Quando perder é ganhar

"Ontem, o Brasil real obteve uma vitória espetacular, épica, dramática, histórica, decisiva, exuberante, corajosa, profunda, delicada e, esplendorosamente, definitiva", provoca o colunista Gustavo Conde diante da 'derrota' da seleção brasileira para a Bélgica nas quartas de final da Copa do Mundo da Russia; Conde acredita que a derrota no futebol fará muito bem ao jogo real da democracia brasileira

Quando perder é ganhar
Quando perder é ganhar (Foto: Reuters | Arquivo | Ricardo Stuckert)


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A crônica esportiva brasileira, involuntariamente serviçal do Grupo Globo de Jornalismo, sacraliza demais a Copa do Mundo desde o nosso grande trauma fundador, o Maracanazo.  

A derrota de 2 a 1 para o Uruguai na final de uma copa realizada em casa, em 1950, marcou definitivamente a relação do brasileiro – a partir dali, eterno ‘vira-lata’, na visão de Nelson Rodrigues – com o futebol e com a identificação patriótica de segunda classe.

O Maracanazo é nosso mito futebolístico fundador mais profundo, muito mais do que o ‘Mineirazo’, até porque os 7 a 1 ainda não foram devidamente ‘assentados’ pela história e pela memória do trauma distante no tempo.

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Essa visão fantasiosa da relação do brasileiro com a seleção de futebol é mãe e pai de todos os nossos chiliques e traumas políticos e existenciais. A elite brasileira viu ali, naquela catástrofe do Maracanã, uma oportunidade única para instaurar uma narrativa de patriotismo domesticada sob seus auspícios mais ambiciosos. E ela foi muito bem sucedida em seu intento.

Esse trauma fundador oriundo do mundo do futebol é que promove o complexo descasamento entre fantasia e realidade na cena política e social do Brasil. A partir dali, o brasileiro jamais foi o mesmo, arrasado que estava diante de um pequeno país que um dia até figurou nas fronteiras do império brasileiro. Era densidade simbólica demais para o debate público da época resistir e disputar sentidos.  

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Desde então o brasileiro nasceu, cresceu e morreu achando que torcer pela seleção era um ato patriótico. O sentido de patriotismo migrou furiosamente de sua matriz original e revolucionária para um beco carnavalesco, mesquinho e a serviço de um conglomerado de mídia. Toda a crônica esportiva foi arrastada por essa lógica, fazendo mesmo um imenso simulacro do suposto ufanismo de Nelson Rodrigues.

‘Suposto’, porque Nelson era muito mais e muito maior que um mero cronista esportivo. Nelson é um dos maiores dramaturgos do mundo, um autor que se um dia for devidamente traduzido com o destaque que merece para línguas do protagonismo cultural e econômico, será considerado um divisor de águas na compreensão do humano e do social – Nelson é um passo além de Freud na descoberta de um novo mundo habitante das profundezas da subjetividade.

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De sorte que é preciso todo esse preâmbulo para o argumento que arrisco desovar nestas parcas linhas digitais: neste momento específico da vida simbólica do brasileiro, ‘perder’ é sinônimo de ‘ganhar’.

Quanto mais imerso na fantasia grotesca que é uma Copa do Mundo para o brasileiro domesticado, mais o país real iria afundar no terreno obscuro da condição de ser um pária global.

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A equação continua sendo clara: ou o Brasil acaba com a Globo ou a Globo acaba com o Brasil. A domesticação do brasileiro atingiu níveis insuportáveis de violência cognitiva nesses últimos cinco anos de massacre midiático.

Esse massacre foi, evidentemente, uma resposta à soberania construída nos governos do PT – e por isso a Copa do Mundo da Russia é um evento tão político para a nossa auto compreensão de turno. A soberania de espírito do brasileiro é uma ameaça terrível a esta lógica narrativa deturpada que impera desde 1950, com os cumprimentos do nosso ‘Maracanazo mental’.

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A busca desesperada por essa retomada narrativa é que norteou todo o protocolo envolvido na participação do Brasil nesta Copa do Mundo. A conexão Itaú-Globo, os artífices-sênior do golpe, estava impregnada no toma-lá-dá-cá de cachorro grande que definiu o acordo de transmissão televisiva Fifa-CBF.

Cada jogo do Brasil em uma Copa do Mundo significa, mais ou menos, R$ 500 milhões de reais para os cofres da Globo, nos valores agregados um tanto difusos da emissora, que vão desde cotas de patrocínio ao faturamento indireto, baseado em audiência e ramificações regionais de produtos associados a esse ‘Brasil fantasístico’ de laboratório.

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É por isso que Galvão Bueno é o maior salário da Globo. É por isso que ele se esgoela tanto e delimita a dicção narrativa ufanista da emissora que controla os sentidos do país. É por isso que os manifestoches estão indelevelmente associados ao golpe e ao uniforme amarelo da seleção.

Essa associação, tão lindamente narrada pela Escola de Samba Paraíso de Tuiuti no começo deste inglorioso ano, foi e é extremamente perigosa para o nicho de controle narrativo deste parasita que suga toda energia psíquica do brasileiro.

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Esta soma de elementos e efeitos simbólicos foi desencadeada: 1) pela democratização da informação - realizada ainda que de maneira incipiente nos governos do PT -, 2) pela internet, 3) pelo crescimento econômico da década 2003-2013 e 4) pela inclusão massiva de estudantes no ensino superior. Ela, no entanto, só tomou a forma completa de ‘erupção de um vulcão’ com o golpe de 2016.

O golpe trouxe o horror gerencial e de soberania, mas trouxe também o desmascaramento do nosso processo atávico de domesticação simbólica. É o efeito colateral do golpe que, fatalmente, irá levar para a já lotada lixeira da história brasileira, a emissora do Jardim Botânico e todas as suas ‘afiliadas regionais’: as empresas Folha de S. Paulo, Estadão e, é claro, O Globo.

De maneira que, neste momento da nossa história, ‘perder’ um jogo de quartas de final em uma Copa do Mundo é sinônimo de ‘ganhar’ um jogo narrativo de quartas de final eleitoral e de soberania democrática. Ontem, o Brasil real obteve uma vitória espetacular, épica, dramática, histórica, decisiva, exuberante, corajosa, profunda, delicada e, esplendorosamente, definitiva.

Temos, claro, que agradecer a excelente seleção da Bélgica por esta dádiva gloriosa, compartilhada com os deuses do futebol que nos observam do alto de um Maracanã histórico e celestial que já não existe mais.

Se o nosso cárcere espiritual nos foi oferecido mediante uma derrota épica nos campos de futebol, nossa libertação pode também ser alcançada através desta mesma metáfora fundadora e impactante.

É a superação de um trauma. É o primeiro passo para a reconstrução da nossa soberania de espírito.

Ontem, o Brasil conquistou uma das mais importantes vitórias da sua história.

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