A dimensão do afeto na oposição democrática
Quero comentar aqui dois eventos ocorridos recentemente: o encontro na USP, logo após as eleições, que reuniu André Singer, Vladimir Safatle e Marilena Chauí; e um programa do Brasil 247, chamado "Boa Noite 247"
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Quero comentar aqui dois eventos ocorridos recentemente: o encontro na USP, logo após as eleições, que reuniu André Singer, Vladimir Safatle e Marilena Chauí; e um programa do Brasil 247, chamado "Boa Noite 247", ocorrido no dia 04.11.2018. Dois eventos de natureza diferente: o encontro da USP reuniu uma multidão de estudantes; e o Boa Noite 247 é um vídeo de dois jornalistas (Leonardo Attuch e Mauro Lopes) que conversam sobre os últimos acontecimentos políticos.
Comento esses dois eventos porque vejo neles sinais semelhantes apontando na direção do afeto - a dimensão do afeto na oposição democrática.
Antes de Andre Singer começar sua exposição, diante de uma multidão de estudantes, o professor Ruy Braga, que convocou e coordenou o debate, comenta que determinada aluna perdeu seus livros na sala 211. Imediatamente, apareceu uma pessoa na multidão informando que os livros estavam com ela.
Na verdade, o evento, denominado "Construindo a Resistência", tinha entre seus objetivos explicar o resultado das eleições e produzir uma espécie de autocrítica da esquerda. André Singer comenta que na última semana do segundo turno, a diferença entre os candidatos cairia de 18% pra 10%, com a metade da sociedade tendo votado contra Bolsonaro. Dos 57 milhões de eleitores de Bolsonaro, apenas um pequeno grupo poderia ser identificado como fascistas - um outro grupo teria votado contra a crise econômica de Temer (não seria impossível reconquistar esse grupo pra frente democrática) e quanto a um terceiro grupo identificado à regressão no campo moral, para Singer a estratégia seria isolá-lo, impedindo seu crescimento. Quanto ao projeto autoritário em curso, a invasão às 30 universidades antes das eleições provaria que esse projeto autoritário não é só declaração de campanha, assim como o convite aceito por Moro revelaria o que se escondeu por trás da operação Lava Jato. Ainda assim, a resolução do STF a favor da liberdade de expressão, segundo Singer, é uma prova de que nossas instituições ainda não estão tomadas pelo fascismo.
Para Safatle, Bolsonaro, que representa a parte torturadora da ditadura renascida (estaria mais para Fleury que para Geisel), é o responsável pela ressurreição de fantasmas da ditadura militar, que pareciam perdidos na história. E que o erro da esquerda foi pensar que poderia haver um pacto democrático e que nunca mais iríamos nos defrontar com forças arcaicas. Se o nosso atual desamparo vem muito desse erro, por outro lado, é o desamparo que promove a criação e o fortalecimento do imaginário. Safatle identifica no horizonte dois momentos: um primeiro de resistência/sobrevivência; e um segundo momento de efetiva luta por uma sociedade mais livre.
Marilena Chauí, a estrela da USP, brilhou como sempre. Relembrou duas experiências históricas: a de 64/78/75, quando o medo não era uma mera palavra, mas um tecido cotidiano; e a experiência do governo Lula, sob o signo da resistência, invenção e democracia no Brasil. E se política de estado de Bolsonaro poderá ser a repetição da história como tragédia, com sua nova versão de esquadrões da morte, cabe a nós, em contraponto, a resistência institucional operando como grupos institucionalizados de pensamento e ação. Portanto, longe do espontaneísmo, tão a gosto da juventude. As formas organizadas e institucionalizadas de pensamento e ação, seriam como uma espécie de pensamento coletivo, grupos coletivos, em que pessoas de fora possam entrar e possamos escutar, falar e aprender.
A autocrítica dos três parece estar embutida numa nova configuração que a esquerda deveria assumir: para Singer, a comunidade de base democrática, descendente direta das antigas comunidades eclesiais de base em sua prática com a periferia; para Safatle, formas diferentes de vida, já que a nossa escuta foi bloqueada, assim como a nossa linguagem e assim como a nossa imaginação - novas formas de vida a partir de afetos como a solidariedade, a coragem e a amizade que irão atuar contra a servidão voluntária (inclusive com uma nova linguagem que faça explodir nossos lugares - uma língua que todos falem); e por fim, para Marilena Chauí, nossa tarefa é pensar para conseguirmos ouvir e falar para o outro, fazendo com que o saber real da periferia possa saber a si próprio e agir conforme esse saber (não saber que sabe e agir como se não soubesse é o lado trágico, onde se localizariam os pentecostais).
A relação que eu faço, por um lado, entre esses três discursos, sutilmente diferentes entre si, mas guardando uma identidade profunda, e o programa "Boa Noite 247" por outro lado, é justamente a questão do afeto - a única possibilidade de atuarmos contra a servidão voluntária. Era domingo de noite, e os dois jornalistas, Leonardo Attuch e Mauro Lopes, já tinham discutido diante de seus ouvintes vários fatos políticos. E eu quietinho no meu quarto como se estivesse ouvindo um radinho de pilha, enquanto na vizinhança o programa Fantástico era ouvido em alto e bom som. Ao final, Mauro Lopes se despede assim: "vocês não estão me vendo, tá tendo um problema técnico, mas eu vejo todos vocês no meu coração, o coração que é a casa do 247, da comunidade 247, esse desejo de diálogo, desejo de uma vida em abundância para todos nós, nossos filhos, nossos maridos, nossas mulheres, nossos primos, nossos amigos..., gente de todos os quadrantes, vida em abundância para todos nós, combate pela democracia, paz e bem, gente".
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