transição.

De um lado, a liberalização sexual, de outro, o crescimento no número de grávidas adolescentes.

De um lado, a facilidade para descontruir um casamento que não deu certo, de outro, o grande número de famílias desestruturadas.

De um lado, a maior facilidade para assumir a homossexualidade, a identidade de gênero e a identidade racial, de outro, o crescimento das manifestações homofóbicas, misóginas e racistas.

Ação e resistência. É assim que historicamente as sociedades caminham.

A velha lei e o antigo mito já não respondem a uma nova sociedade que valoriza o gozo e a individualidade sobre o tradicional recato e boas maneiras.

Quando Freud cria seu mito primordial, em Totem e tabu, ou quando explica a formação de nosso caráter a partir do Complexo de Édipo, ele nos fala de um pai fundamental. Aquela figura que reprime nossa primeira pulsão sexual e, assim, nos impulsiona para a busca do amor fora do círculo restrito da família e nos faz “ser social”. É um modelo baseado na figura de um pai soberano, idealizado, mítico. É o que Jacques Lacan chama de Nome do pai, que pela repressão do nosso gozo nos dá um lugar na comunidade.

A contemporaneidade traz um enfraquecimento do Nome do pai. É um pai fragilizado, humilhado, destituído de sua autoridade tradicional.

Frente ao que está posto, as sociedades contemporâneas colocam dois caminhos à nossa escolha:

1 - Construir uma nova realidade, sedimentada em paradigmas contemporâneos, ou seja, enfrentar a realidade com a certeza de que a história não volta atrás e que avançamos inexoravelmente para o futuro, ou

2 - Buscar o retorno a um passado idealizado como bom, quando o poder do pai (pai-poder) garantia a ordem, a disciplina e os costumes tradicionais. Politicamente, é a visão que leva a se apoiar em um modelo conservador e reacionário de sociedade.

Para os que buscam essa segunda escolha, o Nome do pai decaído é o seu totem, a contemporaneidade, seu tabu.

Eles buscam reconstruir o lugar do pai e buscam um pai que tome esse lugar. Em suas angústias, clamam por um pai-poder idealizado, mitológico, salvador, forte, violento, que os afastem dos perigos que os assombram nas noites de medo e terror.

Se alguma voz oferece essa ordem, o castigo, o martírio dos infames, a violência, a estratificação para pôr cada um em seu lugar, essa voz assume o posto vago do pai mitológico.

Não importa quem seja. Não importa o que diga ou o que pense. Ele não será um ser histórico, será um mito.

Os que o empoderam o querem pai-poder e dele, o seu nome, querem seu sobrenome, querem seu símbolo, seu codinome.

Ele não é Bolsonaro, é Bolsomito.

Bolsonaros são todos aqueles que o criaram e, como em Totem e tabu, o devoraram, o deglutiram em ritual e nele se transformaram.

Jair Messias Bolsonaro é um boçal, mas não importa.

Nenhum dos Bolsonaros se importa com Jair Messias, o que importa é o mito.

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