Vale: uma Chernobyl para chamar de nossa

Se uma catástrofe social e ambiental como a de Mariana (deixando 19 mortes, dezenas de famílias desabrigadas, 700 km de devastação no Rio Doce e danos ambientais e econômicos irreparáveis, atingindo sobretudo as pessoas mais pobres) é seguida por outra ainda maior em vidas ceifadas, como viverão mineiras e mineiros a partir de agora, cercados por cerca de 700 barragens como as que estouraram em 2015 e 2019? Dessas, trezentas, segundo apuração do portal G1, não são consideradas seguras

Vale: uma Chernobyl para chamar de nossa
Vale: uma Chernobyl para chamar de nossa (Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros)


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Desde a última sexta-feira (25), mineiras e mineiros que ainda não tinham se dado conta do perigo de viver à sombra de cerca de 700 barragens de minérios espalhadas por todo o estado, agora estão apavoradas/os. Afinal, se o caso de Mariana, em 2015, poderia ter restado como uma tragédia fortuita, causada, sim, pela negligência da Samarco (holding da Vale com a australiana BHP), mas improvável de se repetir, essa crença caiu por terra quando outra barragem, agora administrada diretamente pela Vale, ruiu levando mais vidas que o crime anterior. São, até a manhã deste domingo (27), 37 mortes confirmadas, mas desaparecidas/os que variam entre 252, segundo a mineradora, e 299, de acordo com o Corpo de Bombeiros.

Conforme afirmou este colunista em reportagem para Plurale em Revista, publicação online e impressa especializada em meio ambiente e direitos sociais (www.plurale.com.br), quem se acostuma com coberturas desse tipo costuma saber que entre pessoa “desaparecida” e “morta” vai uma grande diferença formal, a princípio, mas que vai se estreitando na prática. Embora torçamos para que não, é provável que esses números se cruzem com o passar dos dias. Outra coisa que vale lembrar é que, quanto mais distante ficamos do dia do desastre, mais improvável se torna a localização de sobreviventes. Geralmente, as primeiras 24 horas são aquelas de mais sucesso no salvamento de vidas, justamente quando localizaram 46 pessoas ilhadas em meio à lama, na tarde deste sábado (26). Essas horas, agora, já se foram.

Se uma catástrofe social e ambiental como a de Mariana (deixando 19 mortes, dezenas de famílias desabrigadas, 700 km de devastação no Rio Doce e danos ambientais e econômicos irreparáveis, atingindo sobretudo as pessoas mais pobres) é seguida por outra ainda maior em vidas ceifadas, como viverão mineiras e mineiros a partir de agora, cercados por cerca de 700 barragens como as que estouraram em 2015 e 2019? Dessas, trezentas, segundo apuração do portal G1, não são consideradas seguras.

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A escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do prêmio Nobel de Literatura em 2015 e reconhecida por seu trabalho sobre a memória dos povos que integravam a antiga União Soviética, relatou em seu livro “Vozes de Tchernóbil (grafia do tradutor)” o sofrimento do povo ucraniano após o desastre da usina nuclear de Chernobyl, na cidade de Prypiat, em 1986. Uma citação de uma de suas testemunhas é marcante, quanto ao que pode ocorrer à população mineira a partir de agora: “Para uns, Tchernóbil é uma metáfora, um símbolo. Para nós, é a nossa vida. Simplesmente a vida. ”A radiação de Chernobyl, conforme a obra, teria deixado não apenas a devastação física e os corpos definhados em leitos de hospitais, mais impregnado a alma de quem sobreviveu e contaria a história do então pior desastre social e ambiental causado pela negligência humana na história moderna.

Hoje, o crime da Vale supera os impactos imediatos Chernobyl, em números de vidas levadas e em danos ao meio ambiente. Se somados 2015 e 2019, intervalo que será mero capricho histórico daqui a um século, serão centenas de vidas levadas pela lama de rejeitos de minério, ao passo que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece 56 mortes na tragédia ucraniana (47 trabalhadoras e trabalhadores da usina e de hospitais e nove crianças com câncer). São, ainda, 700 quilômetros de devastação ao ecossistema do Rio Doce e sua vegetação ciliar, mais biodiversa e ampla que a do Rio Prypiat, contaminado pela radiação.

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Há pesos e contrapesos. Chernobyl possivelmente ainda será maior em número de pessoas indiretamente afetadas, sendo imprecisos os números de incidência de câncer na Ucrânia e na Bielorrúsia (Prypiat era cidade de fronteira), variando de quatro a 93 mil mortes desde 1986 (há outras causas diversas de câncer cuja incidência é alta no leste europeu, como o índice de fumantes e usuárias/os de outras drogas). Não se sabe, por outro lado, que danos de longo prazo Mariana e Brumadinho pode causar à saúde das pessoas. E se a bacia do pequeno manancial no leste europeu não é tão importante quando a dos rios Doce e das Velhas, o caso brasileiro, porém, não imporá por décadas a restrição de acesso às áreas atingidas, sob risco de contaminação.

Fato é: temos uma Chernobyl para chamar de nossa. E com tantos avanços sociais e econômicos que o Brasil experimentou nos últimos 30 anos, retornamos a patamares internacionais dos anos 1970/80, quando o mundo vivia sob focos de tensão internacional entre ocidente e oriente (e temos na Venezuela o nosso Vietnã), questões de equidade social e identitária ainda engatinhavam (e temos em Marielle Franco a nossa Luther King) e os interesses econômicos e militares se sobrepunham facilmente à necessidade de preservação do meio ambiente (bem… aí está a Chernobyl). O cenário internacional nos acompanha, mas o Brasil aparece na vanguarda.

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Hoje, o exemplo é de que a voracidade por lucros do capital especulativo, que começa na privatização da Companhia Vale do Rio Doce em 1997, subfaturada para enriquecimento de poucos compradores e acionistas, produz efeitos sociais, ambientais e econômicos iguais ou mais danosos que a suposta ineficiência estatal. Isto, principalmente, onde reina o compadrio e, portanto, os órgãos e agências reguladoras
fazem vistas grossas para a negligência quanto a procedimentos de segurança. As mineiras e mineiros atingidos física e psicologicamente pelos crimes ambientais de Mariana e Brumadinho levarão em suas almas a marca da lama de minérios e do apetite insaciável da exploração das riquezas naturais pelo capital privado.

O ser humano retrocedeu, nesta segunda década do século XXI. Porém, o retrocesso encontra sua quintessência num país historicamente predado pelas potências internacionais, aberto por suas elites a toda sorte de pilhagem e pirataria que resulta em descaso, tragédias, mortes e destruição, para que logo o capital desvie suas atenções para outros postos e fontes de riqueza. Os trabalhadores mortos pelo minério de ferro de Brumadinho e Mariana são os negros escravizados pelo ouro de Vila Rica e São João del-Rei no século XVIII, ou os índios exterminados pela exploração do pau-brasil e o plantio de cana-de-açúcar nos primórdios do Brasil.

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A população (principalmente rural) mineira que restará da tragédia, será tão ameaçada e sobrevivente quanto as demais minorias historicamente abusadas e exploradas desse país.

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