Precisamos falar de jurisdição

Independente de acertada ou não, a decisão do desembargador Favreto jamais poderia ser cassada da maneira abominável como foi. Abominável é, também, a tentativa da procuradora-geral da República de tentar criminalizar a decisão judicial - afrontando a independência da magistratura

Precisamos falar de jurisdição
Precisamos falar de jurisdição (Foto: Sylvio Sirangelo)


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A palavra jurisdição – etimologicamente – vem de jurisdictio, formada de jus, juris (direito) e de dictio, dictionis (ação de dizer, pronúncia, expressão), traduzindo a ideia de “ação de dizer o direito”. Sendo assim, segundo TOURINHO FILHO, jurisdição é definida como a “atividade constante, por meio do qual o Estado, pelos seus órgãos específicos, provê à tutela do direito subjetivo, aplicando o direito objetivo a uma situação litigiosa concreta”.[1] A jurisdição, também, é compreendida como o conjunto de atos praticados pelo juiz (Estado) dentro do processo. 

A jurisdição surgiu como uma necessidade jurídica para impedir que a “autodefesa”, muitas vezes imoderada e desproporcional, causasse danos irreparáveis a sociedade, bem como para garantir equilíbrio no meio social. Não é sem razão que “fazer justiça pelas próprias mãos” é crime. 

Como poder, diz TOURINHO FILHO, a jurisdição “é uma emanação da soberania nacional. Como função, a jurisdição adequada é aquela incumbência afeta ao juiz de, por meio do processo, aplicar a lei aos casos concretos. Finalmente, como atividade, a jurisdição é toda aquela diligência do Juiz dentro no processo, visando a dar a cada um o que é seu”. 

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Não foi sem razão que LUIGI FERRAJOLI[2] em seu sistema garantista apresentou, além das garantias no âmbito do direito penal, múltiplas garantias de ordem processual penal em seus conhecidos axiomas garantistas. Dentre estas garantias destaca-se aqui a do “nulla poena sine judicio” ou “não há pena sem processo”. Neste caso, como assevera uma vez mais GERALDO PRADO, processo não significa qualquer tipo de processo. “A condição de método de definição da responsabilidade penal do imputado reclama que o processo seja concebido a partir de uma perspectiva analítica que considere sua função e finalidade”. 

A principal garantia do processo penal origina do axioma “nulla culpa sine iudicio” – da submissão à jurisdição - da qual derivam os demais pressupostos garantistas. FERRAJOLI traz à baila o conceito de submissão à jurisdição em sentido lato e a submissão à jurisdição em sentido estrito. Segundo FERRAJOLI, a primeira enunciação legal do princípio de submissão à jurisdição se encontra no parágrafo 39 da Magna Charta de 1215: “Nullus liber homo capiatur vel impresonetur aut dissaisiatur aut utlegatur aut exuletur aut aliquo modo destruatur nec super eum ibimus nec super eum mittemus nisi per legale iudicium parium suorum vel per legem terrae”. Desta formulação clássica extraem-se três garantias fundamentais: i) o habeas corpus contra restrições arbitrárias da liberdade individual e, também, para combater, de modo geral, as punições e intervenções autoritárias lesivas ao direito; ii) a reserva da jurisdição em matéria penal, ou seja, confiar a investigação e a repressão dos delitos ao “juízo legal”, imparcial e independente; iii) a presunção de inocência.[3] 

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De acordo com FERRAJOLI, “nulla poena”, “nullum crimen” e “nulla culpa sine judicio” exprimem o princípio de “submissão à jurisdição em sentido lato”. Enquanto, “nullum iudicium sine accusatione”, “sine probatione” e “sine defensione” formam o princípio de “submissão à jurisdição em sentido estrito”. Concluindo, o jurista italiano, afirma que: “enquanto a submissão à jurisdição em sentido lato é exigida em qualquer tipo de processo, tanto acusatório como inquisitório, a submissão à jurisdição em sentido estrito supõe a forma acusatória de processo, ainda que nela não esteja pressuposta”.[4] 

A barafunda jurídica do último domingo (8/7)  causada pela decisão do desembargador Federal ROGÉRIO FAVRETO, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que concedeu ordem de habeas corpus determinando a imediata soltura do paciente LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA deve - como toda e qualquer decisão judicial - ser analisada sob a ótica jurídica e não, como fez os grandes meios de comunicação, sob o viés da política partidária. 

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O imbróglio causado pelo “vai e vem” de decisões colocou em xeque a funcionalidade do sistema de justiça criminal. Neste contexto, como observam CASARA e MELCHIOR, “é preciso que as agências estatais que integram a justiça penal atuem com o objetivo de construir a solução justa do caso penal”.[5] 

Mais adiante, CASARA e MELCHIOR asseveram que “é imprescindível que todas as instituições que façam parte do sistema de justiça criminal atuem em estrita vinculação à legalidade e que, neste sentido, sigam severamente as regras e procedimentos legalmente estabelecidos, sob pena de se ceder espaço ao abuso do poder estatal”.[6] 

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A jurisdição é um direito fundamental. Direito fundamental, no dizer de AURY LOPES JR., “de ser julgado por um juiz, natural (cuja competência está prefixada em lei), imparcial e no prazo razoável.” [7] 

Mais adiante, o r. processualista, refere-se ao “princípio da inércia da jurisdição”, segundo o qual “o poder somente poderá ser exercido pelo juiz mediante prévia invocação. Vedada está a atuação ex-officio do juiz (daí o significado do adágio ne procedat iudex ex-officio)”. 

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A decisão do desembargador Federal ROGÉRIO FAVRETO, como é sabido, acabou sendo, indevidamente, cassada pelo juiz SERGIO MORO (13ª Vara Federal de Curitiba), e pelos desembargadores JOÃO PEDRO GEBRAN NETO (relator  da apelação no TRF-4) e CARLOS THOMPSON FLORES (presidente do TRF-4) que bateu o martelo e, sob o manto de um inexistente “conflito positivo de competência” e em nome de uma obscura “segurança jurídica”, fez prevalecer a decisão do desembargador GEBRAN NETO, determinando que o paciente LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA permanecesse preso.

Muitos ficaram abismados com o fato do juiz da 13ª Vara Federal SERGIO MORO ter se manifestado nos autos estando de férias em outro país. Contudo, se este episódio, por si só, chama a atenção, o que realmente causa espécie é o fato de o juiz de piso ter dado um despacho em processo que ele não mais tem jurisdição e nem competência no feito. O argumento de que foi citado no habeas corpus e na decisão é raquítico e insuficiente para dar ou devolver jurisdição ao magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba.

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Frise-se que o desembargador ROGÉRIO FAVRETO era o único, entre todos que se manifestaram, que detinha jurisdição e competência para decidir. 

Por tudo, independente de acertada ou não, a decisão do desembargador FAVRETO jamais poderia ser cassada da maneira abominável como foi. Abominável é, também, a tentativa da procuradora-geral da República de tentar criminalizar a decisão judicial - afrontando a independência da magistratura - requerendo que FAVRETO seja investigado de pelo crime de prevaricação (art. 319 do CP).

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Notas e Referências

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, v. 2, 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 77 e segs.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica e alt. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[5] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 107.

[6] Idem, p. 108.

[7] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, volume 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 427-428.

 

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