“Take off the cheese!”

Jornalista Luiz Costa Pinto, do Jornalistas pela Democracia, relata em crônica a regressão do Brasil a tempos e costumes que deviam ser mero passado; "Num Brasil em que Deus sobe na goiabeira, revólveres são comparados a liquidificadores em periculosidade para a vida e motoristas depositam 24 mil reais na conta da madrasta do patrão sem ter de explicar nada a ninguém porque nenhum deles se sentiu traído, tudo está liberado", diz ele 

“Take off the cheese!”
“Take off the cheese!”


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Crônica sobre a regressão do Brasil a tempos e costumes que deviam ser mero passado

Por Luis Costa Pinto, do Jornalistas pela Democracia - Tirei o queijo aos 14 anos. Quem me levou ao bordel foi o filho do vizinho, quatro anos mais velho. Chamava-se Green Grass – ou Capim Verde. Era uma zona, como dizíamos então, que funcionava no Engenho do Meio. Ficava próximo ao campus da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife. Aquele puteiro recebia hordas de universitários como consolo para quem não havia pegado ninguém no forró do Abacaxi. O Abacaxi era um forró que ficava ao lado da universidade. Tocava pé-de-serra e servia retetéu (cachaça, suco e mel) dentro de abacaxis descarnados. A proximidade com o campus encorajara meu vizinho, recém-admitido no curso de engenharia, a se tornar uma espécie de Capitão da Zona. Ele era filho de um coronel lotado no Serviço Nacional de Informações (SNI). Uma figura: por toda a vida manteve duas famílias, dividia o tempo irmãmente entre elas e o quartel. Ao passar para a reserva ganhou a patente de general. Adorava ser chamado de General.

(Pouco tempo depois, quando iniciei sozinho uma outra viagem particular, articulando-me com o Movimento Estudantil secundarista, com Comunidades Eclesiais de Base, com a turma da Teologia da Libertação no Recife, lembro de ter virado cada página de Brasil, Nunca Mais certo de que encontraria o nome do coronel que virou general no capítulo seguinte. Ou no índice onomástico. Não encontrei, mas li descrições que até hoje me fazem ter certeza de que ele era descrito em passagens narradas naquela biografia de um país contra o qual lutamos, vencemos, e que agora voltou triunfante.)

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Experiência esquisita, aquela no puteiro. Foi-me designada uma loira meio Chanel de brilho pelo corpo todo. Circulava de biquíni e brilho entre as mesas humildes, cobertas de fórmica azul, onde se bebia rum com Coca Cola. Bebi três doses antes de encarar a estreia. Lembro de ter achado a pele dela muito fria. Mas tirar o queijo era a missão. Tirar o queijo: perder a virgindade. “Queijo” era a metáfora regional à época (não sei se hoje ainda) para quem jamais havia tido uma experiência sexual. Dava-se esse nome, diziam-me, porque a crença era a de que os sêmens podiam coalhar caso não fossem libertados da criogenia natural do líquido seminal.

Revólver na cintura, aluno de Engenharia, já dirigindo o próprio carro, o filho do general me dizia: “take off the cheese, Lula”! E ria. Falava bem inglês, ou achava que falava. Missão cumprida, apavorava-me pegar alguma doença. Eu já o vira se banhar em Baygon líquido (um inseticida fortíssimo) junto com dois outros amigos para debelarem uma infestação de “chatos”. “Chatos” são parasitas da família dos piolhos que habitam a região pubiana de quem tem pouca higiene. Provocam enorme coceira, diz a literatura. Eu estava em pânico – não queria ter de me banhar de Baygon também.

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Era alta madrugada quando, saindo do Green Grass, passamos diante do Hospital da Restauração, a maior emergência pública do Nordeste. Movimentadíssima.

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- Uma barraca de coco aberta!, alertou o filho do “general”. – Vamos parar para a gente fazer o serviço completo, com segurança.

- Qual serviço completo?, quis saber.

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Paramos. Descemos. Pedimos quatro cocos, dois para cada um. “Bebe”, ordenou. O revólver estava exposto na cintura. Passava das 3h. Bebíamos a água dos cocos enquanto acompanhávamos a entrada das ocorrências daquela madrugada de sábado. Feridos da vida: baleados, esfaqueados, vítimas de acidente de trânsito. Subiam pela rampa do Restauração, alguns deixavam embaixo parentes e amigos em desespero.

- O serviço completo é o seguinte..., disse o meu vizinho, filho do coronel que virou general ao passar para a reserva e gostava de exigir “o cano”. Completou: - Bebe muita água de coco, depois a gente para ali no canal (o canal da avenida Agamenon Magalhães, artéria que corta parte da cidade exibindo um veio enlameado de maré e exalando o cheiro agridoce tão característico do Recife) e faz xixi para evitar qualquer doença.

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- ?!?, olhei para ele com a expressão de quem, aos 14 anos, já perguntava “que porra é essa”.

- Aprenda: depois de comer alguém beba algo que fará você botar tudo para fora. Água de coco, ou mesmo cerveja. Aí você lava tudo, expele tudo, e evita doenças venéreas. Sacou?

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Meu antigo vizinho é terraplanista, votou em Bolsonaro, formou-se em Engenharia, ganha a vida como corretor de imóveis. Numa das vezes em que fui a Recife antes das últimas eleições eu o encontrei por acaso ao sair de uma padaria em Olinda. Estava feliz com a (àquele momento já iminente) vitória de seu capitão. Brinquei com ele citando Walt Whitman – Oh Capitan, my Capitan! – fazendo referência à performance de Robin Williams recitando o poema em Sociedade dos Poetas Mortos.

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- ?!?, olhou-me, devolvendo na própria expressão a minha autopergunta de 36 anos atrás.

Sorri. Nos abraçamos. Sabíamos que vivíamos vidas paralelas em mundos paralelos que talvez só se reencontrassem naquela padaria da rua olindense Elesbão de Castro. Sempre guardei esse nome porque ele me soou esdrúxulo a vida inteira, desde a infância.

Ontem, dia em que o governo brasileiro baixou um decreto liberando armas, dando licença para matar, e o presidente que preside essa Nação tão limítrofe com algum lugar distópico na ficção ocidental, lembrei-me do episódio. Talvez a lembrança tenha ocorrido por causa do revólver que ele sempre carregava na cintura – coisas de um tempo em que havia militares no poder, havia uma classe média emergente crendo que podia tudo (sobretudo se fossem filhos de quem estava no poder), havia uma ignorância pueril sobre tantas coisas... até mesmo sobre a fisiologia.

Senti-me derrotado quando cheguei ao aeroporto do Rio, depois de um dia de intensas reuniões, e parei para me atualizar dos fatos antes de embarcar de volta para Brasília. Portar armas, ter licença para matar, virou política de Estado. Nas salinhas e nos salões da capital da República há gente com caneta nas mãos que odeia a Ciência e professa o criacionismo. Água de coco abençoada, em breve, poderá estar sendo distribuída nas escolas como política pública de educação sexual – a ser seguido o manual empírico dessa turma que ouve e admira um quase-filósofo iletrado para quem não há evidências de que a Terra seja arredondada, mas sim plana.

- Take off the cheese!, ouvia em minha memória de vencido enquanto tomava banho no meio da noite que encerrava o massacre moral do 15 de janeiro de 2019.

Eles triunfaram de novo, depois de terem se recolhido às coxias da vida. Resta-nos usar as armas. Cada um saque a sua.

(PS: Nem tudo é verdade. Tudo pode ser verdade. Num Brasil em que Deus sobe na goiabeira, revólveres são comparados a liquidificadores em periculosidade para a vida e motoristas depositam 24 mil reais na conta da madrasta do patrão sem ter de explicar nada a ninguém porque nenhum deles se sentiu traído, tudo está liberado.)

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