A hipótese comunista

A outra espécie de fracasso, no que tange ao afastamento da universalidade, característica da política revolucionária, seria o terror, entendido como fracasso de extrema-esquerda. É a destruição infecunda do outro ou das particularidades ou da tradição

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“A HIPÓTESE COMUNISTA”, de Alain Badiou, foi publicado,  em 2009, na França, momento em que ocorria uma forte crise financeira no mundo, menos no Brasil. E, logo na introdução, Badiou define o que seria essa ideia ou hipótese comunista: promessa de emancipação universal que se sustenta em três séculos de filosofia crítica, internacionalista e laica, empenhando os recursos da ciência e mobilizando, nas metrópoles, tanto o entusiasmo dos operários quanto dos intelectuais.

Em contraposição aos “novos filósofos”, como Bernard Henri-Levi e André Glucksmann, segundo os quais, o fracasso de uma forma concreta da Ideia Comunista expressaria o fracasso desta (para eles os socialismos seriam as únicas formas concretas da referida ideia), Badiou argumenta que há uma história da justificação da hipótese, exatamente como um campo científico. O fato da hipótese ou do problema inicial ainda não ter sido resolvido, não significa que ele tenha desaparecido. As etapas da história do comunismo seriam fragmentos do Real, tais como “Maio de 68”, a “Revolução Cultural na China”, a “Comuna de Paris” - todos eles  abordados no estudo de Badiou. Esses fragmentos seriam o corpo da verdade, considerando esta em curso (ela permanecerá em curso enquanto o problema inicial referente à emancipação não for resolvido). Ou seja: esses corpos não teriam uma identidade expressa em nomes comuns ou predicados, mas seriam um complexo de pensamento, organização e ação.

A reflexão sobre o fracasso, de uma determinada forma da Ideia comunista, teria uma natureza dialética: pode ser uma reflexão negativa ou positiva. A reflexão negativa sobre o fracasso é acusada no próprio momento da derrota e reside na interioridade de uma política, ao passo que a reflexão positiva da derrota demora a se fazer e propicia a mudança de modelos de ação e a invenção de novas formas de organização – essa reflexão faz uma ponte entre determinada política e sua historicidade (a consistência da hipótese comunista só se estabelece a partir de uma história).

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Mas o fracasso revolucionário também pode ser considerado a partir do afastamento de sua política, qual seja, da universalidade, que torna o lugar habitável por todos sob a norma da igualdade.  Nesse aspecto, nos anos 80 de Miterrand, o fracasso residiria na restauração da força do Estado, aqui entendido como a democracia representativa e as leis da economia de mercado – a passagem do maoísmo e do comunismo ativo para a cadeira macia de senador, isto é, para as delícias do poder parlamentar. Sob o signo dos poderes estabelecidos, faz-se a gestão dos contrários, numa obsessão pela totalidade, afastando-se, portanto, do fio da multiplicidade que rege o motivo revolucionário, onde todos são iguais, não só nos direitos como na verdade material.

A outra espécie de fracasso, no que tange ao afastamento da universalidade, característica da política revolucionária, seria o terror, entendido como fracasso de extrema-esquerda. É a destruição infecunda do outro ou das particularidades ou da tradição.

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Ambos os fracassos fazem parte da eliminação da diferença ou de uma associação livre, expondo a vitória revolucionária em vão, como entremeio do Estado, ou seja, fazendo transparecer um niilismo. Porque se a vitória revolucionária tinha um sentido de mudar o Estado na direção associativa livre, sob o signo da igualdade, acaba se restaurando ou o terrorismo do Estado-Partido, ou o abandono de qualquer referência socialista ou comunista com o alinhamento às imposições desigualitárias do capitalismo.

As outras espécies de fracasso não se dariam, como nas anteriores, em conseqüência de uma vitória revolucionária, mas em função de uma luta: no primeiro caso é quando os revolucionários são esmagados pela contrarevolução em função de uma relação de forças; no segundo caso, que eu deverei tratar no meu próximo texto, refere-se a “Maio de 68”, amplo movimento em que se engajam forças discordantes numerosas, sem que estabeleçam um objetivo de poder, mas pondo o Estado Reacionário na defensiva – resta saber se o recuo de seus militantes deve-se ao fato de que foi só imaginação ou se foi uma amostra da concepção que se deve ter do que é uma política libertadora (talvez sejamos contemporâneos a Maio de 68, conforme explica Badiou, justamente porque um dos principais sentidos desse movimento  é o problema das novas formas de organização adequadas ao tratamento dos antagonismos políticos, uma vez que a figura clássica da política de emancipação, considerando os partidos e sindicatos, tornou-se inoperante).

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Badiou ao afirmar que seu texto é diferente de um texto político, ou seja, diferente de uma reflexão interna a um processo político organizado (característica das reflexões negativas sobre os fracassos), também afirma que é diferente de um texto de filosofia política, que sempre impõe as normas morais, as normas de um Estado correto.  Ao afirmar que seu texto é de Filosofia, procurar estabelecer a forma genérica que todos os processos de verdade assumem quando encontram os obstáculos do mundo, qual seja, o conceito de ponto, diante do qual, uma escolha binária decide o devir do processo. O fracasso estaria associado ao tratamento inadequado de um ponto, considerando que atrás deste tem um enunciado fundamental. Daí porque todo fracasso é uma lição que se incorpora na universalidade positiva da construção de uma verdade. O caráter topológico dessa construção se expressa no fato de que as dificuldades de uma política nunca são globais – são consideradas em uma rede em que é possível reconhecer seu lugar, seu entorno e a maneira de abordar essas dificuldades. Esse espaço de fracassos possíveis é onde se dá a construção da verdade, construção essa que Badiou dá o nome de Filosofia.

O texto “A Ideia de Comunismo”, que consta do livro “A Hipótese Comunista”, é a íntegra de uma conferência de março de 2009 em Londres. No referido texto, Badiou vai sublinhar suas referências platônicas, principalmente no uso da Ideia. Em seu livro “Segundo Manifesto pela Filosofia”, irá trabalhar com o conceito de ideação (o valor operatório ou ativo da ideia) que será  retomado nesse texto-conferência .  A Ideia de comunismo seria, para Badiou, antes de tudo, uma operação com três componentes: o político, o histórico e o subjetivo. Esse mecanismo será destrinchado dentro de uma tradição lacaniana, que faz da Ideia uma operação ligada à subjetivação intelectual, integrando no mesmo nível , o real, o simbólico e o ideológico.

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O componente político é o processo de verdade entendido como uma sequência concreta e datada, em que surgem, existem e desaparecem uma prática nova e um pensamento novo a respeito da emancipação coletiva ou da Ideia comunista. Por exemplo: Revolução Francesa (1792-1794); Guerra Popular na China (1927-1949); Bolchevismo (1902-1917); A Grande Revolução Cultural Proletária (1965-1968). Essas sequências seriam destinadas a uma cessação imanente. Mas esse processo de verdade insere-se no devir geral da humanidade sob uma forma local, cujos suportes são espaciais, temporais e antropológicos. Em outras palavras: ainda que a verdade seja, em última instância, universal ou eterna, ela tem uma dimensão histórica, um modo histórico. Mas, talvez o componente mais importante da Ideia, no esquema de Badiou, seja o componente subjetivo, quando um indivíduo decide tomar parte de um processo de verdade, se transformando, por exemplo,  num militante bolchevista. O componente subjetivo da Ideia é justamente o engajamento individual, o aspecto de decisão, escolha, vontade. Nesse momento, o indivíduo fixa o lugar de uma verdade em relação a sua própria existência vital e em relação ao mundo em que essa existência se manifesta. O componente subjetivo é que vai fazer a ligação entre o universal e o local, entre o processo de verdade e o seu modo histórico.

Se, para Lacan, o real é insimbolizável (poderíamos pensar aqui no processo de verdade e no seu Devir Sujeito Político ou num fragmento do real político e seu sujeito político), só poderemos projetar  imaginariamente o real de um processo de verdade na simbólica narrativa da história. A ideia, portanto, seria essa operação imaginária própria de uma subjetivação individual.

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É fundamental a diferenciação entre Lacan e Hegel no que tange à dimensão do real: quando os fragmentos da emancipação coletiva progridem de acordo com o sentido da história, há uma subordinação das verdades ao processo histórico – nesse sentido, poderíamos pensar o comunismo como um predicado e não como uma ideia (hegelianismo). Para Lacan, no entanto, a História não existe, é apenas uma simbolização, enquanto as verdades são puras contingências, não tendo nenhum sentido, muito menos o sentido histórico. Daí a importância e a independência do evento em sua dimensão real: ele abre a possibilidade daquilo que seria impossível (o real é impossível na fórmula lacaniana).  Ora, o Estado ou estado de situação organizam e mantém com freqüência pela força, a distinção entre o que é possível e impossível – em outras palavras, o Estado finitiza as possibilidades (a subordinação das verdades ao sentido histórico é uma forma de finitização). Quando o comunismo está ligado à Ideia, não à História enquanto predicado, ele se liberta do Estado e ganha uma infinitização de possibilidades através da subjetivação intelectual.

A condenação ao culto da personalidade, que foi a crítica de Kruchov à Stalin, faz parte da crítica abstrata ao papel dos nomes próprios na subjetivação política. Pois a política de emancipação estaria sob esses dois regimes: as massas anônimas, os sem nomes dos que são mantidos pelo Estado numa monstruosa insignificância (conforme Rancière, a importância democrática do não pertencimento a uma classificação dominante); e a Ideia comunista que abriga a Figura Histórica – justamente porque a Ideia comunista se refere diretamente ao infinito popular é que ela precisará da finitude dos nomes próprios: Espártaco, Thomas Münzer, Robespierre, Toussaint-Louverture, Blanqui, Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Mao, Che Guevara... A política de emancipação é marcada de uma ponta a outra por nomes próprios que a identificam historicamente e a representam de maneira bem mais intensa do que nas outras políticas. O símbolo simples e poderoso do nome próprio reúne a ação anônima de milhões de militantes.

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O que prevalece na defesa que Badiou faz  dos nomes próprios ou das vidas heróicas, como variantes do culto da personalidade, é que, ao contrário da história comum ou das vidas individuais que fazem parte da História do Estado,  a vida heróica também quer estar em partilha com os outros, se mostrando não só como exceção mas também como possibilidade nova e comum pra todos. E essa seria uma das funções da Ideia: projetar a exceção no comum das existências, deslocando por algum tempo as linhas de força pelas quais o Estado prescreve o que é possível e o que é impossível, e convencendo meu entorno individual de que existe também a fabulosa exceção das verdades em devir, de que não estamos fadados à formatação de nossa existência apenas pelas exigências do Estado.

Ter uma Ideia significa não só envolver os possíveis reais, mas a possibilidade formal de outros possíveis ainda insuspeitos por nós (infinitização de possibilidades). É sempre formalmente possível que a linha divisória estabelecida pelo Estado (possível – impossível), seja deslocada mais uma vez, por mais que tenham sido radicais seus deslocamentos precedentes, inclusive aquele de que participamos como militantes. O conteúdo da Ideia comunista não é um determinado objetivo a ser atingido pelo trabalho de um novo Estado, mas é o enfraquecimento do Estado como tarefa infinita, já que a criação de verdades políticas novas sempre deslocará a linha divisória entre o possível e o impossível, entre fatos do Estado e as conseqüências eternas de um Evento.

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