Carta aberta a Michel Temer

Enquanto o ódio e da intolerância se intensificam em um país que já foi famoso por sua cordialidade e seu respeito às diferenças, o senhor continua destruindo uma parte de nossa história a quem der mais

michel temer
michel temer (Foto: Lúcia Helena Issa)


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Há algum tempo, depois de viver por mais de seis anos na Europa, decidi voltar a morar no Brasil, a pátria que amo e o país em que nasci, neta de sírio-libaneses, assim como o senhor.

Voltando a viver aqui, há alguns anos, fui descobrindo um Brasil mais inclusivo, com muitos problemas ainda, mas com milhões de pessoas deixando a fome e a miséria desumanas, com jovens negros tendo a chance de estudar em uma universidade pública, uma senhora que havia trabalhado na casa da minha mãe na minha infância e de quem eu gosto imensamente, comprando sua casa própria, as pessoas tendo mais sonhos e sendo atendidas com dignidade pelo programa Mais Médicos.

Celebrei a chegada das cotas universitárias porque acredito que temos uma dívida social histórica para com os jovens negros, celebrei programas sociais como o Bolsa Família, semelhantes a programas que vi na Itália e que dão dignidade a milhares de italianos muito pobres (sim, eles existem e são muitos), percebi, com alegria, a mudança que esses programas brasileiros significavam para os nossos irmãos mais pobres.

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Mesmo que ainda tivéssemos injustiças abissais e uma mentalidade escravocrata e bastante segregadora por parte de muitas pessoas com quem eu convivi, o Brasil estava lentamente mudando, combatendo a desigualdade social e olhando sem medo para os seus filhos mais sofridos.

Como alguém que sonhava desde criança com um Brasil em que outras meninas tivessem as mesmas oportunidades que eu tive e que via um oceano de mudanças sociais pela primeira vez, eu acreditei que ninguém mais poderia nos deter, ninguém poderia nos impedir de avançar, e ninguém poderia nos conduzir de volta ao passado.

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Eu estava errada.

Quando descobrimos o Pré Sal, eu estava em Roma por algumas semanas, entrevistando algumas mulheres para o livro que estava escrevendo, quando um amigo italiano com quem eu almoçava na Piazza di Spagna, me disse:

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- Lucia, ninguém mais segura o Brasil, o gigante do Hemisfério Sul, um país que está combatendo a desigualdade social, rico em biodiversidade, em minério de ferro e agora também com petróleo! Ninguém pode deter o Brasil, o futuro pertence a vocês!

Ao ouvir as palavras de meu amigo romano, muito mais velho e mais experiente que eu, uma esperança imensa, daquelas que chegam devagarinho pelas bainhas da alma e logo inundam o corpo inteiro, foi semeada em meu coração.

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Alguns anos anos depois daquela tarde em Roma, quando o senhor, Michel Temer, já havia executado ao lado de Eduardo Cunha, o Golpe que o levou ao poder, recebi uma mensagem de meu amigo italiano perguntando se era verdade que o Brasil iria abrir mão do Pré Sal e leiloar nossa reserva petrolífera para que empresas estrangeiras a explorassem.

Tomada por uma imensa tristeza, disse que era verdade, que o Brasil estava vendendo a preços irrisórios uma das maiores reservas de petróleo do mundo, que havíamos chegado a mais de um milhão e seiscentos mil barris de petróleo por dia e a produção continuava crescendo, mas que estávamos entregando tudo às multinacionais.

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Ele parecia tão perplexo e tão triste quanto eu.

Os italianos, que sempre amaram o Brasil como um país que acolheu milhões de calabreses, sicilianos e napolitanos em suas terras, agora haviam aprendido também a respeitar o Brasil como uma futura potência energética.

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A forma como os italianos viam o Brasil havia mudado nos últimos anos, com as mudanças sociais efetivas, com uma postura menos subserviente aos EUA e meu amigo, um experiente jornalista romano, não conseguia entender como o Brasil, depois do Golpe, podia ter retrocedido tanto em tão pouco tempo.

Conversamos sobre a tragédia que isso significava para as futuras gerações e me lembro, como se fosse hoje, do que ele me contou sobre a Noruega, país onde vivera por 8 anos.

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'Lúcia, a Noruega foi sempre um dos mais pobres do continente, até que, nos anos 70, ela descobriu petróleo no Mar Negro. Os noruegueses administraram bem essa descoberta, rejeitando todas tentativas dos americanos de explorar as reservas norueguesas. O lucro que eles obtiveram com os nove bilhões de barris de petróleo foi investido em escolas, universidades e em oportunidades para os noruegueses mais pobres e hoje a Noruega tem uma das melhores qualidades de vida e o melhor IDH do mundo. A Noruega não nasceu como você a conhece hoje, era um lugar com imensos problemas sociais. A Noruega fez a coisa certa, mas a Nigéria, que entregou suas reservas para os EUA, mergulhou na mais profunda miséria'.

Jamais esquecerei daquela tarde em Roma porque foi o momento em que eu percebi de fato que o senhor e seus asseclas, um grupo de homens mesquinhos e denunciados por corrupção e lavagem de dinheiro, haviam sequestrado o Brasil e que o resgate teria um preço altíssimo, seria um processo longo e poderia nos levar ao caos em que nos encontramos hoje.

Eu ainda não conhecia todos os aspectos de sua escorregadia personalidade e ainda não conhecia todos os crimes dos quais o senhor seria acusado meses depois. Corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de justiça.

Mas já havia visto o suficiente de suas limitações e pequenas covardias, como não comparecer ao encerramento das Olimpíadas por medo de ser vaiado, e já havia ouvido o suficiente de suas mesóclises medievais e seus discursos machistas e vazios, para, como escritora, mulher e brasileira, sentir uma imensa vergonha do senhor.

Enquanto o senhor afirmava e que jamais havia praticado atos ilícitos, o empresário Joesley Batista afirmava, em sua delação que realizou entre 2010 e 2017, a pedido do senhor, pagamentos que chegavam a 3 milhões de reais em propinas. Outras denúncias vieram, mas o pior ainda estava por vir.

O senhor conseguiu aprovar um insano congelamento dos gastos públicos com Educação e Saúde por 20 anos, uma medida inédita no mundo, o senhor extinguiu programas como o Ciência Sem Fronteiras, o Farmácia Popular, que fazia uma diferença imensa na vida de muitos brasileiros, o senhor esquartejou a FUNAI, mudando com a ajuda do STF, o procedimento para a demarcação de terras indígenas, como se não bastasse todo o sofrimento imposto aos nossos irmãos indígenas ao longo da nossa histórias.

O senhor tirou quase um milhão de famílias do Bolsa Família, um programa social elogiado pela ONU, para depois aumentar de forma ínfima o valor do benefício.

A Reforma Trabalhista, que, segundo o senhor geraria milhões de empregos, resultou em quase 13 milhões de desempregados, numa maior concentração de renda e em mais injustiça social.

Como se tudo isso não bastasse, o senhor tentou realizar o ataque mais cruel a Amazônia dos últimos 50 anos, tentou liberar uma região que abrange nove áreas protegidas, como o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, para a exploração e mineração privadas. Uma região preciosa não apenas pelos recursos minerais mas pelas imensas comunidades indígenas, formadas por humanos como nós, pelos quais o senhor parece não ter empatia.

O ataque foi impedido a tempo, mas sua biografia, que já vinha acumulando evidências de covardia, deslealdade e indigência moral, foi jogada para sempre no limbo da História.

O senhor conspirou contra uma presidente honesta, a quem jurou lealdade, e chegou a confessar, numa entrevista em rede nacional, que participou de um Golpe.

O senhor vive uma situação paradoxal e como um personagem de uma tragédia shakespeareana, descobriu que, mesmo tendo o poder em suas mãos, está profundamente só, refém de si mesmo e do rio de ódio que ajudou a irrigar, e não pode mais sair às ruas.

O senhor foi hostilizado ao tentar conversar com as mais de 150 famílias que moravam no edifício de propriedade da União, que por puro descaso e desumanidade, desabou no Centro de São Paulo na madrugada de terça-feira.

Não sabemos ainda quantas vidas humanas se perderam naquela noite, como o fogo começou, quando sofrimento poderia ter sido evitado e nem o que acontecerá com tantas crianças, idosos e mulheres que tiveram seus sonhos destruídos.

Mas sabemos algumas coisas. Sabemos que o senhor teve que deixar o local em poucos minutos sob gritos e xingamentos que entristecem um país inteiro.

A imagem daquele prédio em chamas é a metáfora de um Brasil em chamas, um país que está sendo incendiado, destruído da maneira mais triste e que hoje tentanos resgatar de todas as formas.

Enquanto o ódio e da intolerância se intensificam em um país que já foi famoso por sua cordialidade e seu respeito às diferenças, o senhor continua destruindo uma parte de nossa história a quem der mais. Destruindo direitos humanos e fundamentais e destruindo até mesmo uma estatal como a Embraer, uma empresa nascida na mesma região que eu, o Vale, no interior de São Paulo, e um das maiores do mundo na aviação.

Uma estatal fundada por um grande esforço da Aeronáutica brasileira (antes da Ditadura), do ITA e de grandes engenheiros da minha região, pessoas que eram amigas de meus pais e cujas histórias eu cresci ouvindo.

A Embraer recebeu inúmeros prêmios internacionais, criou empregos e sonhos para milhares de pessoas e foi a responsável por projetos como a fabricação do KC-390, o maior avião produzido na América Latina.

A decisão de um governo como o seu, sem legitimidade nenhuma, de manter uma ação que permite vetar a transferência do controle acionário da Embraer é vergonhosa e é uma imensa traição à soberania nacional.

Meus avós, senhor Temer, partiram do mesmo porto de Beirute do qual seu pai partiu e do qual partiram milhões de árabes em busca do Novo Mundo, fugindo da Grande Fome que assolou o Monte Líbano e parte da Síria depois I Guerra Mundial, da queda dos Otomanos e da decisão dos franceses e ingleses dividir os espólios do Oriente Médio.

Todos partiram do mesmo porto, acalentando os mesmos sonhos.

Mas o senhor tem muito pouco em comum com os corajosos imigrantes sírios - libaneses que um dia partiram de Beirute, sonhando em prosperar, e sonhando em construir um país. Ao contrário da grande maioria dos homens árabes que conheço, conhecidos no mundo por sua coragem, honra e lealdade aos seus princípios, o senhor chegou ao poder traindo uma presidente que não havia cometido crimes, e traindo projetos sociais aos quais o senhor havia jurado lealdade.

O escritor francês Michel de Montaigne tem um frase de que gosto muito para definir a covardia.

"A covardia é a mãe de todas as crueldades".

A covardia parece algo pequeno e sem consequências, mas acaba gerando imensas injustiças para todos.

A covardia e a traição não beneficiam a ninguém, nem mesmo ao traidor.

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