Dívida civilizatória com o passado comprometeu o presente

O músico e compositor Rogério Skylab afirma que, ao deixar o fantasma da ditadura militar em estado de latência, o Brasil permitiu a volta da lógica da força; ele diz: "essa é pergunta-karma de um povo que vive a todo o momento o pânico da desagregação - o que explica os militares, Getúlio e Bolsonaro. Por que voltar com o PT se ele foi fraco, sofreu impeachment e seu maior líder está preso?"

Dívida civilizatória com o passado comprometeu o presente
Dívida civilizatória com o passado comprometeu o presente (Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil)


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De vez em quando ele passa por mim. Aparentemente mora no mesmo bairro que eu moro, Botafogo. Organizou os famosos cursos da Funarte, que se transformaram em livros. Frequentei alguns desses cursos inesquecíveis que reuniam os maiores intelectuais do país. Me lembro como se fosse ontem da palestra de Jacques Rancière. Porque os cursos da Funarte traziam também estrelas internacionais. Um desses cursos abordava "O Silêncio dos Intelectuais", tema do texto de hoje.

Queria colocar em cotejo duas entrevistas: a de Vladimir Safatle, na Carta Capital ("Direto da Redação") em 01.11.2018, e a de Gleisi Hoffmann em 06.11.2018 no programa "Entre Vistas" do Juca Kfouri. E estabelecer pontes, semelhanças, diferenças, até pra colocar em questão o referido silêncio dos intelectuais.

Vladimir confessa logo no início o erro de sua previsão. Achava que a campanha de Bolsonaro era feita pra perder, assim como a extrema direita francesa de Marine Le Pen: representando radicalização, mas sem substância para vencer. Não previu uma campanha de silêncio e disparos de WhatSaap (mais de 50 milhões de disparos por dia), o que, de fato, foi decisivo para o resultado das eleições.

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Mas o discurso de Vladimir tem um ponto, que, diga-se de passagem, não terá a mesma atenção de Gleisi: a ditadura militar. Para Vladimir, muito em consonância com o depoimento de Amelinha Teles, presa e torturada durante o período ditatorial, a nossa transição democrática foi uma “catástrofe”. Não houve um trabalho de memória que elaborasse nosso passado e os fantasmas retornaram. Basta verificarmos a rearticulação de setores, antes dispersos, em torno de Bolsonaro (esses mesmos setores que estavam envolvidos com o golpe militar de 64): forças armadas, agronegócio, a igreja conservadora, a imprensa e o sistema financeiro. Em relação ao poder judiciário, ou uma parte dele, representado na figura de Sérgio Moro, que ganha uma pasta poderosa no próximo governo e responsável direto pela prisão de Lula, Vladimir lembra que esse poder judiciário foi uma espécie de sócio da ditadura militar: nos três primeiros anos de ditadura foram mais de trinta mil processos, dos quais, os casos mais urgentes, eram resolvidos com morte. Não teve a mesma proporção da Argentina, cujo número de desaparecidos transformou a ditadura de lá numa ditadura de assassinato. Muito embora nossos quinhentos desaparecidos, nossa ditadura foi dos processos jurídicos.

A Nova República cometeria o grave erro de naturalizar os atores da ditadura militar, basta pensarmos em Antônio Carlos Magalhães em pleno governo FHC e numa outra figura ilustre e bigoduda. Afastar o generalato, obrigar as forças armadas a fazer o mea-culpa, suspender a lei de anistia e prender os torturadores, segundo Vladimir, era o mínimo que se esperava. Os próprios pactos internacionais, que o Brasil assinou, impediam que um governo ditatorial pudesse ser auto-anistiado. Uma lei de anistia estranhíssima que libera os funcionários de estado que cometeram assassinato, ocultação de cadáver, estupro, tortura, terrorismo de estado, mas que, em relação aos combatentes da luta armada, não bastassem os desaparecidos, os que cometeram crimes de sangue não são anistiados em 79, sendo libertados por comutação de pena apenas em 81 e 82.

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Vladimir lembra também que na constituição de 88, os capítulos de segurança nacional são os mesmo da constituição de 66, ou seja, representa o mesmo ponto de vista jurídico nacional. Não seria de se estranhar, portanto, que se tortura mais hoje que no próprio período da ditadura militar. Os que faziam a prática da tortura nas polícias militares continuaram em seus postos após a democratização justamente porque não houve a devida depuração. Daí que no Brasil, ao contrário da Alemanha, o passado não passa.

Tanto em 2013, quanto em 2016 e 2018, Vladimir não poupa críticas em relação ao PT e à esquerda (aqui, me parece, vai estar o principal ponto de diferenciação em relação à Gleisi Hoffmann, o que nos leva a pensar numa diferenciação entre filosofia e política, ou, entre o pensamento e a prática, tendo, em vista, ambas as falas.

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Segundo Vladimir, a esquerda, e ele inclui aqui todos os seus atores, não somente o PT, não esteve à altura de 2013, a revolução traída. Não soube se reorganizar, são soube se recompor e não soube se livrar de sua hegemonia. E lembra países como França e Inglaterra, que diante de uma radicalização de direita, efetuaram uma radicalização de mesmo grau à esquerda. Segundo Vladimir, o partido trabalhista inglês, hoje em dia, é mais radical que o PSOL.

Em 2016, para Vladimir, a "insuportável" hegemonia petista (os adjetivos são mais importante do que imaginamos) foi incapaz de ver que, com o processo de criminalização, o PT deveria ter saído de cena, exatamente como aconteceu com o partido republicano italiano (aqui, Vladimir, suponho, esteja fazendo uma alusão a participação do PRI com a Democracia Cristã em vários governos, propiciando uma certa estabilidade política).

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Já em 2018, tanto os partidos de esquerda e centro esquerda, quanto os sindicatos, não estiveram a altura do que estava em jogo nas eleições no Brasil, incapazes de uma frente ampla, cabendo à mobilização espontânea, na última semana das eleições, por parte de pessoas não ligadas a partidos, nem a sindicatos, nem a associações tradicionais, o dado mais surpreendente. E Vladimir estabelece a lógica da força e não da razão, nem da ética, para compreender o resultado das eleições brasileiras - não apenas desta última, mas como uma marca nacional: quem vai ter força pra me proteger? Essa é pergunta-karma de um povo que vive a todo o momento o pânico da desagregação - o que explica os militares, Getúlio e Bolsonaro. Por que voltar com o PT se ele foi fraco, sofreu impeachment e seu maior líder está preso? Ao invés do retorno ao elemento constituinte da nossa história, representado pelos 30 anos de democracia, opta-se por uma representação da força, ainda que esse processo histórico nos leve para uma dimensão ainda não experimentada e, portanto, de alto risco.

Meu próximo texto vai abordar a entrevista de Gleisi Hoffmann, com a mesma escuta. E vamos então poder estabelecer as diferenças e semelhanças entre ambos os discursos, o que é uma forma de ver as relações muito particulares entre intelectuais e políticos. 

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