A linguagem das alianças políticas

"Se fôssemos fiar a nossa posição política na intolerância de sinal trocado, a repulsa ad infinitum dos atores coadjuvantes de um golpe de estado tão covarde quanto autoral, ficaríamos presos na cela agônica do esquecimento político e da incomunicabilidade histórica", diz o linguista Gustavo Conde sobre a incompreensão acerca dos acordos partidários do campo progressista; para Conde é preciso ousadia e  coragem para romper com a lógica eleitoral, mas é preciso disciplina e lealdade para respeitar decisões colegiadas e compreender, afinal, o que é um partido político

A linguagem das alianças políticas
A linguagem das alianças políticas (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)


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Um dos grandes erros que a nossa linguagem nos oferece como efeito colateral grátis é a crença de que o ser humano é uma unidade imutável de sentidos do nascimento à morte.

Do nada, esquece-se na maior tranquilidade que todos mudamos todos os dias e que não somos iguais àquilo que fomos ontem.

O regime de mudanças perenes do qual somos feitos, no entanto, não proíbe que se preservem certos princípios e certas premissas ao longo da vida. O que, também, por sua vez, não é suficiente para que se impeça mudanças no olhar, no corpo, no trauma e na pulsão de vida e de morte.

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A intolerância nasce aí. Sentimos repulsa por algo que não compreendemos. Sentimos repulsa – tomados pelo delay histórico que nos escapa – a tudo que não seja a ração previsível de turno, tão emocionais que somos, até para operarmos contra nós mesmos a todo o momento, com rara competência.

Pôr o pescoço para fora dessa selva autodestrutiva não é trivial. Requer vivência, humildade, sorte, algum talento, enfim, essas coisas imponderáveis da existência.

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A linguagem é traiçoeira com quem a subestima. Muito mais que os sujeitos que a usam. Muito mais que as instituições que a deturpam. Muito mais que os credos que a contemplam.

Parte da insuportabilidade residual associada à figura de Lula decorre daí. Ele não lida com a linguagem e com os seus usuários de maneira simplista e carregada das cifras do imutável.

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Lula e alguns poucos outros indivíduos da história presente e passada – dentre os quais eu não tenho a pretensão de me incluir – são capazes de pensar a própria linguagem e o coletivo de maneira singular, em um espaço de formulação de ideias e de sentidos onde a mera gramática não é nem capaz de se aproximar.

Posso dizer da média altura em que me encontro na arte dos estudos linguísticos: todo e cada ser humano é um poço infinito de contradições selvagens (e o inconsciente é minha salvaguarda empírica para tal afirmação).

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O ser humano que, para o desejo e para a história é um sujeito, passa sua vida natural tentando domar essa força simbólica que lhe atravessa o modesto e frágil juízo, também chamado de ‘eu’.

Por isso, o sujeito não goza de uma identidade garantida e unívoca. O sujeito é múltiplo, é a coletividade encarnada, é a transversalidade, utópica ou não, dos desejos passionais, sentimentais e políticos. Quando um sujeito dá esse salto na compreensão de si mesmo, tão raro quanto sutil, sua vida passa a ser infinita e extremamente poderosa.

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A linguagem, portanto, não é um fim em si mesma. A linguagem sequer é idêntica a si mesma (palavras da linguista Francesa Jacqueline Authier-Revuz). O sujeito é mais importante e deve usar a linguagem para significar a si mesmo, não para ser seu escravo dócil e compreensivo.

O sujeito é um fazedor de linguagem, é a usina real que fornece todo o substrato simbólico e material que rege a atividade linguageira das sociedades ao longo da história.

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Não entender uma aliança política é só um detalhe nessa imensa travessia que é o gerenciamento das subjetividades políticas e sociais que se desenrolam pelas sociedades ao custo de muito sangue e muitas vidas.

Não aceitar um acordo que reestabelece uma realidade ampla de ação e que, evidentemente, impõe limites para que essa realidade seja alcançada, é apenas o processo natural que a língua e seus protocolos autoritários impõem aos usuários embevecidos nos próprios desejos pontuais.

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Não tolerar uma ação chancelada por um coletivo e apontar para uma nova realidade política mais ampla e impregnada da ideia de construção, com todos os erros que possam habitar essa ação, é tão somente servir e fortalecer um inimigo que rasteja de tão fraco e que, afinal de contas, merece um acalento humilhante para recobrar as forças (já que vencer um inimigo derrubado pela 'pedra' da opinião pública seria uma vitória destituída de glória, como diria Aquiles a Heitor).

Sejamos democráticos até nisso, sem medo da ironia insinuante. O inimigo da civilização que se instalou neste portentoso país da América do Sul está fraco demais para reagir e valorizar sua derrota histórica, política e eleitoral. Fortaleçamo-lo para devastá-lo, tal como Muhammad Ali fez com George Foreman, em 1974, no Congo.

Em tempo e acerca do delírio de imutabilidade que se alastra no simplismo do ser: crer que o ser humano-sujeito não tem a chance de se autoinventar é o suicídio moral por excelência.

Em um país tomado por golpistas de norte a sul, de leste a oeste, a opção alternativa àquela (da autoinvenção) é um oceano de sangue e de morte, a negação da existência tão bem trabalhada por nossos inimigos de turno e de civilização.

Se fôssemos fiar a nossa posição política na intolerância de sinal trocado, a repulsa ad infinitum dos atores coadjuvantes de um golpe de estado tão covarde quanto autoral, ficaríamos presos na cela agônica do esquecimento político e da incomunicabilidade histórica.

O tecido que compõe o conjunto das identidades de uma sociedade imensa como a brasileira é móvel e acelerou seu deslocamento neste período eleitoral. Não há porque querer a manutenção das identidades pré e pós golpe. Esse universo se estilhaçou.

Os tempos, no entanto, de estilhaçamentos identitários não são iguais para todo mundo. Cabe aos que buscaram antes a reciclagem ideológica possibilitada pelo golpe, receber o levante social – e político – que está à deriva.

Em português claro: a esquerda brasileira foi fortemente re-significada pelo golpe fracassado de direita. Administrar essa nova distribuição de sentidos políticos não é uma tarefa secundária: é uma tarefa imensa e investida de muita responsabilidade.

Para que a mudança social e política aconteça é preciso antes operar uma mudança dentro de si, caso contrário novos tempos jamais virão.

O tempo, por sua vez, político, histórico e subjetivo, não é a cronologia matemática dos meses e anos. O tempo é o tempo dos sentidos. Agarrar-se a dogmas do passado é aprofundar o tempo perdido – e roubado – de um golpe que ainda não terminou – tal é a deturpação que lhe toma de assalto, inclusive o conceito.

O que nos foi roubado, portanto, foi o tempo e a única maneira de recobrar esse tempo é dar uma chance aos ponteiros-sujeitos de avançarem e modificarem sua posição anterior. Ou seja: é preciso não apenas operar mudanças na compreensão política, mas, antes, é preciso recebê-las e saber recebê-las.  

A narrativa precisa do tempo para sobreviver. No caso da narrativa brasileira, o tempo nos foi usurpado. Nós estamos paralisados no tempo e no espaço (o retrocesso social ocorre em função de um ‘avanço ao passado’, do ponto de vista semiótico, uma vez que não é possível de fato ‘voltar’ no tempo).

A ação para sair da paralisia, no entanto, está confiscada (está presa em Curitiba). É preciso recobrá-la e isso só se dará com a mobilidade política, ou seja: é preciso enfrentar as fobias que levam a tarja aterrorizante do golpe e aprofundar a reestruturação de nossa democracia e de nossa cultura política, via instrumento eleitoral.

Isso demanda coragem Isso demanda clareza. Isso demanda desprendimento. Isso demanda humildade. Isso demanda responsabilidade. Isso demanda perdão.

O país jamais irá se reencontrar se o perdão não acelerar também seu fatal reencontro com a história. O inimigo está mais do que claro e ele agoniza em praça pública: Globo, PSDB, MDB, STF e setores conservadores não conseguiram construir uma opção democrática para dar sequência ao seu golpe multifacetado.

O restante da sociedade brasileira está esperando o perdão para poder se juntar ao segmento guerreiro que ficou na linha de frente da devastação social e política e que não pode querer o protagonismo só para ele.

Nós estamos a apenas 65 dias das eleições mais importantes de toda a nossa história. Que as nossas paixões particulares não atropelem o imenso amor pelo país que emana de todos nós, que emana de um projeto, que emana de passado recente, que emana de um povo, que emana de um homem a quem devemos imensa gratidão.  

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