Agora é oficial: para o presidente democracia no Brasil é concessão das Forças Armadas

Equivocam-se e, creio, intencionalmente levam a erro aqueles que disseminam a ideia de que as Forças Armadas são o fiel depositário da democracia brasileira, uma mera concessão sua. Rigorosamente, quem detém as armas pode impor, mas não pode dispor de legitimidade para a obediência às suas ordens

Agora é oficial: para o presidente democracia no Brasil é concessão das Forças Armadas
Agora é oficial: para o presidente democracia no Brasil é concessão das Forças Armadas (Foto: Ueslei Marcelino - Reuters)


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Em discurso realizado neste dia 7 de março de 2019 em cerimônia comemorativa ao 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais – situado na Base de Fortaleza, na Ilha das Cobras, ao lado do centro do Rio de Janeiro –, Jair Bolsonaro golpeou a Constituição brasileira de 1988 em um de seus fundamentos, a saber, a democracia. Bolsonaro sustentou que a democracia e a liberdade dos brasileiros têm a sua existência condicionada na exclusiva vontade das Forças Armadas, sob a qual o regime brasileiro hoje se sustenta. O condicionante do regime hoje, portanto, é a força das armas, a coação pura, e não a vontade política popular, e isto desenha para qualquer um e com supina clareza, como venho insistindo, que o atual regime é militar, seja qual for a sua variável e as inovadoras peculiaridades. A respeito deste discurso, e sem a pretensão de exaustividade, chamarei a atenção para alguns pontos que violam pontos centrais do compromisso constitucional com a democracia.

Em seu discurso Bolsonaro prometeu “cumprir a sua missão”, administrativa, se supõe, apenas “[...] ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia”. Bolsonaro propõe uma administração que restringe a amplitude do compromisso universal da democracia com tão somente uma massa homogênea de cidadãos cujas “virtudes” são assim determinadas pelo Governo. Bolsonaro e oestablishment militar que o sustenta exclui do conceito de democracia presente na Constituição o respeito à diversidade, do qual o Governo de um moderno Estado democrático perpassado pela tradição ocidental não pode divorciar-se. Ao excluir da direção e influência nos assuntos políticos da administração o conjunto de pessoas que não reputa de “bem”, ou que, supostamente, “não amam a pátria” e/ou “não respeitam a família”, ou que “desejam aproximar-se à países com ideologia não similar à nossa”, portanto, Bolsonaro infringiu o disposto no inciso VIII, art. 5º, CF/88, que dispõe sobre a liberdade política, proibindo a privação de direitos por “[...] motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”, transgredindo também o inciso IV, art. 1º, CF/88, que estabelece que é função do Estado e, logo, obrigação de suas autoridades, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, conjugação que virtualmente impede a consecução do objetivo constitucional de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. (art. 3º, I, CF/88).

Bolsonaro expressou a pior face da personalidade autoritária já descrita por Adorno e Fromm em seus trabalhos sobre o tema, agora todavia aliada a uma profunda ojeriza por seu próprio povo brasileiro. Este desapreço é somado ao desprezo pela cultura popular –recordemos a sua recente e absolutamente escatológica postagem sobre o Carnaval –, mas também pelo conjunto de sua gente, por sua história, pelos seus heróis, por sua diversidade e, como se já não fosse o suficiente, revigorando os racistas de final do século XIX e os seus piores herdeiros do primeiro quarto de século XX, manifesta seu desprezo por sua riqueza maior, a sua constituição étnica. Fixado na fase anal, é um recorrente crítico da vida gay, tendo declarado que a intensidade de seu ódio e negação da vida gay o levaria a preferir ver seu filho morto. Ato falho. Congruente, portanto, é que Bolsonaro desqualifique o povo brasileiro, os negros, os indígenas, os LGBTIs, e grande parte do gênero feminino, desde que não se inclua na classificação de mulheres caucasianas e de confissão religiosa judaico-cristã. Estamos enfrentados com personalidade que reflete o pior produto do ódio unido à cobiça, resultando no infortúnio da gente brasileira, isto sim, temporário.

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Em sua declaração no Corpo de Fuzileiros Navais, Bolsonaro violou o disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição brasileira, que prevê os fundamentos do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, e dentre eles o dispositivo de que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, mas também ao próprio conceito de soberania (civil e democrático-constitucional) presente no glossário das Forças Armadas (MD35-G-01, 260/288). Impossível ser mais direto e mais claro. Bolsonaro declarou publicamente que vivemos em um novo regime ditatorial-militar secundado por meia dúzia de civis – à tarde os declararia até “bem-vindos” ao Governo – e que, portanto, a Constituição já não vigora para além dos limites estritamente traçados na prática pelas Forças Armadas.

Em sua posse como Presidente da República Bolsonaro perante a nação jurou cumprir e dar cumprimento à Constituição do Brasil nos seguintes termos: “Manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. A transgressão dos dois citados dispositivos também viola este juramento de posse. Os termos de seu discurso no Corpo de Fuzileiros Navais colocam a democracia e a liberdade como uma mera concessão das Forças Armadas mas, sobretudo, desloca o papel fundamental da Constituição do Brasil. A vontade popular já não é mais a real fonte soberana do poder e democraticamente limitadora da função e competência das Forças Armadas, senão o contrário. A declaração de Bolsonaro subverteu o sistema político em que vivemos, que não é mais constitucional, senão uma mera tutela militar.

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Após a declaração de Bolsonaro a Constituição foi colocada em posição inferior a dos militares enquanto fonte legítima de poder, e ao realizar esta substituição subverteu a norma democrática essencial que reconhece a soberania mais do que ao povo. Mas se Bolsonaro explicitou o fato do fim da democracia, a rigor, há antecedentes recentes, a exemplo do ocorrido um dia antes de decisão do Supremo Tribunal Federal sobre processo que poderia decidir pela libertação do Presidente Lula. Então, o General Eduardo Villas Bôas veio a público nas redes sociais para dar o tom do teor da decisão que as Forças Armadas “esperavam” que fosse tomada pela Corte para evitar riscos à continuidade institucional, levando a que o sentido da decisão ocorresse finalmente em desfavor de Lula mas, sobretudo, da democracia, das liberdades e da soberania assim como da defesa da Constituição brasileira.

Era entrado o início da noite do dia 7 de março de 2019 quando o Presidente veio à público nas redes sociais para, em transmissão ao vivo, mas temendo piorar ainda mais a situação quando deixado a si mesmo, apareceu secundado pelo General Augusto Heleno (Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência) e também pelo General Otávio Santana do Rêgo Barros (Porta-voz da Presidência), e o fez com o objetivo expresso de desmentir o sentido de sua declaração realizada durante a cerimônia comemorativa ao 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais. Bolsonaro tentou reinterpretar o teor de seu discurso dizendo tratar-se de que as Forças Armadas apenas devem “zelar pela democracia”. Este não foi o sentido de sua declaração. O que claramente disse foi que a democracia e a liberdade existem apenas e tão somente na medida em que as Forças Armadas assim o quiserem. Há áudio e vídeo.

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Sem embargo, cabe recordar trecho de intervenção do General Heleno neste programa presidencial na rede mundial de computadores no início da noite deste 7 de março de 2019. Nesta oportunidade sustentou Heleno que as “Forças Armadas são, por determinação constitucional e legal, os detentores do emprego legal da violência”. Equívoco, General Heleno, às Forças Armadas não foi outorgada competência legal para, ex officio, empregar violência contra a sua própria gente como ocorreu durante a ditadura militar, senão sob a égide do art. 142, defender a Pátria, e a lei e a ordem, bem como os poderes constitucionais, por iniciativa de qualquer um deles, mas nunca ex officio, sem o prévio chamado das autoridades civis. Claro está, trata-se de forças que não demonstram a mesma ousadia e coragem para defender o Estado brasileiro de ter as suas riquezas roubadas, como é o caso presente do pré-sal brasileiro. Lamentavelmente, a respeito deste gravíssimo assunto nada ouvimos de forma tão decidida por parte de suas forças responsáveis, inversamente ao que ouvimos sobre aqueles que se apresentam para propor medidas políticas para proteger as condições de vida do povo brasileiro e as riquezas nacionais, a quem se reserva persecução e ameaças várias.

Sob tal tipologia de ordem política as Forças Armadas – que já contam com generais alocados junto à Presidência do Supremo Tribunal Federal – se colocam na posição típica do conceito de ditadura soberana de Carl Schmitt, cujo soberano dispõe de poderes para suspender e até revogar a íntegra da Constituição. Com isto, portanto, a nova ordem política e jurídica brasileira não mais encontra o seu eixo de estabilidade na Constituição e na vontade popular mas, isto sim, nas Forças Armadas, que hoje encarna o citado conceito schmittiano.

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Derivação deste discurso, adveio a citada intervenção vespertina na rede mundial de computadores, e nela o regime militar voltou a explicitar através do General Heleno a sua tortuosa reinterpretação da história, e segundo ela, o Brasil deveria a sua liberdade às Forças Armadas. Não, senhores(as), efetivamente não, o Brasil não deve qualquer átomo das liberdades alcançadas a nenhum expert em torturar corpos e estuprar mulheres. Efetivamente, a democracia popular – e é preciso explicar que uma democracia ou é popular ou é contradição em termos – não conhece o caminho do massacre humano para a construção de um mundo livre e equânime em que os direitos de todos os homens e mulheres sejam respeitados. O que devemos aos violentos e violadores é apenas isto, muita violência, e muita, muita tortura, horrores e gritos, unhas arrancadas, crânios afundados, corpos perfurados, mentes e corações de indivíduos e famílias vazados pela eternidade. Esta é o legado dos violentos, mesmo quando ainda estejam ocultos os corpos e sumidos os documentos internos que coordenaram o massacre, talvez pela vergonha em assumir a sua história.

Todos, aqueles que se negam a ouvir o suplício e a profunda dor das mulheres estupradas, todos sem exceção, deveriam urgentemente procurar auxílio médico e religioso, pois são incapazes de compreender a misericórdia e a fraternidade, são incapazes de viver a experiência humana sob padrões mínimos de respeito à dignidade. Foi a resistência da sociedade a este regime de barbárie e violência sem par que impôs o amanhecer democrático ao Brasil, e em nenhum caso a ação das Forças Armadas. Não reescrevam a história do Brasil com o sangue ainda e sempre fresco das vítimas que tombaram sob os bárbaros crimes do Estado brasileiro.

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Equivocam-se e, creio, intencionalmente levam a erro aqueles que disseminam a ideia de que as Forças Armadas são o fiel depositário da democracia brasileira, uma mera concessão sua. Rigorosamente, quem detém as armas pode impor, mas não pode dispor de legitimidade para a obediência às suas ordens. Quem ocupa o poder com base na ostentação da iminência da aplicação da força, não detém legitimidade democrática para o exercício do poder. As forças calçadas em armas, portanto, nunca foram, e nunca serão, a legitimação do poder democrático, pois, no máximo, sustentarão um regime de pura força. Em uma real democracia é apenas ao povo a quem cabe a tarefa histórica de sustentar tal regime de liberdades populares. Quem quer que se coloque na posição histórica de guarda democrática pelo uso iminente da força militar viola de modo gravíssimo a soberania popular detentora do poder político fundamental reconhecido constitucionalmente.

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