Reforma da Previdência Social no Chile: lições para o momento

Constata-se que a mera substituição de um sistema de repartição por um de capitalização plena e individual não resolveu os problemas do Chile, com suas Administradoras de Fondos de Pensiones (AFP). A necessidade de o Estado chileno financiar benefícios mínimos em decorrência da baixa densidade de contribuições dos trabalhadores, provocou alta no déficit fiscal



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No tempo em que se discute uma possível quebra dos paradigmas do nosso sistema de previdência, trabalhadores de vários países lutam pela possibilidade de retorno ao tradicional modelo solidário, de repartição simples. Depois de terem experimentado a mais cruel das experiências neoliberais, que levou grande parte da população idosa à miserabilidade absoluta, milhares de cidadãos daquelas nações, frequentemente, vão às ruas em passeatas, como protesto contra esse grande engodo.

Esse movimento traz à tona as consequências das políticas liberalizantes que campearam mais fortemente o mundo nas décadas de 80 e 90, quando alguns governos buscaram esvaziar o Estado das suas funções precípuas, com a mesma lógica e argumentos que estão sendo hoje usados pelas autoridades e por setores da grande imprensa brasileiros. Segundo um recente estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dezoito dos trinta países que embarcaram na solução vendida pelos modismos dessa época já retornaram total ou parcialmente ao modelo antigo e tentam amenizar a crise social sem precedentes advinda daquelas orientações.

O contraexemplo chileno

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O Chile foi o primeiro país a promover, em 1981, ainda sob a égide da ditadura militar, a mais radical reforma da previdência do mundo, praticamente acabando com o sistema público em favor da iniciativa privada. Dizia-se, naquele momento, pretender aumentar a poupança interna, ampliar o mercado de capitais e, sobretudo, resolver o problema do déficit público.

Abandonando por completo a promoção dos ajustes necessários para o equilíbrio de um modelo que garantia parcialmente a distribuição de renda, o então todo poderoso general Augusto Pinochet, embalado pelos arroubos liberalizantes da escola de Chicago e contando com a cômoda vantagem de não ter que discutir a reforma do sistema previdenciário com a sociedade, resolveu fazer do Chile uma espécie de laboratório, com a adoção de um novo modelo, completamente desconhecido no mundo.

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Ressalta-se que, na mesma época, também se privatizou o sistema de educação superior, privatizou-se parte da saúde e, em paralelo, implementou-se uma drástica perseguição às organizações de representação da sociedade, para reduzir, dessa forma, o poder e a importância dos sindicatos, evitando assim qualquer contraposição ao seu projeto de governo.

Propagava-se o novo desenho como um paraíso, onde as pessoas que aderissem ao novo sistema, quando se aposentassem, em uma projeção para 2020, teriam possibilidade de obter benefícios equivalentes a 100% dos salários recebidos em atividade e até mais, a depender do retorno dos investimentos.

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A novidade apresentada ao sistema previdenciário, diga-se de passagem, com amplo apoio e respaldo dos economistas neoliberais pelo mundo afora, dentre eles o nosso atual ministro da economia, o então jovem Paulo Guedes, baseou-se na implantação de um sistema privado, compulsório para todos aqueles que, a partir daquela data, ingressassem no mercado de trabalho. Esse sistema passou a ser operado pelas Administradoras de Fondos de Pensiones (AFP), organizadas sob a forma de sociedades anônimas.

A cilada das AFPs

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O regime financeiro adotado pelo novo sistema previdenciário foi o de capitalização, com contribuições definidas. O valor da contribuição do assalariado passou para cerca de 13,1% sobre a sua renda. Nesse percentual estão embutidos os descontos das altíssimas comissões pagas às administradoras, restando como recurso poupado pouco menos de 10%. 

Os segurados do antigo sistema, acuados por uma forte pressão governamental, combinada com uma agressiva campanha publicitária promovida pela imprensa local, ainda que pudessem permanecer na mesma condição, migraram em massa para o novo sistema. Temiam-se as perseguições do governo ou a rejeição dos empregadores nas futuras revisões contratuais. 

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A partir daquele momento, a aposentadoria dos trabalhadores chilenos passou a ser uma incógnita, já que o benefício resultaria das suas contribuições individuais líquidas e dos rendimentos auferidos nas aplicações. A contribuição do empregador deixou de existir, sendo incorporada ao salário do trabalhador como aumento real. As novas regras de elegibilidade para aposentadoria foram uniformizadas: a idade mínima exigida passou a ser de 65 anos para os homens e para as mulheres. 

No modelo implementado, não existe formalmente a obrigatoriedade de tempo de contribuição, exceto no caso de beneficio mínimo, em que se exige o tempo de 20 anos. O empregado poderia, porém, aposentar-se mais cedo, desde que os benefícios a receber fossem equivalentes a, pelo menos, 50% de seu salário médio durante os últimos 10 anos e a 100% do salário mínimo mensal, o que dificilmente ocorreria. 

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Aos trabalhadores chilenos foram oferecidas três possibilidades de recebimento do valor acumulado: (i) as contribuições acumuladas poderiam ser empregadas na aquisição de um plano de renda junto a uma seguradora; (ii) os trabalhadores poderiam receber uma pensão paga diretamente pela AFP, que seria calculada pela expectativa de vida do grupo familiar aplicada ao saldo existente na conta, que continuaria a auferir juros segundo a performance da AFP ("retiro programado"); e (iii) os trabalhadores poderiam sacar parte das contribuições para adquirir um plano de rendas junto a uma seguradora, deixando o restante para ser pago diretamente pela AFP. 

Realidade atual dos aposentados chilenos

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Passados 38 anos da malfadada reforma, o Chile vive hoje um verdadeiro caos previdenciário, com incidência crescente de registros de suicídio entre os idosos. Buscando se evitar uma catástrofe ainda maior, houve a necessidade de intervenção do Estado, a partir de uma segunda reforma, promovida no governo de Michelle Bachelet, em 2008, para que os 40% mais pobres da população passassem a receber uma Pensão Básica Solidária (PBS), de cerca de US$ 150, mesmo sem jamais ter contribuído.

Quando os trabalhadores buscam nas AFP o resultado das suas aplicações pelo período de quase 40 anos, metade dos aposentados recebe 33%, se homem, e 12%, se mulher, em relação à renda que tinha em atividade. Pelas condições do mercado de trabalho, as mulheres são as maiores vítimas, que não atingem sequer 30% do valor do salário mínimo, contando com a contrapartida do Estado. Ainda que se considere um período integral de 30 a 35 anos de contribuição, mais da metade das pessoas que estão aposentadas recebe abaixo de um salário mínimo.

Nas aposentadorias programadas para 2019, 86% dos homens e 95% das mulheres recebem valores abaixo de um salário mínimo.  Foi necessário que o governo chileno instituísse um subsidio mínimo para que este segmento da população se mantivesse pouco acima da linha da pobreza estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Ao contrário do que se propagou, o número de trabalhadores com contribuição irregular cresceu, os desempregados jamais voltaram a contribuir proporcionalmente à idade ou pelo tempo parado e os autônomos nunca foram obrigados a integrar uma AFP. Atualmente 10,7% milhões de pessoas fazem parte do sistema de capitalização, onde apenas 5,4 milhões contribuem regularmente, o que significa uma grande massa sem cobertura previdenciária. 

Quem lucrou com tudo isso?

Das 18 AFPs que iniciaram com o processo, o mercado concentrou-se em apenas seis, sendo que somente uma delas, Modelo, com participação de 5,6% do mercado, é de capital chileno. As três seguradoras dos Estados Unidos: Habitat (EUA-Chile) com 28%, Provida (EUA), com 24,9%, e Cuprum (EUA), com 18,9%, controlam 72% dos fundos de pensão chilenos e decidem onde investir os recursos.

O patrimônio das AFPs alcança hoje 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do Chile. O retorno sobre o patrimônio líquido para as empresas controladoras dessas Agências gira em torno de 24% (rentabilidade média anual). Por outro lado, o Chile e o México, que têm este tipo de capitalização, são os países que apresentam o maior número de desigualdade no seu sistema de aposentadoria. Curiosamente são os Estados Unidos que estão recebendo parte expressiva dos ganhos desse negócio.

Um sistema sem perspectivas

Por fim, o que se constata é que a mera substituição de um sistema de repartição por um de capitalização plena e individual não resolveu os problemas do Chile, mas veio a agravá-los. A necessidade do Estado chileno de financiar benefícios mínimos e assistenciais em decorrência da baixa densidade de contribuições dos trabalhadores, provocou crescimento do déficit fiscal. Além disso, o aumento da expectativa de vida levou ao incremento da contribuição previdenciária, de 10% para 14%, ou da idade para aposentadoria, ou ambas as alterações.

A reforma intentada no Chile só fez aprofundar o abismo na proteção social, com o aumento da pobreza e redução do valor dos benefícios da quase totalidade dos segurados. Tal como nos demais países que adotaram o sistema de capitalização, ficou comprovado que esta modelagem defendida pelo mercado só interessa aos bancos e seguradoras e que só beneficiou o grande capital especulador estrangeiro, principalmente dos Estados Unidos. 

 

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