O pragmatismo

O conceito de democracia como suplemento anárquico, ou como operação de desdobramento, expressa a outra linha de força (...) Mais especificamente, a ação do sujeito político, trabalhando no intervalo das identidades (cidadão ativo-cidadão passivo; cidadão-homem; identidade determinada pelas categorias jurídicas - identidade determinada pelas relações sociais; público-privado)

O pragmatismo
O pragmatismo (Foto: Reprodução/Marcelo Ramos)


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Nesta série de textos, conectados aos episódios do programa “DESENTREVISTA”, que eu apresentava junto a Gustavo Conde no site do Brasil247, perpassa duas grandes linhas de força que dialogam, se chocam, quando não imiscuem uma na outra constituindo verdadeiros paradoxos:  uma de viés identitário; outra, de caráter pragmático.

O primeiro texto, “As barbas de Marx e as revoltas antipolíticas”, é baseado num ensaio de Bruno Cava, “o 18 de brumário brasileiro”, que descreve o período das jornadas de 2013 no Brasil até o impeachment de Dilma Roussef (a analogia com o texto clássico de Marx, abordando o período pós-1848 na França, impressiona, ainda que à análise materialista marxista é contraposto o método de dramatização deleuziano). Nesse método de dramatização, a farsa e a tragédia não são modos de teatralização das forças,  modos esses sujeitos à vontade individual (a posição dos personagens não é fruto de escolha individual, restando saber de que maneira a cartografia das forças precipita os acontecimentos segundo uma tendência cômica ou trágica). Aqui não se trata mais de gêneros de representação, mas de diminuição ou aumento da potência, tendo como referência o evento, compreendido pela perspectiva da criação do novo. Se para Marx a história se repete primeiro em tragédia, depois em farsa (a chacina de 1848 e depois o registro do encadeamento dos fatos pós-1848; o teatro das forças e depois o teatro das sombras), já para Deleuze, à repetição dramática, que é própria do evento, se sucede primeiro a farsa, depois a tragédia - haveria uma ética das repetições históricas na direção da transformação da historicidade. Assim também é para Alain Badiou: o processo de construção da verdade (pós-evento) se daria através da interiorização das linhas de forças na análise, multiplicando essas linhas e selecionando as que toquem a repetição dramática – após a revolta antipolítica, haveria um processo subjetivo intervindo e empurrando os antagonismos para a mudança efetiva. O que me faz pensar nas barbas de Marx, muito mais do que no bigode de Nietzsche, em relação ao texto de Bruno de Cava, é que essa perspectiva de mudança da historicidade, de uma certa forma, ainda está presa a uma filosofia da identidade.

O texto que vem logo a seguir, “Com uma câmara na mão e uma máscara de gás na cara”, descreve minuciosamente  os pontos de vista de diversos fotógrafos ou cineastas que acompanharam de perto as manifestações de junho de 2013 no Rio de Janeiro – esses pontos de vistas fazem parte do curta de Ravi Aymara, cujo roteiro é justamente dar voz a diferentes perspectivas sob o mesmo evento.

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O conceito de democracia como suplemento anárquico, ou como operação de desdobramento, expressa a outra linha de força presente nestes textos, ou, pelo menos, em alguns deles. Mais especificamente, a ação do sujeito político, trabalhando no intervalo das identidades (cidadão ativo-cidadão passivo; cidadão-homem; identidade determinada pelas categorias jurídicas - identidade determinada pelas relações sociais; público-privado),   reconfigurando  a compreensão e a extensão dessas respectivas figuras. “Ter” e “não ter direito” são termos que se desdobram e a política é a operação desse desdobramento.

Sobretudo estamos falando de espaço nos textos “O Processo de Ódio à Democracia” e “O ato democrático”, baseados no importante ensaio de Jacques Rancière, “O ódio à Democracia” . Ao contrário de Badiou quando este fala em subjetivação imaginária ( dois outros textos deste livro  discutem “A Hipótese Comunista” de Alain Badiou: um texto cujo título é homônimo ao do livro e “Maio de 68”).  Em Badiou, a subjetivação imaginária é uma espécie de operação, integrando, no mesmo nível individual, três instâncias: o real, o simbólico e o ideológico. Na última parte de seu livro, denominada “A ideia de comunismo”, Badiou vai sublinhar que essa ideia está no campo do evento ou do Real, aqui, lacaniamente, compreendido no sentido de impossível. É nesse aspecto que o evento, ao contrário de “Estado”, abre a possibilidade daquilo que seria impossível, infinitiza as possibilidades ao invés de cerceá-las. Daí porque as verdades, conseqüências do evento, não terem sentido nenhum, muito menos histórico, apesar de Hegel tentar subordiná-las a esse sentido. O que Badiou evidencia é a operação subjetiva que imaginariamente projeta a verdade na história, o real no simbólico.

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A ideia comunista, como qualquer outra, é marcada por esse caráter do evento, que dá às verdades o caráter de inifinitização das possibilidades – fora, portanto, da circunscrição do estado, onde tudo permanece identificado, mantendo, com freqüência, pela força, a distinção entre o que é possível e o que é impossível.

A massa anônima, os sem nome, segundo Badiou, fazem parte da política de emancipação ou da ideia de comunismo (conforme Badiou, essa ideia de não pertencimento a uma classificação dominante é o que se encontra no fundamento da salvação que Rancière tenta garantir para a palavra “democracia”, muito embora, para ele, Badiou, “não estou certo de que seja tão fácil salvar essa palavra”). Mas vai ser na questão dos nomes, que Badiou, dentro da tradição lacaniana, vai se diferenciar em relação à Rancière: “porque a ideia comunista se refere diretamente ao infinito popular, justamente por isso ela precisa da finitude dos nomes próprios”. E os nomes dos indivíduos gloriosos, componentes da Ideia Comunista em suas diferentes etapas (... Blanqui-Marx-Lenin-Rosa Luxemburgo-Mao...), fazem parte de uma das funções da Ideia que é projetar a exceção no comum das existências, partilhando com os outros e se mostrando não só como exceção, mas também como possibilidade agora comum a todos, e, dessa forma, deslocando por algum tempo, as linfas de forças pelas quais o Estado prescreve o que é possível e o que é impossível.

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Dois textos, que discutem a questão do anônimo, são “A Subjetividade sem Nome” e o “Lulismo Selvagem”, baseados nos ensaios “Eu (não) sou ninguém: a subjetividade sem nome” de Giuseppe Cocco e Marcio Taschetto, e, “A Ascensão da classe sem nome” de Hugo Albuquerque. Em ambos os ensaios é sublinhada a multiplicação de nomes como estratégia de fuga em relação aos dispositivos de poder.

“Ninguém” em italiano é “nessuno” (ne ipse uno). Segundo o artigo de Peter Pal-Pelbart, de 19 de julho de 2013, para a Folha de São Paulo, uma manifestante da jornada de 2013, ligada ao MPL, teria afirmado: “escreve aí que eu sou ninguém”. Portanto, conforme o idioma italiano, “nessuno”, cuja raiz é “ne ipse uno” (negação do uno), pode ter o sentido de afirmação da multiplicidade. Por outro lado, para o idioma francês, “ninguém” é “personne”, que tanto pode ter o sentido de “ninguém” quanto de “pessoa” – nesse caso, a recusa de ter um nome próprio pode ser uma maneira de reafirmar o uno e com ele a persona (aqui, a negação da subjetividade não deixa de ser uma subjetividade).

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Isso vem bem a propósito porque, no caso de Peter Pal-Pelbart e seu grupo,  segundo o ensaio de Cocco, não se trata de  uma repressão clássica ao sentido de “junho” pelo campo disciplinar, mas dentro da subjetividade. Ao invés de ser um movimento espontâneo, horizontal e sem nome, Peter Pal-Pelbart informa, em seu artigo, que o MPL soube apartar-se daquilo que lhe soava como uma infiltração indevida (há um filtro aí, com nome e articulação, que decide até que momento o movimento de junho merece o carimbo de autenticidade e quando uma certa presença indevida é julgada como infiltração, numa velha tradição da esquerda reformista ou stalinista, destinada a expurgar elementos indesejáveis à linha que se hegemoniza).

Em “A ascensão da classe sem nome” de Hugo Albuquerque, ensaio de referência ao texto “Lulismo Selvagem”, o sem nome é assumir todos os nomes como uma forma de recusá-los (essa multiplicidade de “ne ipse uno” que não se confunde com niilismo ou ausência de força): classe C, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletário endinheirado, batalhadores... Ascensão da classe sem nome com uma potência imensa e com a capacidade de efetuar essa potência. Selvagem porque seu modus operandi é oposto a uma ascensão civilizada, a qual se caracteriza por conduta universalizável na convivência (no Brasil, isso significa: aja segundo o seu lugar, sabendo qual o seu lugar). A ascensão selvagem é uma exceção à medida, à lei universal de identificação: migra para espaços que não são os seus por direito, mas passam a ser de fato: não devemos, mas podemos. A ausência do nome, nesse caso, não é uma falta; é uma ausência que está presente, está em si, livre de assujeitamentos.

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É interessante observarmos que o referido ensaio-conferência de Hugo Albuquerque ocorreu em 06 de setembro de 2012, ou seja, quase um ano antes das jornadas de junho de 2013, o que nos leva a pensar que as jornadas possam ser o clímax de um movimento que já estava na sociedade. E o que já era observável em 2012 é o que Hugo Albuquerque chamará de proposições moleculares: justapostas às proposições molares, tais como o aumento do nível de emprego, do salário mínimo, da proporção da renda do trabalho na renda nacional, assim como os próprios ganhos não laboriais (bolsa família, pontos de cultura), observáveis no governo Lula e que poderiam ser medidas operadas dentro de uma rigidez e uma imobilidade simbólica – cada um marchando sempre pra frente -, as proposições moleculares também se faziam presente: havia um discurso que autorizava o pobre a desejar, poderia se experimentar “isto-aqui-agora”. Tratava-se de um devir-excedente dos pobres, um devir desejante, que era próprio da classe sem nome, que não se confunde nem com a classe média nem com os pobres. Esse era um fato novo que nem Dilma com seu projeto de classe média (o PT a essa altura, ainda no primeiro mandato de Dilma, parecia o Dr. Frankenstein em desespero por ter autorizado essa criatura desejante), nem a esquerda da ontologia negativa com suas regras específicas para fazer a revolução, poderiam compreender. Restou a esse monstro incompreendido a sedução da direita (não há lado de fora para o capitalismo congnitivo) ou ou controle por parte do Estado, remetendo a classe sem nome para o futuro através do regime da dívida (sou endividado justamente para procurar emprego e pagar o que devo). É na forma financeira que retorna o imperativo de saber qual o meu lugar, salvando não só o trabalho como também, consequentemente, o capitalismo. O final do ensaio de Hugo Albuquerque , como um voto de fé, acena na direção de uma aliança entre o monstro (a classe sem nome) e o nômade (produto do capitalismo cognitivo), tornando-se multidão.

“Processos de Produção” é um texto que retoma o ensaio vigoroso de Moysés Pinto Neto, “Identidade de Esquerda ou Pragmatismo Radical”, ao qual, coloco uma questão: será que, segundo o espírito do pragmatismo, também muito presente em Rancière, não se poderia estar localizado entre o pragmatismo da esquerda reformista e o pragmatismo radical? Abrir espaço maior para as pautas radicais, que estão além dos emblemas identitários, articulando tais demandas com o senso comum, mas sem perder de vista as negociações com o poder em torno de concessões e aberturas? Foi a atitude tomada pelo “Podemos” na Espanha, que é uma expressão política direta do 15-M, os indignados, que rejeitam a representatividade dos partidos e da política institucional em relação aos cidadãos. Mas como suas reivindicações nunca eram atendidas, viriam a se aventurar no espaço parlamentar, tendo sempre diante de si o dilema de como entrar nas instituições e mudar a política sem ser cooptado pelo sistema (sobre a experiência do “Podemos” e a experiência Trump, duas faces de uma mesma moeda, que é a crise da representação, dois textos: “O Podemos e suas Confluências” e “As Rebeliões das Massas”, inspiradas no livro “A Rebelião das Massas e o Colapso de uma Ordem Pública” de Manuel Castells.

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A experiência russa, sob o comando de Vladimir Putin, está documentada nos textos “Sobrecarga” e “Os Excluídos”, cuja base é o livro do jornalista russo Mikhail Zygar, “Todos os Homens do Kremlin (os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin)”.  Se considerarmos que o período abrangido é de 1999 até hoje, certamente não incluiríamos as revoltas de massa na gênese da experiência russa – elas não deixaram de dar o ar de sua graça entre 2011 e 2012, mas foram devidamente sufocadas. Todavia vamos acompanhar as metamorfoses sofridas pelo governo Putin em seu longo período de poder, vislumbrando um processo gradativo de fechamento em relação aos países ocidentais e um envolvimento cada vez maior do Estado com a igreja ortodoxa, o que nos remete ao governo pastoral.

Retomando o ensaio de Moysés Pinto Neto, cujo centro é o senso comum e o pragmatismo, não fica claro que do lulismo decorra os movimentos de 2013 no Brasil, ainda que em alguns momentos isso fique implícito, seja em função da característica comum de ambos (o hibridismo), seja pelo processo de migrações ocorrido na segunda fase do lulismo, isto é, no primeiro mandato de Dilma: a parcela universitária migrou para a esquerda cultura, segundo a qual, o impeachment de Dilma viria a ser uma violência simbólica, produto da misoginia; e segmentos populares migraram para o ativismo viral de direita (não seria absurdo pensar que a base eleitoral de Bolsonaro fosse originária do lulismo).

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É a partir das pesquisas de 2005 que nos damos conta do sucesso das políticas sociais do lulismo, promovendo a ascensão de segmentos que viviam na linha da pobreza e atacando fortemente a miséria. Essa ascensão social vai constituir as forças subterrâneas que reelegerão Lula em 2006 com uma esmagadora maioria. Dois textos deste livro vão analisar o lulismo sob perspectivas contrárias: “Tradição Crítica” e “A Esperança” (não há como deixar de considerar o conjunto de todos esses textos sob o fundo do perspectivismo político, criando espaços que permitam contar de forma oblíqua as oposições, as polaridade estilizadas, fora da lógica do insulamento, que é própria da esquerda cultura, e fora do fechamento estrutural da política partidária, da qual faz parte a esquerda reformista.

Ambos os textos (“Tradição Crítica” e “A Esperança”) têm como parâmetro o ensaio escrito por Camila Massaro de Góes, e, Leonardo Octávio Berinelli de Brito, denominado “Crise da Política Contemporânea no Brasil: notas de um debate sobre o lulismo”. Ainda que os ensaístas insistam numa complementaridade entre as análises de Francisco de Oliveira e André Singer, sobre o lulismo, o que, de uma certa forma, tende ao enfraquecimento do perspectivismo (na verdade, o ensaio está mais próximo da visão de Francisco de Oliveira), tento mostrar que entre “Hegemonia às Avessas” e “Os Sentidos do Lulismo” há uma diferença profunda: se para Francisco de Oliveira, a dimensão moderna do país (o sul) funcionaliza os aspectos arcaicos (o norte), já para Singer, o lulismo dinamiza a economia nordestina, abrindo a possibilidade, daí a esperança, de modificar o próprio cerne social que faz o capitalismo brasileiro se reeproduzir de maneira tão perversa. Mais ainda: o friso de André Singer sobre a questão da continuidade das propostas fundantes do partido e não sobre suas rupturas, sublinhando o sentido de “matização” (reformismo fraco e lento) se contrapõe ao que Fancisco de Oliveira vai chamar de “o avesso do avesso”, isto é, o partido praticando o avesso do mandato recebido nas urnas.

O devir-pobreza da classe sem nome, como é definido molecularmente por Hugo Albuquerque, estaria em conexão com o que Moysés Pinto Neto vai chamar de potência do empreendedorismo, gerando um crescimento no país através de partículas menores, a partir de estímulos microeconômicos como o salário mínimo, o bolsa família e o microcrédito – que vão gerar uma força criativa popular, característica da primeira fase do lulismo. Mas a partir do governo Dilma, o bolo parou de crescer, interrompendo a concretização de uma cidadania plena – nesse aspecto, há uma relação entre o molar e o molecular. Na segunda fase do lulismo, o empreendedorismo se agrega à teologia da prosperidade, e o fascismo recrudesce contra a esquerda cultural, gerando daí o neopentecostalismo.

Quando Moysés Pinto Neto destaca o Centro, cujos parâmetros são baseados na experiência vivida, numa perspectiva experimental e empirista, em que os erros e acertos fazem parte de um falibilismo próprio da vida, na verdade ele evidencia o que foi o lulismo em sua primeira fase, e que eu chamo de lulismo selvagem: um contexto acidentado e repleto de improvisos, cheio de plasticidade, com entrechoques inesperados, composições , recomposições e correlações insólitas de forças. Nesse sentido, experiências como a do Facebook e do Google destacam um certo espírito atual do capitalismo, comportando a diversidade e a inclusão de minorias, francamente favorável ao politicamente correto, o que será identificado por parte da esquerda como um novo nível de exploração do capitalismo. Foi essa lógica menos dogmática e mais experimental do centro, com rearranjos e novas formas econômicas gestadas a partir das tecnologias de informação, que me levou a trazer o importante ensaio de Cleyton Leandro Galvão. “Os Sentidos do Termo Virtual em Pierre Levy”, sobre o qual se estrutura o texto “Os Possíveis Sentidos do Virtual”.

Cleyton Galvão identifica em Levy um conceito de virtual ligado ao Real: a virtualização não é uma desrealização, não é a transformação de uma entidade num conjunto de possíveis, mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado  - em vez de se definir por sua atualidade ( uma solução), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. A insistência de Pierre Levy em tratar o Virtual como Real, deve-se a uma concepção medieval do trívio (gramática-dialética-retórica), em que o ato retórico diz respeito à essência do virtual, colocando questões, dispondo tensões e propondo finalidades. O ato retórico colocaria tudo isso em cena no processo vital. Nesse sentido, a invenção suprema seria a de um problema, que é a abertura de um vazio no meio do real. É evidente que esse sentido filosófico do Virtual, o faz produzir efeitos no mundo como um fator condicionante de mudanças sociais, dentro de um processo antropológico. Porém, o que condiciona o caráter plástico, fluido, calculável, hipertextual e interativo da informação, isto é, o seu caráter virtual, é a codificação digital. Dessa forma, todas as características atribuíveis ao virtual, só teriam sentido com a digitalização da informação. Considerar o virtual como significação, seja ele potencia ou informação, independentemente do suporte físico, é esquecer o seu caráter de sincronização e interconexão a outras informações na rede. É na verdade, tratar o virtual como uma espécie de não-ser, em razão de sua fugacidade, transformando-se em ato  diante da presença humana. O sentido tecnológico de Virtual foge dessa perspectiva da significação: se um texto virtual, no papel, se atualiza na leitura devido às significações atribuídas, ou seja, se transforma de virtual à atual, já na interação do usuário com um simulador de realidade, os elementos simulados continuam virtuais durante a interação – é uma interação do virtual enquanto virtual.

No sentido tecnológico, e graças à digitalização, o virtual não é um momento primitivo, nem é parte de uma evolução que procura o atual para atingir sua completude; o virtual coexiste ao atual e o acompanha no seu desdobrar-se, não sendo eliminado no advento da atualidade. Se o Real ontológico é o Virtual (sentido filosófico que Pierre Levy partilha), para Deleuze o Real seria constituído pelo atual e pelo virtual (possível), o que, de uma certa forma, vai de encontro a um sentido tecnológico do Virtual.

Esse texto, “Os Possíveis Sentidos do Virtual”, baseado no ensaio de Cleyton Galvão, vem estrategicamente após o texto “O Horror à Contradição”, que é baseado no ensaio de Marilena Chauí “Comunicação e Democracia”, onde o Virtual é usado no sentido comum de ficção, aparência, e dentro da retórica de esquerda que privilegia os tipos ideais em detrimento do caso concreto – o mascaramento da realidade social, o encobrimento das relações de poder e a exploração por meios artificiais de caráter simbólico.

Outro texto que dialoga com esses dois anteriores, “Tempo de Crise”, baseado no livro homônimo de Serres, aborda as conexões como técnicas suaves, tais como foram a revolução da escrita, a revolução do impresso e a revolução do computador – suave porque atos em escala informática (traços, marcas, signos, códigos, sentido) que revolucionaram o comportamento, as instituições , o Poder e que convidam à partilha. Já as técnicas duras referem-se à mudança das técnicas de trabalho, como a revolução industrial, e estariam mais ligadas à vontade de poder. A traição dos intelectuais estaria na resistência em reconhecer o real contemporâneo com suas rupturas e o fim do paleolítico e suas técnicas duras.

Mas se Serres acaba por abraçar de forma otimista um novo mundo, o pragmatismo de Rancière abaixo o tom dos partidários da multidão, via Toni Negri, assim como não compactua com o pessimismo de Giorgio Agamben sobre os campos de concentração contemporâneos: a sociedade é desigual e não tem em seu flanco nenhuma sociedade igual – socialismo, democracia das multidões, capitalismo financeiro prometendo para as gerações futuras uma prosperidade que vale a pena o sacrifício dos sistemas de proteção como a previdência social e as leis trabalhistas... tudo isso é fé. E confesso que muitos destes textos são banhados de fé, com exceção do pragmatismo de alguns que denunciam o ódio à democracia.

Dois textos, “A Constituição de 1988 e o STF” e “É difícil reconhecer uma travesti”, fazem parte desse rol dos textos pragmáticos: baseados no belo ensaio “O fim das ilusões constitucionais de 1988”, de Enzo Bello, Gilberto Bercovicci, e Martônio Mont’Alverne Barreto  Lima, mostram que a Doutrina Brasileira de Efetividade (doutrina constitucional pós 1988) dispunha que a constituição econômica de 1988 era uma mera norma programática, dependendo de regulamentação posterior, enquanto a constituição financeiro de 1988 seria neutra, processual e separada da ordem econômica e social (com isso a referida doutrina esteriliza  a intervenção do Estado na economia, privilegiando os interesses econômicos privados sobre a ordem constitucional e sobre as políticas distributivas e desenvolvimentistas). Todo esse processo de mascaramento será minuciosamente desvendado nos dois textos.

É o ódio à democracia, desde Platão, dirá Rancière. Mas incapaz de barrar os atos singulares e precários, aqui e agora, constituídos de relações igualitárias. A força singular da democracia se baseia justamente nesses atos.  

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