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Tem coisas que não combinam. E por não ornarem, fazem sentido. De um tempo para cá tudo é glamourizado, a começar pela ignorância. Esta raramente vem desacompanhada, apresenta-se em combo

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Tem coisas que não combinam. E por não ornarem, fazem sentido. De um tempo para cá tudo é glamourizado, a começar pela ignorância. Esta raramente vem desacompanhada, apresenta-se em combo.

Aquele ambiente tradicional, revistas de mulher-pelada, televisão no canto, páginas de jornal dos anos oitenta emolduradas com o time campeão, velhinhos hábeis nas tesouras e navalhas, foi reconfigurado. Barberchope. Nas paredes, placas de carros e de estradas gringas, cartazes de marcas famosas de motocicleta, tudo com ar vintage, menos a música. Sertanejo universitário, com sucessos da esgoelada que recentemente disse que a língua portuguesa não é melódica. Onde se esperava um folque ou roquenrou entram músicas de corno. Um combo que, admita-se, por não ornar, combina com os afetados frequentadores desses distintos estabelecimentos. Lugar de gente normal, não como as charutarias da elite, nem aqueles pés-sujos de maconheiros e pervertidos.

Arco ou tarco, era a pergunta derradeira. Nunca gostei de talco, no máximo para controle de odores dentro dos sapatênis, menos ainda de álcool, depois da barba arde, pensou o médico. Agora, na pós-modernidade caipira, as perguntas são outras. Cremes de marcas famosas, tônicos para firmar as peles, alfazemas importadas.

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Artesanal fantástica bem lupulada, monopoliza a prosa da cadeira ao lado. Dois especialistas. O que desenha a barba, a lâmina como cinzel, e o que a ele se submete, vaidoso, impávido, com o refinamento intelectual de um toco de madeira sendo esculpido, sabem tudo sobre cervejas, marcas, modos de preparação, estilos, cores e sabores. Alguns até de frutas. Típicos. Odeia esses emergentes sem-berço, conseguem ser mais chatos que os pouco viajados expertos em cepas, denominações e safras que surgiram com o acesso ao consumo supérfluo na era petista. Antes degustavam vinhos ruins, argentinos, chilenos ou, pior, da serra gaúcha. Agora já não podem mais, o dólar lá em cima, herança maldita, mudaram de gosto, dinheiro curto depois do Golpe, novos prazeres compatíveis com os bolsos, voltaram às cervejas de quintal, a maioria horrorosa. Logo retornarão aos destilados mais simples, devidamente gourmetizados, não está fácil pra ninguém. Por enquanto, os moderadamente quebrados alugam-se com gins-tônicas, louvando zimbros e outras ervas, entre cantaroladas eruditas, meteoro da paixão, rimas ricas. Que gente tosca, constatou.

Não custa os quinze pilas de outrora. O aparar de bigodes, cavanhaques e barbas, mercê dos custos agregados pelas tertúlias etílico-poéticas-eletronejas, vale mais, muito mais, dá prestígio a esses desqualificados, quase como um camarote de balada. Em barbearias chiques mulher não entra, mas em algumas há salas no fundo para certos tipos de massagem. Nesta não, é um local de gente de família, de bem, deus acima de tudo. Tem uns lugares, foi algumas vezes com outros médicos, que se configuram sínteses da contemporaneidade boçal. Barbearia, lava-motos, cervejaria artesanal no mesmo endereço. Praticamente tinders presenciais onde barrigudos, melenas desgrenhadas, bem-de-vida são disputados como troféus por hordas de quarentonas carentes. Antros de reacionarismo capiau que competem com as bizarras praças de alimentação fora de chópins e suas istritefudes com intragáveis pretensões gastronômicas, esses lugares da moda, ressignificados, com música ruim, sexo fácil e cervejas artesanais compõem os combos complementados pela repulsa aos livros.

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Na outra cadeira o rapaz retocava seu topete calopsita e ouvia recomendação sobre determinada pomada gosmenta. Ficou medonho. Vangloriava-se de ter concluído um mestrado em educação sem ter lido nenhum livro. Por duzentão um doutorando da federal escrevia seus peipers e lhe fornecia os fichamentos. Chamava-o de sócio. A dissertação ficou mais cara, quase dois contos, metade na entrega, o resto depois de aprovado, conceito A, divertia-se. Todos riam, cumprimentando-o pela sagacidade. Estudar pra quê. Ficam babando ovo de um tal de gram-chi, acho que é chinês ou norte-coreano, entre outras paulofreirices, pedagojentos. Tem que queimar mesmo todos os livros, o mundo mudou, ninguém mais lê, o trabalho já não tem mais centralidade nos dias atuais, filosofou. O barbeiro dele, mestre em computação, concordou falando em robótica e telemática. Não existe mais classe trabalhadora, operários, todos somos empresários de nós mesmos. Luta de classes nunca existiu, agora ficou claro, graças a deus. Os conceitos de esquerda e de direita foram deletados, inúteis. As disputas agora são por identidades, de gênero, de raça, explicou, didático. O médico cogitou mudar seus preconceitos, parecem gente-boa e vagamente bem informados sobre o que realmente interessa. As conversas antes eram sobre juízes, não estes desmoralizados, os do futebol e suas falhas, sobre escalações, gols de placa, fofocas da política local, ou sobre alguma vizinha exibida. Coisa antiga. Agora são sobre temas mais elevados apreendidos ao lugar-comum das rasas certezas. Não mais sobre legendárias figuras valentes nos gramados, nas torcidas ou na zona. Mitos. Já não tem importância quem está pegando quem, discutem-se alterações no mundo do trabalho, a nova política, e o que bombou nas redes sociais.

Olhos fechados, sentindo o leve frescor mentolado da espuma na face e o suave deslizar da lâmina, o doutor lembrou do barbeiro de faz tempo, que pegava a ponta do seu nariz, dedos em pinça, enquanto lhe escanhoava como ninguém o bigodinho de furar fronha de então. Era um artista da navalha, nenhum corte, as pedras, pomes e hume, desnecessárias. Na cadeira ao lado escutou a pergunta. Aceita querataze? A resposta indagativa reforçou-lhe a percepção inicial. É de comer ou de passar no cabelo? Gentinha, bestas quadradas.

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Aplausos, comemoração, felicitações. Inerte, não se brinca com uma lâmina no pescoço manejada por um piá com estética de jogador de futebol, inexperiente. Respirou fundo, olhos cobertos por toalha aquecida, tentando adivinhar de que se tratava.

Uma celebridade, sem dúvida. Vociferava, falastrão. Era o sujeito que, trajando camiseta alusiva à bandeira estadunidense, removeu a faixa em defesa da educação, substituindo-a por outra, verde, elogiando o astrólogo, na frente da Universidade. Festejavam. O barbeiro que lhe raspava o bigode era o mais excitado. Imoderação generalizada, uma situação momentaneamente crítica.

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Hoje é por conta da casa, gritou lá do caixa o gerente. Imagine, não fiz mais que minha obrigação de patriota. E pode escolher uma cerveja artesanal, lavou nossa alma. Tem que acabar com aquela universidade ideológica.

Muita coisa está diferente. Nas barbearias, também. Precisa rever seus conceitos, ser mais tolerante. O que teoricamente não deveria ornar acaba combinando. Um combo disfarçando as aparências. Ao fundo, um clipe do clássico contemporâneo. Harmoniza. Milhares de vozes entoando, em coral. Evidências.

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