Fumaças

Meio de feriado a charutaria, vazia. Podia até ficar fechada. Mas o patrão, na praia, insistiu que deveria funcionar. Foco no cliente, insistiu. Era seu aniversário, mas resignou-se. Era a vontade do Senhor. Por estas e outras é que fazia cachorro

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Charutaria é como golfe. Só que sem tacos. O tipo de gente que frequenta os estabelecimentos dedicados às baforadas é, em grande parte, o mesmo. Há vários em Curitiba, essa cidade europeia.

A indumentária dos aficionados de ambos é parecida. Calça esporte, camiseta polo ou camisa xadrez, cinto combinando com os sapatos esportivos e casuais suéteres jogados sobre os ombros, as mangas amarradas à altura do peito, ou elegantes paletós em azul, botões dourados. Parece uniforme. Óculos escuros, relógios caros, alguns com discretas jóias e até anéis, em ouro. Com uma diferença. Frequenta também as charutarias uma significativa quantidade de escroques, golpistas, estelionatários que se misturam com a garbosa elite, mimetizados, na esperança de ganhar algum. Estes, os mais falantes e performáticos na nobre arte de degustar tabacos de boa estirpe e de criticar Cuba, os cubanos e tudo aquilo a eles associado.

São como clubes. Ou extensões daqueles, sem a exigência de apresentar carteirinha na entrada. Lá como aqui, o objetivo da maioria é ver e ser visto, espaços sociais para desfilar vaidades, fazer negócios e repetir, uns para os outros, os lugares-comuns de determinada maneira de existir. Os discursos arrogantes e preconceituosos também parecem uniformes.

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Como no golf, há um gestual adequado, quase uma coreografia. Analisado o cardápio e feita a escolha do puro preferido, de modo planejadamente distraído, escolhem suas bebidas e, claro, ordenam club soda para hidratar. Em que outro lugar, fora das charutarias ou dos clubes da elite, podem encontrar club soda? Nem nas próprias casas. Saber de que se trata já é grave. Deveria ser, no mínimo contravenção, por presunção.

Sabia se portar. Veio com o pai, retirante nordestino, ainda moleque. Conseguiu, deus seja louvado, emprego aos doze como caddie, carregador de tacos de golfe, recebendo gorjetas ao final da partida, no clube mais tradicional. Um dia foi proibido de trabalhar. Explicaram-lhe que a Justiça do Trabalho, antro de comunistas, era a culpada. Um mau-caráter tinha reclamado, agora os bons pagariam pelos pecadores. O ministério do trabalho exigia registro dos caddies. Absurdo. Trabalhavam lá há anos, sem problemas, veio o Estado se intrometer. Desesperado, trabalhava para viver, nunca faltou, não tinha domingo nem feriado, chorou, nunca teve férias. Precisava. O desembargador aposentado teve pena. Havia seis para sete anos que o Paraíba lhe carregava a bolsa, três vezes por semana, sugerindo, vez ou outra, o taco indicado. Arrumou-lhe emprego como limpador de cinzeiros na charutaria de um amigo. Progrediu. Passou da limpeza para o bar, fez curso no SENAC. Com o tempo, além do ódio à fome, à Justiça do Trabalho e ao comunismo, passou a ter nojo dos clientes, de seus gestuais, de seus modos afetados e de seus descomprometimentos com a obra do Senhor. Era inteligente, havia prosperado por méritos próprios, fez-se por si mesmo. Quando a mãe fugiu com um taxista, era só ele e pai, que pouco depois morreu de tristeza, afogado na bebida. Morava na pensão e não perdia culto por nada nesse mundo. Ali era reconhecido. Foi até convidado para assumir, como missionário, um templo no interior de Rondônia, para salvar as almas dos índios. Um projeto de vida. Daria a resposta no domingo.

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Meio de feriado a charutaria, vazia. Podia até ficar fechada. Mas o patrão, na praia, insistiu que deveria funcionar. Foco no cliente, insistiu. Era seu aniversário, mas resignou-se. Era a vontade do Senhor. Por estas e outras é que fazia cachorro. Percebera que a maioria dos clientes, pelas conversas que ouvia, era craque nisso.

Final da tarde foram chegando os clientes. Uns gatos pingados. Não eram uma turma, conheciam-se vagamente. Aproximavam o charuto das orelhas, giravam-nos delicadamente entre o polegar e o indicador para perscrutar-lhes a correta umidade, tomavam um gole da bebida e, com seus próprios apetrechos, cortavam uma das extremidades antes de, com caríssimos isqueiros, maçaricar a outra. Procedimentos uniformes. Só então davam as primeiras baforadas, olhos semicerrados, desfrutando um prazer que nunca foi completamente decifrado pelo atendente.

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Cumpridos os rituais preliminares começaram a interagir entre si. Das trivialidades sobre o tempo e sobre o trânsito na serra durante os feriadões passaram a discutir a conjuntura. Entretido com a lida, sozinho hoje, só escutava as frases sem atentar para quem falava o que.

Uma vergonha esse ministério, uns toscos. Quanta bobagem. Criam problemas para a reforma da previdência. Tenho uma hipótese. Diga.

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Sorveu um gole, encheu a boca de fumaça, soltou-a com solenidade boçal, e disparou.

Nosso pessoal têm pesquisa instantânea para identificar frases que sejam coerentes com o senso comum de quem votou no Bolsonaro, de quem apóia a Lava-Jato. Essas frases devem estar sendo entregues aos Ministros ou aos três patetas com precisão cirúrgica para serem divulgadas em pílulas para vitaminar a maneira de existir e pautar os debates nas redes sociais que nos interessam.A Damares, sozinha, não teria capacidade para formular tantas frases boas. Ela recebe e dispara. Os demais ministros, igual.
Isso explicaria a resiliência no apoio ao nosso governo apesar do conteúdo das acertadas medidas antipáticas que estão sendo tomadas. São frases curtas adequadas à mediocridade das maiorias. Desagradam alguns, mas atraem outros para o projeto de convívio social que defendemos.
Essas frases, longe de serem acidentais, teriam uma finalidade semiótica de reconstrução permanente do senso comum que impera e de esfumar a realidade. Acho mesmo que até parte dos erros do paupérrimo português do Ministro da Justiça seja planejada. Há uma inteligência por traz deles, estou convencido.

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Não creio. Eles são o que são. Foram escolhidos para o Ministério por serem assim. Mas estão indo longe demais. Vão acabar inviabilizando as reformas. Falta bom-senso. Estão errando a mão.

O que estava calado interveio. Eles acertam muito. Dizem o que a massa quer ouvir. É gente que também fala “conje”, que confunde sob com sobre, que acha que as mulheres devem ser submissas, que acredita que há comunistas em toda parte, que menino veste azul e menina, rosa. Essa identificação, que se fortalece, substitui a que havia entre Lula e aqueles setores sociais. É um projeto de colonização da maneira de pensar e de existir. Estão sendo muito eficientes.

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Esse Moro é um ignorante. Vai por tudo a perder. Foi útil para tirar aquela corja, mas já passa da hora de nos livrarmos dele. Arruma uma confusão em cima da outra no congresso. E, como jurista, me envergonha.

Como assim? Pensou o garçom. Não havia entendido a metade, mas percebeu a injustiça. Um homem santo, disse o pastor. Faz o que tem que ser feito. Quem eles pensam que são? Ficam ali medindo quem mantém a cinza mais longa. No fundo, uns pederastas como aqueles do banheiro do clube, cambada de manja pau, espiando quem tem a maior. Resolveu levar às mesas algumas castanhas para ver se os escrotos mudavam o rumo da prosa. Aprendera que, com aquela gente, era melhor não pedir permissão. Se fosse o caso pedia perdão depois. O perdão redime, Deus é pai. Não adiantou.

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Não é burro não. É caipira, tem mau gosto. O que é aquela camisa preta com gravata da mesma cor? Passou em um concurso difícil, é mestre, é doutor, virou professor de Federal. Saiu de Maringá, ganhou o mundo. E se tornou líder inconteste de milhares de juízes, de promotores, de procuradores, de funcionários públicos, de médicos, de advogados.
Um ignorante não conseguiria tamanha projeção. Mas ele, de fato, não teria a capacidade para sozinho acertar tanto. É simplório. Haja eufemismo. Não tem a intuição do Lula ou de outros grandes líderes. Todavia, com aquele congresso de estúpidos, não corremos riscos. Farão como no impeachment, comprarão os recalcitrantes. Sei não.

Concordo em parte com o que vocês disseram. Mas também acho que Moro já deu o que tinha que dar. Se não for descartado agora é capaz de virar presidente daqui a pouco. Realmente a burrice dele é constrangedora. Aquele episódio da última biografia que ele teria lido foi demais. Chega de tanta mediocridade.

O cara cresceu depois dos erros de português. Assim como Bolsonaro cresceu depois do Ele Não.
Nesse sentido a hipótese algo conspiratória passa a fazer algum sentido. É juiz. Não seria tão ignorante.

Passar em concurso público hoje qualquer um passa. Basta fazer um cursinho destes. Vejam o que aconteceu no serviço público. Ganham uma merreca e se estufam em injustificadas soberbas. Quase a metade dos juízes entrou na carreira depois que o Lula abriu concursos desnecessários. Decidem de acordo com nossos interesses, mas são medíocres, uns hedonistas que trabalham pouco e ganham muito. Tenho dois genros, um juiz, outro procurador, falo com conhecimento de causa. Levaram minhas filhas para morar no Nordeste. Nem para passar em concurso de algum lugar civilizado os trastes prestaram. Um só pensa em treinar para a maratona e o outro em viajar de moto com os colegas desqualificados dele. Depois da reforma da previdência teremos que enfrentar esse legado maldito da era petista que compromete a austeridade fiscal.

O Moro realmente é um problema. Reconheçamos, entretanto, que as coisas estão indo muito bem. Acabamos com o chamado centro. Agora somos nós, mandando, e os esquerdistas de sempre, esperneando. Ganhamos a guerra com o marketing político. Falamos para uma base determinada, mobilizando-a permanentemente, com vista a assumirmos a hegemonia dentre os campos adjacentes e conquistar a maioria. O Moro nada perde, somente ganha, ao aparecer como tosco intelectualmente. Ele estabeleceu sinergia com a base política que nos colocou no poder. Afinal, quantos eleitores do Bolsonaro, uma vez surpreendidos pela pergunta de qual seria o último livro que leram, não se sairiam cinicamente com aquela resposta das biografias, pouco importando se leram ou não leram? Ninguém está preocupado se Moro trata bem a língua portuguesa ou se é literato ou um jurista. Não foi por isso que ele seduziu tanta gente, virando juiz-herói. Basta para seus admiradores que ele continue sendo justiceiro, perseguindo e punindo pra valer os políticos, sobretudo, claro, os petistas. O Moro é como o Lula, fala com a população imbecil e diz o que ela quer ouvir. Os idiotas da esquerda ficam no meio da cortina de fumaça e se afastam da base deles que fala igual ao Moro. Quanto a nós, que temos mais de dois neurônios, temos que focar no que interessa, nas reformas estruturais. E depois delas, o quanto antes, nos livrar do Moro, da Damares, do Araújo. E do chefe deles.

O Paraíba ali é escurinho, mas tem a alma branca. Ganha por mês menos que o que vai dar nossa conta. Mas é uma pessoa de bem. Votou no bolsonaro. Foi pensando nele que tiramos a Dilma, que acabamos com a CLT e com os sindicatos. É ou não é, Paraíba? É sim senhor. Você tem registro em carteira? Claro que não senhor, tira o emprego das pessoas, tem que acabar. Mais uma rodada para os amigos aqui. É prá já. Hoje é meu aniversário, vai ter chorinho. O Paraíba é dos nossos, do bem, igualzinho a nós. Todos riram. Alguns gargalharam.

Enquanto os clientes se divertiam o ódio se tornou incontrolável. Aceitava tudo, menos ofender o Moro. Não. Isso não. Preparou os copos com esmero. No fundo de cada um sapecou uma cusparada. Disfarçou a viscosidade com os destilados.

Os fregueses já terminavam seus charutos, secavam os copos, quando pensou que ao invés do cuspe deveria ter diluído chumbinho. Uns ratos. Mereciam. Que nojo. Avisou que estava fechando a charutaria por hoje, movimento fraco.

Está certo, Paraíba, hoje você merece. Saciados, contas pagas, gorjetas maiores que as recebidas quando era quédi do golfe.

Limpou o caixa, deixou a bagunça. Baixou a porta metálica. Na segunda chegaria mais cedo. O patrão nem perceberia.

Saindo do culto dominical passou na pensão, catou as poucas coisas que tinha e arrumou a mala. Pagou a conta e deixou gorjeta.

Sorriu quando entrou no ônibus para Rondônia. Chega daquela gente. Jamais será como eles. Dali em diante salvará as almas dos índios.

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