Sim, senhor general, somos todos profundamente “desajustados”

Afirmar que lares onde não há a presença do avô ou do pai são "fábricas de desajustados" diz muito sobre o Brasil assustador, medieval e inspirado em Torquemada, que o senhor e seu capitão desejam construir. Um Brasil misógino, intolerante, que culpa as mulheres por todos os fracassos coletivos ou sociais e que nos levaria a todas às fogueiras medievais, se isso ainda fosse possível

Sim, senhor general, somos todos profundamente “desajustados”
Sim, senhor general, somos todos profundamente “desajustados” (Foto: Reprodução/GloboNews)


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A frase proferida pelo senhor, general Mourão, sobre os lares em que mães e avós criam suas crianças sozinhas, não foi apenas infeliz, machista e desconectada da realidade, foi também profundamente imoral.

Afirmar que lares onde não há a presença do avô ou do pai são "fábricas de desajustados" diz muito sobre o Brasil assustador, medieval e inspirado em Torquemada, que o senhor e seu capitão desejam construir.

Um Brasil misógino, intolerante, que culpa as mulheres por todos os fracassos coletivos ou sociais e que nos levaria a todas às fogueiras medievais, se isso ainda fosse possível.

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Talvez o senhor não saiba, general, mas segundo o IBGE, 40 por cento dos lares brasileiros são conduzidos por mulheres hoje.

Sim, milhares de Lucias, Helenas, Anas, Teresas, Suzanas, mulheres que criam seus filhos com imensa dignidade e pouca ajuda externa. Mulheres que tocam seus lares sozinhas e que têm dado ao Brasil filhos dos quais podemos nos orgulhar, senhor general.

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Sou uma jornalista, mãe e escritora, mas há milhões de brasileiras para as quais essa batalha tem sido muito mais cruel do que para mim. Sou mãe de uma menina linda cujo pai, meu ex marido, tem sido um bom pai e tenta estar presente quando pode, mas mora em São Paulo, enquanto eu e minha filha moramos no Rio. Ou seja, tenho que tomar muitas decisões sozinha e sou a condutora do meu lar, senhor general.

Ao mesmo tempo, fui criada em uma família muito tradicional, com pai e mãe, e uma condição social privilegiada, mas na minha adolescência, meus pais se separaram, o que resultou em uma imensa dor para a menina que vive em mim.

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Meu pai continuou presente, mas minha mãe, uma mulher forte, poliglota, humana e de um coração imenso teve uma influência fundamental sobre a pessoa, a mulher e a escritora que me tornei. Minha mãe e minha avó foram fundamentais para a minha formação, senhor general.

Aliás, se pensarmos nos maiores escritores do mundo, muitos deles foram criados apenas pela mãe ou pela avó, senhor general.

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Gabriel Garcia Marques, autor de Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera, foi criado pela sua avó, Tranquilina Igaràn, e se tornou um dos mais magistrais autores do planeta.

Seria Garcia Marques também um "desajustado", para os seus padrões, senhor general?

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O escritor francês Antoine de Saint Exupery, um dos autores mais amados do mundo e criador de O Pequeno Príncipe, ficou órfão aos quatro anos de idade e foi criado pela avó e pela mãe, uma pintora considerada uma mulher ousada e vanguardista para a sua época. Ele também seria um desajustado, senhor general?

Criada pela avó e única sobrevivente de quatro irmãos, a brasileira Cecília Meirelles, autora de "Espectros", que escreveu aos 18 anos, seria também segundo o senhor, uma "desajustada", senhor general?

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O escritor brasileiro Marcelo Rubens Paiva, cujo pai foi assassinado pela ditadura militar, foi criado também pela mãe e pela avó, senhor general.

A brilhante escritora Hannah Arendt, autora de Eichmann em Jerusalém, que profeticamente escreveu que o nazismo e o fascismo poderiam voltar com movas roupagens, perdeu o pai aos sete anos de idade e foi criada apenas pela mãe. Arendt também seria uma desajustada, senhor general?

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Enfim, senhor general, eu tive em meu pai, um grande empresário da minha região, uma forte figura paterna, mas sinto cada vez mais gratidão pela mulher que me ensinou a amar os livros, as lutas por um mundo melhor, as viagens pelo mundo e, acima de tudo, o ser humano, de onde quer que ele venha e seja qual for a sua cor, religião ou classe social: minha mãe.

Seríamos todos nós "desajustados", senhor general?

Seria eu também uma "desajustada", senhor general?

Acredito que sim, general.

Porque me recuso a odiar meu irmão negro ou indígena.. Porque me recuso a aceitar que um general do exército brasileiro se refira aos índios como "indolentes" e aos negros como " malandros" em um em um Brasil já dilacerado pelo ódio racial. Porque me recuso a chamar uma Ditadura em que milhares de jovens foram torturados de "Revolução de 64." Porque me recuso a odiar meus irmãos refugiados, sejam eles muçulmanos ou cristãos, sírios ou venezuelanos. Porque me recuso a aceitar que pessoas como o senhor e seu capitão usem o cristianismo para justificar o ódio, a pequenez moral, a xenofobia , a misoginia galopante, ou para defender a proliferação de armas no Brasil.

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