Decoro

O vendedor de chapéus comenta o tuíter do capitão no carnaval. O de sempre. Todos opinando ao mesmo tempo. Não tinha o que fazer. O dedo lá não precisava. Carnaval é uma pouca vergonha. Quis dizer que todos os que o insultaram pelo país a fora eram veados. E não eram? O que é chuva dourada? Tem que acabar com isso daí. Talquei?

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Não tinha tipo. Tinha pressa. Tentava seduzir quem aparecesse, desavisado, naquele canto da praia. A velho ou a jovem, falando pelos cotovelos, deitava sua prosa. Negro, pardo, polaco, japonês, dava igual. Ou melhor, tentava, com sofreguidão, sem sucesso.

Na calçada, outros marreteiros. Cada um com seu comércio. Uns trinta , empreendedores, desde a reforma trabalhista. Antes, só ela e dois ou três entortadores de araminho, tecendo miçangas. Agora, uma muvuca. O tio das toalhas e cangas, a sirigaita das batas indianas, a velha com os carregadores de celular, e, entre outros, sempre ali perto dela, a gorda desbocada das camisetas. Muito comércio para pouco clientes.

Não faltava quem ali viesse salgar o couro. Aumentou recentemente o número de banhistas, sem grana como eles, nos últimos tempos. As vendas, paradas. Todos reclamavam. Emprego, só lixo.

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Praia cheia, renovava as expectativas de, enfim, perder a virgindade. Fizera a bariátrica, era a metade do que tinha sido, depois de dois anos na fila do SUS. Espremia suas carnes dentro de apertadas bermudas de laicra, avantajada de quadris. Ancuda, magra de janela, orgulhava-se, certa de que não tardaria a encontrar quem a fizesse mulher. E nada.

A sirigaita, feia de doer, às vezes saía acompanhada, no início da noite, para se dar por ali mesmo perto dos coqueiros, de pé ou de quatro, escandalosa, ossuda. A cara pegou fogo e apagaram com tamanco, remoía-se, maldosa, enquanto a outra gemia como uma cadela. Não conseguia entender. Era muito mais bonita. E intacta, selada. Antes, uma rolha de poço, ninguém se atreveria. Agora, já não, magra corpulenta. Questão de tempo, resignava-se.

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Aos gringos explicava o que vendia. Dônatis. Os preferidos eram os de goiabada. Não arriscava os de nata ou creme, temia que azedassem. Fritava-os a cada dia, cedo. Sonho tem que ser fresquinho. E leve.

Ia ser hoje. Ao chegar com bacia e tabuleiro, a praia estava em reboliço. A carcaça de um cetáceo enorme, na areia. Vinha gente de todo lugar, com suas certezas.

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É um jacaré. Claro que não, otário. É sim, vi numa foto, igual esse. Gargalhada geral. Seja bobo, moleque. É um golfinho. Peixe. Baleia, gritaram lá de trás. Palpites não faltavam, tanta gente. Ela virou-se. Não podia ser com ela. E não era. Suspirou aliviada. A mercadoria quase acabando.

Um senhor de aparência respeitável veio três vezes. O primeiro, de goiabada. Depois, o de dulcedelexe. Jeito esquisito de falar. Abriu-se. Desabriu-se em sorrisos. Ele pareceu corresponder. Era hoje. Na praia os bombeiros estavam entretidos com a baleia. Fotógrafos se acotovelavam e a criançada corria.

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Antes do meio-dia vendera quase tudo. E nada do gringo se acercar. Ficou por ali, ciscando, como quem não quer nada. Piscou para ela. Arrepio. Pelos eriçados. De hoje não passa, como dizia o Seu Edu.

Na barraca vizinha começa um entrevero. O vendedor de chapéus comenta o tuíter do capitão no carnaval. O de sempre. Todos opinando ao mesmo tempo. Não tinha o que fazer. O dedo lá não precisava. Carnaval é uma pouca vergonha. Quis dizer que todos os que o insultaram pelo país a fora eram veados. E não eram? O que é chuva dourada? Tem que acabar com isso daí. Talquei? Prejudica a aprovação da reforma da previdência. Prejudica é o carnaval. Espanta turistas. E os crentes, reclamaram das imagens que ele postou? Hipocrisia. Não tivesse postado, quantos veriam aquelas cenas?Achei excitante. Cala a boca, cadela. O professor de literatura desempregado, vendedor de óculos, saiu-se com uma tirada de espírito. Cadela Baleia. Ninguém entendeu. Começou com bolsa de colostomia e vai acabar com uma mijada. Poucos riram. Outro, jornalista que nem terceirizado se colocava, vendedor de protetor solar, emendou com um lembram do Itamar com a moça desprevenida no carnaval há 25 anos? Ninguém recordava. O povo não tem memória. A tem. O se tem. Deixa o homem. Ele está certo. Mijair! Louco. Insano é quem votou nele. Indecoroso. Hospício. Pior que os filhos, disse a que renegava, odiando, sua anacrônica virgindade.

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O portenho, vozeirão de tango, impôs o silêncio aos demais. Bolsonaro es el Macri brasilenho. E se desandou a defender as políticas neoliberais de ambos. Um verdadeiro desmancha-rodinha. Cada um foi despistando, até que restou apenas ela a ouvi-lo. Até a sirigaita perdeu a paciência. Tinha mais o que fazer.

Calada. Decepcionada. Catou o tabuleiro, a bacia vazia, deu o último ao gringo. Precisa pagar não. Agradeceu, ensaiou seu melhor sorriso falso e saiu rebolando prazerosamente as generosas cadeiras. Manteria seus princípios e, com eles, sua virtude. Tinha pressa, mas jamais seria com um bolsonarista. Irrecuperável, antiquada, a mulher dos sonhos.

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