O horror à contradição

As eleições livres não seriam, portanto, o único aspecto de uma sociedade democrática. Se assim fosse, novos direitos não seriam criados e nem seria sublinhada a atividade democrática enquanto contrapoder social, que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes

O horror à contradição
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Quando me deparei com o texto de Marilena Chauí, "Comunicação e Democracia", publicado na Revista de Comunicação da FAPCOM - volume 1, nº 2 - 2º semestre 2017, pude constatar que estava diante de uma opinião pública, no seu sentido mais rigoroso, enquanto expressão, no espaço público, de uma reflexão sobre questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo, ou mesmo de uma maioria. Opinião pública que eu também não deixei de expressar, em tantos anos de redes sociais, a respeito do nosso jornalismo musical. Sobre esse novo contexto de rede, no entanto, se requer mãos leves, suavidade analítica pra entender que narcisismo e opinião pública podem estar lado a lado. Sobre o novo contexto de redes, não se poderá dispensar a contribuição valiosa do senso comum, sob o risco de perdermos de vista a singularidade do concreto em favor dos tipos ideais e suas relações de poder.

No texto claro e rigoroso de Marilena Chauí, sem muito frufru pós-modernista, e sempre atento à diferença entre a concepção liberal de democracia e o seu sentido social, a liberdade não deveria estar limitada à livre-iniciativa, esta entendida como ausência de obstáculos à competição econômica e política - compreender a liberdade dessa forma seria dar a ela uma definição meramente negativa: "ausência de obstáculos". Se todos são iguais perante a lei, o são, sobretudo, porque são seus autores. Todos têm o direito de expor suas opiniões e vê-las aceitas ou recusadas em público. É esse princípio de isegoria que dá à liberdade uma definição positiva: capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação, inclusive criarem novos direitos enquanto novos sujeitos políticos.

A consequência, dessa concepção social, é a democracia aberta a mudanças no sentido de uma sociedade verdadeiramente histórica, alterando-se pela própria práxis. Com isso, os conflitos deixam de tomar a forma momentânea de oposição ou competição política (o vencedor seria garantido pela lei, enquanto a ordem conteria os conflitos sociais) e passam a ter uma forma permanente - uma sociedade democrática buscaria mediações institucionais para que o conflito, enquanto legítimo e necessário, possa se exprimir. Ao se valorizar o aspecto permanente do conflito, evidencia-se uma diferença fundamental entre Poder e governo: não é o governo que tem o poder - este está sempre vazio e o seu detentor é a sociedade que ao eleger o governante, afirma-se soberana para escolher o ocupante - nesse sentido, eleger o governante é exercer o poder e dar temporariamente a alguém aquilo que só ela possui.

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As eleições livres não seriam, portanto, o único aspecto de uma sociedade democrática. Se assim fosse, novos direitos não seriam criados e nem seria sublinhada a atividade democrática enquanto contrapoder social, que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

Esse preâmbulo serve pra entrarmos no tema dos meios de comunicação, numa sociedade reconhecidamente autoritária como a nossa, cuja herança colonial escravista acabou por fazer espalhar a estrutura hierárquica familiar pro resto da sociedade. Cabe pensarmos aqui o Estado, que, além de patrimonialista e cartorial, funciona com uma lógica clientelista (a troca de favores entre quem detém o poder e quem vota) e com uma lógica burocrática (forma de poder com regulamentos fixos, rotina e uma hierarquia com linhas de autoridade e responsabilidade bem demarcadas – aqui, o segredo é fundamental e vai na direção contrária ao direito à informação).

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Numa sociedade hierárquica como a nossa, o neoliberalismo cai como uma luva. Porque é um sistema que, do ponto de vista econômico, transforma os investimentos públicos destinado aos direitos sociais, em serviços – isto é, destina fundos públicos aos investimentos privados do capital. E do ponto de vista político, submete a política ao marketing, transformando a discussão sobre leis, projetos e programas de governo em produto, com o qual o eleitor, enquanto consumidor, poderá se identificar ou não (é fazer da figura do político e da figura do cidadão, pessoas privadas, o que não deixa de ser outra forma de privatização do espaço público. Marilena Chauí destaca também outra característica do neoliberalismo: a transformação da política numa questão técnica – o cidadão reduziria sua participação política ao momento da eleição, já que, enquanto cidadão comum, ele não é especialista, ele não tem competência técnica (essa seria uma outra forma de encolhimento do espaço público, em que o sentido de ocultação passa a tomar a forma geral: com a questão técnica, oculta-se a luta de classes, oculta-se a ação dos movimentos sociais, oculta-se o papel dos conflitos, oculta-se a divergência entre forças políticas, e ocultam-se os obstáculos à concretização de programas e projetos políticos pelo poder da estrutura jurídica e burocrática do Estado). Transformar a política numa questão técnica é bloquear um direito democrático fundamental, que é o direito à informação, sem a qual, a cidadania ( a participação social, política e cultural) é impossível.

O exercício do poder pelos meios de comunicação, segundo Marilena Chauí, se dá fora de um contexto democrático.

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Pela perspectiva econômica, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural; eles são parte constitutiva da acumulação e da reprodução capitalista porque são empresas privadas operando no mercado, muitas delas, inclusive, sem vínculo histórico com a comunicação, vindo a adquirir jornais, revistas, serviços de telefonia..., tamanha a perspectiva de lucro (a questão do papel não é relevante nesse artigo de Marilena Chauí, reforçando o que foi colocado no início deste meu trabalho: a camisa de força dos tipos ideais - o enxugamento da Abril Cultural, por exemplo, é um sintoma dessa crise que já se faz presente há um bom tempo). Chama atenção que muitos desses meios de comunicação são companhias globais, atuando através de fusões e constituindo oligopólios que beiram a monopólios. Por fim, a forma oligárquica do poder de Estado, isto é, sendo exercido por um pequeno grupo, levaria à forma privatizada de concessões públicas, concedidas a parlamentares, por exemplo, que, a princípio, deveriam fiscalizar as referidas concessões, e acabam se tornando concessionários privados.

Quanto ao poder político, isto é, o poder ideológico dos meios de comunicação, a mídia o exerceria sob a forma da ideologia da competência (novamente a questão técnica), isto é, sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, cuja eficácia está fundada na crença à racionalidade técnico-científica. Nesse sentido, o formador de opinião, que tem o poder de fala, explica, interpreta, devassa, julga, para aquele que é desprovido de saber e, portanto, é incompetente (tenho minhas dúvidas se em tempos de redes sociais essas diferenças assimétricas são tão marcantes quanto na imprensa televisiva e escrita; de qualquer maneira, não há como desconhecer a manipulação e a intimidação social e cultural do formador de opinião, condenando sumariamente, e tendo como instrumento psicológico a suspeição, tal como na época do terror durante a revolução francesa, sendo que a presunção de inocência e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, são direitos constitucionais democráticos).

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Forma não é conteúdo no discurso do senso comum, ao contrário da experiência poética. Daí porque uma notícia há de ser localizada no espaço e no tempo. E as referências concretas do espaço e do tempo são as condições materiais, econômicas, sociais, políticas e históricas dos acontecimentos. A desinformação é justamente a conseqüência dos meios de comunicação: é quando a tela ou o aparelho de rádio tornam-se o único espaço do real, já que não temos recursos para avaliar a realidade e a veracidade das imagens ou palavras transmitidas. Diante de um jornal televisivo, por exemplo, nos encontramos frente a acontecimentos sem causas e sem efeitos futuros – existem apenas enquanto objeto de transmissão, acontecimentos enquanto espetáculo. Terminado o noticiário, esquecemos tudo. Também as distâncias, proximidades, as diferenças geográficas e territoriais dos acontecimentos passam a ser ignoradas. Há, portanto, nos meios de comunicação, um apagamento das referências espaciais e temporais. E isso, segundo Marilena Chauí, será um procedimento deliberado de controle social, político e cultural. Se esse processo está presente na imprensa escrita, no rádio e na TV, na internet ou no sistema multimídia será potencializado, com a encenação e a mescla de conteúdos indiscerníveis, já que fornecidos por um único meio. A cultural virtual faz das imagens a própria experiência.

A questão da comunicação se tornou tão importante, que, hoje, a força e o poder capitalista estão ligados ao monopólio dos conhecimentos e da informação. Ao contrário de revoluções tecnológicas anteriores, em que havia uma diferença clara entre pesquisa científica teórica e ciência aplicada, esta última compreendida como o emprego da pesquisa por tecnologias vinculadas à produção econômica, hoje em dia não existe mais essa diferença: a ciência tornou-se força produtiva (não é mais um suporte pro capital, mas agente de acumulação e reprodução). Os pensadores se tornaram agentes econômicos diretos. Hoje em dia, a questão do poder está ligada a quem detém o controle da massa de informações, quem detém a concentração e a centralização da informação. A definição do ambiente regulador é o que mais tem provocado litígios entre empresas, partidos políticos e legisladores.

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Entre os efeitos sociais e culturais da multimídia, além da centralidade da casa (aumentou-se o tempo passado no interior das residências, já que compras, pagamentos e várias modalidades de trabalho podem ser executadas sem sair de casa) e de um maior individualismo (o mundo audiovisual apartado das outras pessoas através dos fones de ouvido, as refeições solitárias em razão dos micro-ondas e as conversas solitárias no isolamento do quarto através de celulares e micros – cada membro da família organizando seu próprio espaço e seu próprio tempo), chama a atenção também o crescimento da estratificação entre os usuários: o acesso à multimídia, com capacidade de ação seletiva e interativa, vai depender das condições econômicas (o tempo livre é um exemplo) e das condições educacionais e culturais (se requer um conhecimento geral básico para buscar informações e formas de interação entre elas). Não é de se estranhar, portanto, a quantidade de usuários que apenas recebem pacotes enviados pelo emissor. A história recente da política brasileira documenta esse fato.

Ao falar de internet e democracia no último tópico do artigo, Marilena Chauí configura o texto para uma perigosa divisão entre ser e aparência: a internet aparece como uma comunicação tecnológica e universal entre as consciências, mas é uma nebulosa informacional fechada e secreta; aparece como um ambiente universal de informação e comunicação globalmente uniforme, capaz de trazer proveitos cognitivos, sociais, artísticos, políticos, porém, é uma estratégia econômica, mantendo invisível a infraestrutura em que nasce, como ocorre com todas as esferas da sociedade capitalista; parece permitir aos grupos e indivíduos se apropriarem de seu ambiente econômico, social, cultural e político, porém, tudo se passa aqui e agora com uma nova subjetividade e sociabilidade desligadas do espaço e do tempo. Essa contradição incomoda, perturba uma espécie de retórica da esquerda: a internet assegura a produção e a circulação livre da informação, promovendo acontecimentos políticos numa espécie de afirmação da cidadania; no entanto, os usuários não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que emprega, não detendo qualquer poder sobre ela (o monopólio das informações permanece na mão das empresas de comunicação de massa). Sob o aspecto criativo e anárquico das redes sociais, paira a tenebrosa sombra do controle e da vigilância sobre seus usuários em escala planetária. A contradição é tão insuportável pra esse tipo de retórica, que a singularidade é transformada em aparência.

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