Sabrina Bittencourt: o silêncio que faz ecoar narrativas silenciadas

Margarida Maria, Maria da Penha, Marielle, Sabrina são epicentros das várias formas de violência perpetradas contra milhares de mulheres, silenciosas ou silenciadas, pelo Estado e pela sociedade. No entanto, suas trajetórias e lutas são, em si mesmas, narrativas disputadas com tais sujeitos que tentam suprimi-las. Assim, hoje e sempre, vale lembrar que não é o lugar de vítima que querem ou merecem. São, sim, heroínas que simbolizam a resistência e o que deve ser. Porque não, não é.



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No último domingo, a violência de gênero e a institucionalização da indiferença a esta nos levou mais um grande ser humano, mas nos deu a oportunidade de relembrar sua luta.  

Sabrina Bittencourt trabalhava atualmente junto ao Grupo Vítimas Unidas, e cocriara a plataforma de Combate ao Abuso no Meio Espiritual-COAME, voltada para a proteção de vítimas de violência sexual cometida no âmbito de instituições e práticas religiosas – um espaço tão pouco tutelado, em que o abuso de poder se reproduz diariamente. Seu trabalho notabilizou-se mais recentemente porque, em parceria com o coletivo Somos Muitas, ela desempenhou um papel fundamental em recolher depoimentos e encorajar vítimas do médium João Teixeira de Faria, autodenominado “João de Deus”, que auxiliou a subsidiar a atuação do Ministério Público na sua persecução penal. Anteriormente, ela também atuara na visibilização dos abusos cometidos pelo guru Sri Prem Baba, e sofria ameaças constantes de grupos e pessoas distintas.

No último mês de janeiro, Sabrina apresentou perante o órgão notícias-crime relativas ao tráfico internacional de crianças e escravização feminina, e estava em processo de criação da Rede de Proteção para Brasileiros do Exílio, segundo seu filho mais velho, Gabriel Baum, quando faleceu no Líbano. Ele também afirmou que sua mãe o vinha preparando, afirmando ser a próxima depois de Marielle Franco, ao passo que organizava vídeos instrutivos e cartas em provas. Ela confessou a seu filho que não queria ser morta por quadrilhas ou pelo câncer linfático de que se tratava.   

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Em dezembro, a ativista anunciou que reunia documentos para a denúncia de ao menos treze outros líderes espirituais, a partir de uma postagem que realizou no Facebook para encorajar relatos de mulheres que foram vítimas.

Há muitos anos, e devido também à sua própria trajetória de violências físicas repetidas e abusos por figuras de autoridades religiosas, Sabrina Bittencourt foi e é um importante símbolo de enfrentamento, reunindo vítimas que se sentiam isoladas ou temerosas diante do evidente medo que é intrínseco a tais estruturas de poder.  

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Sabrina não vivia no Brasil pelo medo constante de que fosse assassinada diante das informações que possuía. O receio – mais do que fundado – da ativista fundava-se em um Estado que não somente falha no seu dever de proteger, mas também no de punir violações flagrantes dos mais diversos direitos da mulher. Essa realidade tem diversos capítulos ao longo da história das instituições jurídicas e normativas brasileiras, que parecem depender de responsabilização internacional para se moverem de encontro à conivência ou à indiferença.  

Apenas 35 anos após o assassinato da defensora dos direitos das trabalhadoras rurais de Alagoa Grande (PB), Margarida Maria Alves, a Comissão de Interamericana de Direitos Humanos da OEA (CIDH), em dezembro de 2018, reconheceu que o Estado brasileiro falhou em perseguir e punir o crime.  

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Margarida Alves, líder do  Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande por doze anos, foi executada durante a ditadura militar (ou “movimento de 1964”, como consagrou o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, durante um seminário sobre os 30 anos da Constituição). Seu assassinato foi movido por suas diversas ações trabalhistas e pela atuação no âmbito da educação no campo e da agricultura familiar, enfrentando os interesses de um grupo composto de agentes do Estado e de elites locais, conhecido como “Grupo da Várzea”.

Diante da inércia do Poder Judiciário e da máquina administrativa, que deixou impune o crime ao longo dos anos, o caso foi levado à CIDH, que reconheceu a responsabilidade internacional do Brasil, e emitiu recomendações que incluem o dever de investigação e de reparação de familiares. Vale lembrar que, caso o Estado brasileiro não cumpra as diretivas do órgão, pode ser levado à Corte Interamericana de Direitos Humano, a cuja jurisdição o país também está submetido.

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O mesmo aconteceu com Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica em maio de 1983 por um tiro de seu então esposo, e apenas em 2012 teve algum tipo de reconhecimento institucional das violações cometidas, com a imputação da responsabilidade do Estado brasileiro pela CIDH/OEA no primeiro caso de violência doméstica levado a cabo pelo órgão. Ao cumprir as diretivas da Comissão, o Brasil, entre outras coisas, editou durante o governo Lula a Lei n. 11.340/06, a qual se popularizou por seu nome, que coíbe a violência doméstica e em cuja interpretação o aporte específico de gênero vem sendo adotado, apesar das muitas controvérsias.

As relações de poder têm dinâmicas próprias quando a questão de gênero é observada; em face das mulheres – estejam elas no campo ou na cidade, sejam negras, brancas, amarelas, indígenas, queer, trans ou lésbicas – elas adquirem uma dimensão física, a qual corporifica desequilíbrios que se amalgamaram no patriarcado.

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As instituições, dentro do Estado ou para além deste, tais como a família e a igreja, reproduzem as discrepâncias de poder, seja pela invisibilização feminina em suas demandas e sua exclusão dos processos de tomada de decisão, seja pelo cruel silenciamento de suas narrativas. Essas narrativas incluem violências, perpetuadas por pais, companheiros, professores, chefes, médicos e líderes religiosos, e criam um ciclo de opressão que, ao mesmo tempo, impede as mulheres de romperem tais violências e os mecanismos que a mantêm, e estigmatizam suas experiências.

Quando a própria omissão estatal não o faz diretamente, reforçando órgãos judiciais e administrativos que fazem justiça seletiva e que, em suas composições, preservam as lacunas de representação entre homens e mulheres, políticas públicas sem recorte de gênero e valores misóginos cumprem sua função reprodutiva.    

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Assim, um país que permite que uma mulher em média seja assassinada a cada duas horas e 164 sejam estupradas por dia (em números certamente muito subestimados) elege um presidente da República que, enquanto parlamentar incitou o estupro e, durante a campanha presidencial, naturalizou a diferença salarial entre homens e mulheres sob o argumento de que caberia “ao patrão” decidir.

Sabrina Bittencourt antecipou a morte violenta da qual vinha sendo ameaçada por sua necessária e ainda marginalizada luta pela emancipação feminina, pelo direito de termos nossos corpos livres e nossa cidadania plena.   

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É injusto dizer, porém, que Sabrina Bittencourt cometeu suicídio. Sua vida foi cruelmente suprimida por violências contínuas, das mais diversas ordens, como acontece com as vítimas da dor e do medo a quem ela visava a proteger. Em suas últimas palavras, ela lembrou Marielle Franco e registrou que se juntaria a ela, ressaltando que os processos opressivos vêm sendo ininterruptamente contundentes ao longo da história, mas que não venceram enquanto essas lutas sejam continuadas.

Margarida Maria, Maria da Penha, Marielle, Sabrina são epicentros das várias formas de violência perpetradas contra milhares de mulheres, silenciosas ou silenciadas, pelo Estado e pela sociedade. No entanto, suas trajetórias e lutas são, em si mesmas, narrativas disputadas com tais sujeitos que tentam suprimi-las. Assim, hoje e sempre, vale lembrar que não é o lugar de vítima que querem ou merecem. São, sim, heroínas que simbolizam a resistência e o que deve ser. Porque não, não é.    

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